quarta-feira, maio 31, 2017

Está quase # 4


A história do século XX poderia ser contada pela biografia de um jornalista português. Anarquista e colaborador da imprensa revolucionária na Primeira República, foi preso pouco depois do golpe militar de 1926. Colocou bombas e feriu-se. Foi preso e deportado. Fugiu. Em França, viria a ser detido num campo de concentração e posteriormente transferido para Dachau. Resistiu. 
Depois da guerra, viveu um segundo fôlego. Regressou ao jornalismo e acumulou êxitos, incluindo uma entrevista com François Miterrand e a recolha das primeiras declarações de Mário Soares após a revolução de 1974. Só na década de 1960 foi autorizado a visitar Portugal, forçado à ignóbil declaração de renúncia de actividade política. Manteve-se em França até ao fim.

A história de A.N. segue dentro de momentos.

segunda-feira, maio 29, 2017

Está quase # 3


“Matar” uma figura pública nas páginas de um jornal não é inédito – já aconteceu e continuará a acontecer. As rotinas da profissão, a pressão do fecho editorial e a necessidade de ser o primeiro justificam o afrouxamento das práticas profissionais e propiciam o erro.
“Matar” precocemente dois autores literários no espaço de dois meses já é mais raro. Aconteceu em Portugal. Como uma das vítimas jocosamente comentou, «antes morto no Diário de Notícias do que no Diário do Governo».
Em breve nas livrarias. 

domingo, maio 28, 2017

Está quase #2

Qual a maior tiragem de sempre na imprensa portuguesa?
Nas suas Memórias, Raul Brandão conta (em segunda mão, pois ouvira a informação de Avelino de Almeida) que O Século batera todos os recordes com as edições dos dias seguintes ao 5 de Outubro de 1910. Não antecipa números, mas a velha guarda do jornal assegura que rondara o milhão – número pouco credível num país ainda assolado pelo analfabetismo.
Em livro recente (O Caso do Jornal Assaltado), Pedro Foyos comenta (com alguma ingenuidade) que O Jornal do Caso República colocou «à venda quase 200 mil exemplares que rapidamente esgotaram. Um recorde de tiragem de um jornal em Portugal». Não foi.

Nas suas memórias (Memórias de Notícias do Jornal), Frederico Martins Mendes conta que o Jornal de Notícias tirou 500 mil exemplares na edição do 107.º aniversário e 600 mil no 110.º Chamou-lhe um «invulgar recorde nacional». Também não foi.

Qual foi afinal o recorde de tiragens na imprensa portuguesa?
Responderei em breve, numa livraria perto de si.

sábado, maio 27, 2017

Está quase #1

O senhor da Secretaria aproxima-se da minha mesa. Traz na mão duas cartas, como costuma acontecer todos os dias, mas mostra-se mais circunspecto. Transporta-as como se carregasse uma granada sem cavilha.
– Ahum…  – pigarreia. Tem aqui uma carta.
Interrogo-o com o olhar. O desconforto é óbvio, a voz sugere que o remetente do envelope é a Autoridade Tributária ou o Diabo em pessoa. Lá reduz o volume da voz e diz, quase num sussurro:
– São do FBI. Para si. Do Departamento de Justiça.
E fica ali, o imbecil, a aguardar que eu esclareça.
Gozo o prato. Mantenho o olhar sério. Viro e reviro os envelopes, observo-os à transparência. Ainda me passa pela cabeça abri-los com uma pinça, como se receasse uma explosão iminente, mas lá agradeço e o senhor da Secretaria retrocede, danado, sem conhecer o conteúdo.
No interior, não vêm as prometidas respostas que eu esperava do FBI Vault, o arquivo histórico da instituição. Não têm qualquer processo em nome de Manuel Zorra, um português muito especial para a história da imprensa portuguesa.
O resto... Terão paciência, mas vão ler daqui a uns dias, quando o livro estiver nas livrarias – se encontrar lá o Senhor da Secretaria, terei o cuidado de levar o dedo aos lábios, recomendando o silêncio cúmplice e necessário.

