sexta-feira, outubro 22, 2021

A estátua de Dona Leonor

          Já reparou neste monumento dedicado a Dona Leonor nas Caldas da Rainha? 

Magnânima, de Maximiano Alves

        E neste, também consagrado à rainha que fundou e custeou as obras do hospital termal? Também não?       
Proposta de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos

        Na verdade, eles só existiram em maqueta, mas foram peças importantes de um escândalo que divertiu Lisboa no Verão de 1930 e irritou os caldenses. 
        A história não poderia ser mais portuguesa nos seus pormenores requintados. 
        No dia 21 de Março, o jornal A Gazeta das Caldas abriu um concurso para a execução de uma peça escultórica consagrada à rainha Dona Leonor. Iniciou-se uma subscrição pública, que rapidamente superou a fasquia de cem contos. O resultado do concurso foi desvendado no dia 10 de Agosto, depois de a Comissão Executiva do Monumento ter solicitado à Sociedade dos Arquitectos, à Sociedade Nacional de Belas-Artes e à Comissão Administrativa das Caldas da Rainha a nomeação de um júri constituído por três arquitectos e dois escultores. Foram escolhidos para o júri os arquitectos Adolfo Marques da Silva, José Coelho (em substituição de Porfírio Pardal Monteiro) e Eugénio Correia, os escultores Salvador Barata Feyo e Raul Maria Xavier e o pintor Eduardo Romero. 
        Foram a concurso treze propostas, um número fatídico como mais tarde se veria. 
        Após deliberação, o júri premiou a proposta do escultor Maximiano Alves em parceria com os arquitectos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade. A obra intitulava-se Magnânima e a apreciação do crítico do Diário de Lisboa no dia 11 de Agosto (presume-se que Artur Portela) concordou com a escolha, não deixando de notar que «não nos parece de boa doutrina discutir as decisões do júri, visto que todos os artistas que entraram no concurso tinham conhecimento da sua constituição (…)». O texto parece sugerir que a própria sessão de divulgação de resultados foi agitada. «O júri escolheu por maioria a obra de Maximiano Alves e irmãos Andrade, sem parcialismos [sic] nem camaradagens suspeitas. Entre as treze maquetas apresentadas, triunfou de facto a que merecia o primeiro prémio», certificou o crítico. 
        Nem todos viram assim o assunto. Uma semana mais tarde, o Notícias Ilustrado, dirigido por Leitão de Barros, lançou a confusão. «Já é tempo de se exigir que os monumentos da nossa terra sejam feitos pelos que têm valor para os fazerem e não pelo primeiro negociante de estátuas que só vê o negócio», escreveu-se. A revista quebrou igualmente as regras de anonimato, contando aos leitores quem apresentara cada proposta, embora as maquetas fossem anónimas e apenas tivessem sido identificados formalmente os dois primeiros prémios. A partir de então, estoiram como «bombas de grande potência vários protestos de autores que se acham lesados», escreveu A Gazeta das Caldas
Maximiano Alves em fotografia de O Século