Afinal, as cartas vinham do FBI.

domingo, maio 21, 2017

Quando o actor secundário "rouba" o protagonismo


Quando o abade Bringas foi finalmente punido pelos calores revolucionários franceses e sujeito à mesma pena de Robespierre, a multidão parisiense esperava da boca do antigo clérigo espanhol uma última explosão de raiva. O homem que apregoara a necessidade de o cadafalso produzir uma limpeza sanitária na sociedade francesa, o homem que jurara que a Revolução romperia a ordem burguesa via-se finalmente encurralado. Esperava-o a democrática guilhotina. Bringas tomou fôlego e, fiel à matriz disruptiva, gritou para a multidão: «Ide todos para o caralho!» Segundos depois, a sua cabeça tombou.
Acontece às vezes nos filmes: a personagem secundária “rouba” o holofote e toma conta da acção. Na literatura, é mais raro – afinal, é o autor que controla todos os cordelinhos da narrativa, assumindo as decisões. Mas essa é a primeira conclusão após a leitura de Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte (Asa, 2016). Bringas era uma personagem acessória, não mais do que o guia útil para introduzir os verdadeiros actores principais na complexidade de Paris durante o reinado de Luís XVI. As suas invectivas, porém, tornam-no imperdível. E Bringas “rouba” mesmo todo o protagonismo.
Reverte utiliza na obra uma descrição real de dois literatos da Academia Espanhola das Ciências – académicos envelhecidos com a missão de adquirirem em Paris a primeira edição de A Enciclópedia de Rousseau, D’Alambert, Diderot e restantes iluministas. É, portanto, sobre factos reais que o livro se ergue.
Através das cartas de um dele, Reverte reconstitui a intriga, imaginando os obstáculos da viagem típica do século XVIII agravada pelos actos de sabotagem de um bandoleiro contratado por uma dupla improvável de conspiradores científicos. «A guerra faz estranhos parceiros de cama», diz Shakespeare em A Tempestade. Também aqui um iluminista receoso da entrada demasiado rápida do conhecimento em Madrid junta esforços com um conservador demasiado temeroso da emancipação do espírito produzida pelo Iluminismo.
A narrativa – talvez a melhor de Pérez-Reverte – é interrompida regularmente para comentários explicativos do autor. Com mestria, Reverte quebra a acção para nos trazer ao presente, valorizando o processo de aquisição de informação para cada pedaço da narrativa. Ali se explicam todos os passos, todas as fontes – como notas de rodapé dignificadas no corpo da narrativa. Por vezes, até se prestam contas ao leitor, justificando por exemplo o salto narrativo desde a fronteira franco-espanhola até Paris por nada ter ocorrido que merecesse justificação.
       A interrupção final é preciosa. Pérez-Reverte justifica a dificuldade de concluir a história. Quase pede desculpa por o final ser mais abrupto e implausível do que a narrativa deixava antecipar. É um dos grandes livros de ficção traduzidos para português no último semestre (infelizmente, para o português do Acordo Ortográfico). Vale bem a leitura!

sábado, maio 20, 2017

A propósito de gaffes…


Faço notar que não é a primeira vez (nem pouco mais ou menos) que o DN "mata" uma figura nobre da literatura internacional numa notícia demasiado precoce.

Mais pormenores em breve num livraria perto de si!

quarta-feira, maio 17, 2017

Um espião entre amigos


Recomendo vivamente o livro mais recente de Ben MacIntyre. Explora dramaticamente os mais recentes ficheiros desclassificados do MI5 sobre os Cambridge Five, os cinco homens, ícones do sistema educativo britânico formal, de Eton e Cambridge, dos clubes de bridge e de Ascott, que traíram conscientemente, durante décadas, para os soviéticos. Anthony Blunt, Donald MacLean, Guy Burgess, John Cairncross e, claro, Kim Philby.
Muito bem escrito. Dramático. Brilhante. A conversa final entre Nicholas Elliot e Kim Philby é de cortar a respiração.
E trouxe uma novidade para mim que, bem investigada, dava outro livro – Philby foi, durante a Segunda Guerra Mundial, o controleiro da espionagem britânica para Portugal e Espanha, passando diligentemente tudo o que apurava para Moscovo. Boas leituras!

terça-feira, maio 09, 2017

O inesquecível Baptista-Bastos


Escolhido ao acaso. BB, Diário Popular, Fevereiro de 1967.

«Dizem-me os narradores da família que nasci sem chorar, condição indispensável para se estar catalogado na confraria humana. Como não chorasse, a parteira deu-me um par de galhetas tesas e tive de reagir à força. Nasci a apanhar tareia; e isso formou-me o carácter, conferiu às minhas ideias uma noção dubitativa sobre as coisas aparentemente mais concretas.»