        O Diário de Lisboa foi o campo de batalha e o escultor António da Costa, cuja proposta fora mal pontuada, investiu como um touro: «A decisão tomada pelo júri (…) não só não satisfez mas indignou todos os artistas.» O escultor apontava critérios estéticos para considerar melhor a segunda maqueta, da autoria de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos e lançava depois uma acusação grave: «Um dos escultores (Raul Xavier) é, além de companheiro de atelier, colaborador do escultor classificado em primeiro lugar. É isto admissível?» 
        Três dias mais tarde, a 15, António Montês, membro do júri, defendia-se: «Falta de competência dos júris ou falta de competência dos nossos artistas?», perguntava. «Sou de opinião, neste caso em que tive interferência, que a falta é dos segundos e não dos primeiros. (…) As Caldas querem unicamente um monumento em tudo condigno da figura a glorificar (…) Dá vontade de pôr uma pedra sobre tudo isto e de levantar nas Caldas, em lugar do monumento, um edifício moderno, onde se instalasse qualquer obra de assistência que talvez fosse a melhor homenagem à benemérita rainha Dona Leonor e que constituiria um grande ensinamento aos nossos artistas.» 
        No dia 21, o pintor Eduardo Romero questionava António da Costa sobre as incompetências apontadas: «Permita-me o distinto escultor [que] lhe pergunte onde acaba esta para me habilitar e não ficar convencido de que a sua irritabilidade é motivada apenas por divergências de opiniões sobre matéria de arte.» 
        Picado, o escultor rebateria de imediato a charge, acusando um dos escultores do júri de… nem sequer ser escultor: «Qual é a obra do sr. Raul Xavier – que nem o 1.º ano do curso de escultura de qualquer escola de Belas-Artes tem – que lhe dá competência para julgar trabalhos de escultores com o curso da especialidade, alguns dos quais são mestres consagrados?» E voltava a lembrar a proximidade do visado com o escultor premiado. 
        No dia 26, numa longa carta, Raul Xavier defendia-se. Lembrava que o escultor Francisco Franco também só obtivera a carta de curso em 1930 porque em Portugal esta era difícil de obter. Recordava que Ernesto do Canto também não a tinha. E dizia: «O sr. António da Costa finge ignorar obras minhas. Esqueceu-se, porém de que trabalhou no meu atelier enquanto não teve atelier seu. Viu-me trabalhar a seu lado no barro e cortar o mármore (coisa que o sr. António da Costa nunca fez). Sou de facto amigo e frequento o atelier do sr. Maximiano Alves, onde tenho trabalhado. Essa circunstância levou este meu colega a procurar-me na manhã do dia 10 do mês passado e observar-me que eu deveria declinar o cargo para que tinha sido nomeado, não fosse esta nossa boa camaradagem ser malevolamente explorada, como, penoso é dizê-lo, se está fazendo. Observei-lhe que tinha e tenho uma noção bem definida do que é a dignidade e que portanto o meu voto iria para a maquette que em meu entender o merecesse – e assim fiz».
        Raul Xavier terminava a sua carta com um repto: «Intimo o sr. António da Costa a, em concorrência comigo e perante um júri idóneo, modelar um modelo nu e passá-lo à pedra desde o bloco em bruto até ao seu final acabamento. Estas provas serão prestadas na Sociedade Nacional de Belas-Artes de que ambos somos sócios, em quarto fechado. (…) Desde já fique bem assente que qualquer escusa do sr. António da Costa classificará a sua competência e dignidade profissional.» 
        O repto não foi aceite. Outros intervenientes escreveram. Por fim, os vencedores da proposta entraram na liça, questionando o mau perder de todos os envolvidos. Perante tamanha controvérsia, a Comissão Executiva decidiu cancelar o concurso em Janeiro de 1931. Todas as maquetas foram portanto rejeitadas. 

A estátua de Francisco Franco 

        O monumento foi depois encomendado directamente a Francisco Franco (que não participara no concurso original e que já então era um artista consagrado, tendo modelado o famoso busto de Salazar). É essa a estátua que está, desde então, nas Caldas da Rainha.

A proposta de Anjos Teixeira

A proposta de António da Costa


A proposta de Francisco dos Santos 

A proposta de Júlio Vaz


A proposta de Luís Fernandes

A proposta de Norte Júnior

A proposta de Simões de Almeida, Leopoldo de Almeida e Carlos Ramos


terça-feira, outubro 19, 2021

Quem desenhou a Noite Sangrenta?

 


        Os jornais de hoje estão repletos (e bem) de Aristides Sousa Mendes, mas hoje cumpre-se também uma efeméride trágica – o centenário da Noite Sangrenta, a noite de 19 de Outubro de 1921 durante a qual foram abatidas seis pessoas, incluindo o primeiro-ministro António Granjo e Machado Santos, o herói da Rotunda. 
        O episódio foi interpretado e estudado amiúde ao longo deste centenário, desde o opúsculo de Berta Maia sobre as suas conversas com o «Dente de Ouro» (As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio, o ‘Dente de Ouro’) à reflexão de Bourbon e Meneses sobre o caso (Os Crimes de 19 de Outubro), passando pela reconstituição de Consiglieri Sá Pereira (A Noite Sangrenta) e pela obra importante de José Brandão (A Noite Sangrenta), não esquecendo a peça de teatro premiada de Hélder Costa (O Mistério da Camioneta Fantasma). 
        Este contributo é infinitamente mais modesto. Nas semanas subsequentes à matança, foi divulgada uma gravura nas páginas da imprensa. O jornal A Imprensa da Manhã, que ajudara a acicatar os ânimos e que, no próprio dia da chacina, apelara à audácia dos revolucionários à maneira de Danton, publicou-a. O desenho tornou-se, de alguma maneira, o ícone do episódio. Representa Granjo no Arsenal da Marinha, indefeso perante a turba que o executa a sangue frio e não costuma ser creditado. 
        Tudo indica, porém, que a ilustração foi criada pelo jovem Leitão de Barros, então com 25 anos e à procura de uma oportunidade profissional. O gravador terá sido Martins Barata. Não só o crédito de ambos figura nas páginas do jornal de 11 de Novembro de 1921 como Barros é protagonista de uma carta surreal no dia 27 – carta essa que, adivinho, bem gostaria de varrer para debaixo do tapete nos anos seguintes. 
        Leitão de Barros terá então escrito ao jornal, queixando-se: «Como sou desenhador e ganho dinheiro desenhando, entendi que tinha o direito de exercer a minha profissão executando a iconografia dos sucessos da noite de 19 de Outubro. Nada absolutamente tenho nem quero ter com política», dizia. 
        «Segundo os relatos de alguns jornais, reconstituí o crime de que foi vítima António Granjo, ex-Presidente do Conselho, tendo todo o cuidado de desenhar apenas figuras perfeitamente anónimas para não levantar suspeitas ou ferir injustamente quem quer que fosse. Segundo o relato do ministro da Marinha do governo Manuel Maria Coelho, era um facto que indivíduos vestidos de marinheiros tinham tido acção neste caso, motivo porque lá aparece realmente uma figura fardada» – continuava. 
        Leitão de Barros lembrava que também no regicídio de 1908 se reconstituíra o atentado em todo o mundo sem que ninguém se sentisse lesado. Desta vez, porém, a Marinha sentira-se vexada. «Pois, senhor redactor, acabam de me proibir de vender os postais que reproduzem o desenho publicado pela Imprensa da Manhã (que aliás não foi apreendida e fez até duas edições) e de intimar a Casa Paulo Guedes a retirar das suas montras o original desse desenho.» 
        O desenhador sentia-se atacado na bolsa. «Com que direito se pode proibir um pacato cidadão que paga os seus impostos o exercício da sua profissão? Quem me indemniza dos prejuízos que tal proibição me causa? (…) O público que ajuíze e eu que pague… e me cale.»

A Imprensa da Manhã, 27 de Novembro de 1921

quarta-feira, outubro 06, 2021

Os ovos de Velázquez

 


       Foi um dos trabalhos mais ousados do jovem Diego Velázquez e poderia estar em Portugal. Uma Velha Cozinhando Ovos terá sido pintado em 1618, aos 19 anos, pelo artista sevilhano (neto aliás de um portuense). 
       Já contém as marcas que farão de Velázquez o artista de referência no século XVII espanhol: o jogo entre claros e escuros, a definição criteriosa do movimento e das personagens, a representação das actividades de quotidiano que tanto chocavam os contemporâneos. 
       Uma década mais tarde, Vicente Carducho, pintor e historiador, lastimará a representação na tela “dos homens de trabalho, sem conhecimento ou reflexão, que degradam a arte nobre para noções vulgares, como hoje vemos nas representações dos bodegones”. O catálogo do Museu Metropolitano de Nova Iorque consagrado à exposição do pintor em 1989-90 não teve dúvidas em considerar que Carducho escrevia sobre Velázquez. 
       O quadro, pintado por Velázquez antes de se radicar em Madrid, viajou mais do que muitos seres humanos: sabe-se que, no século XVIII, já não estaria em Espanha, vendido para a Bélgica e depois para Paris. Foi comprado num leilão em 1813 por Samuel Peach, que o adquiriu por engano – julgava comprar uma obra de Bartolomé Murillo e levou um Velázquez! Reconhecida a autoria, a obra foi vendida em mais duas ocasiões até chegar, em 1863, às mãos de Francis Cook. 
       Este industrial têxtil inglês escolhera então Monserrate para passar as temporadas de Verão. Reconstruiu o palácio, criou os jardins e começou a constituir uma colecção ecléctica em Sintra, semelhante à dos velhos gabinetes de curiosidades: um busto romano aqui, uma estátua grega acolá, sarcófagos e múmias, quadros clássicos e modernos. Em 1863, adquiriu esta obra, embora não se saiba se chegou a estar exposta em Sintra ou apenas na sua residência londrina. 
       O tempo passa e as fortunas esfumam-se. As duas guerras mundiais abalaram as finanças familiares. As três gerações seguintes procuraram manter incólume a colecção artística, bem como o jardim e palácio de Monserrate. Em 1929, foi feito um primeiro contacto para tentar que o governo português adquirisse a propriedade e recheio, evitando o loteamento. Em vão. 
       Em 1946, a família fartou-se de esperar e iniciou a venda rápida de todos os bens móveis. Houve um leilão em Lisboa, despachado em três dias. Os directores dos principais museus nacionais compareceram, mas limitaram-se a seguir com os olhos as peças que voavam para o estrangeiro. Monserrate foi vendida a um industrial português que, um ano depois, foi “persuadido” a vender ao governo. Já estava então sem recheio e em acelerado processo de decomposição. 
       Saúl Saragga, o industrial, pretendia dividir Monserrate em várias parcelas. Como notou a dissertação de mestrado de Marta Ribeiro, foi necessário que Flávio Resende, director da Faculdade de Ciências de Lisboa, intercedesse directamente junto de Salazar para que o processo irreparável fosse travado. Em 25 de Maio de 1949, a velha propriedade de Cook tornou-se, por fim, pública. 
       E Velázquez? A família manteve o quadro na sua posse por mais uma década, talvez ciosa do carinho que o patriarca mantivera pela velha cozinheira. Em 1955, finalmente, os Trustees da Família Cook cederam-no à National Gallery de Edimburgo, onde está exposto desde então. Assim fugiu um Velázquez que poderia cá estar.