terça-feira, outubro 19, 2021

Quem desenhou a Noite Sangrenta?

 


        Os jornais de hoje estão repletos (e bem) de Aristides Sousa Mendes, mas hoje cumpre-se também uma efeméride trágica – o centenário da Noite Sangrenta, a noite de 19 de Outubro de 1921 durante a qual foram abatidas seis pessoas, incluindo o primeiro-ministro António Granjo e Machado Santos, o herói da Rotunda. 
        O episódio foi interpretado e estudado amiúde ao longo deste centenário, desde o opúsculo de Berta Maia sobre as suas conversas com o «Dente de Ouro» (As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio, o ‘Dente de Ouro’) à reflexão de Bourbon e Meneses sobre o caso (Os Crimes de 19 de Outubro), passando pela reconstituição de Consiglieri Sá Pereira (A Noite Sangrenta) e pela obra importante de José Brandão (A Noite Sangrenta), não esquecendo a peça de teatro premiada de Hélder Costa (O Mistério da Camioneta Fantasma). 
        Este contributo é infinitamente mais modesto. Nas semanas subsequentes à matança, foi divulgada uma gravura nas páginas da imprensa. O jornal A Imprensa da Manhã, que ajudara a acicatar os ânimos e que, no próprio dia da chacina, apelara à audácia dos revolucionários à maneira de Danton, publicou-a. O desenho tornou-se, de alguma maneira, o ícone do episódio. Representa Granjo no Arsenal da Marinha, indefeso perante a turba que o executa a sangue frio e não costuma ser creditado. 
        Tudo indica, porém, que a ilustração foi criada pelo jovem Leitão de Barros, então com 25 anos e à procura de uma oportunidade profissional. O gravador terá sido Martins Barata. Não só o crédito de ambos figura nas páginas do jornal de 11 de Novembro de 1921 como Barros é protagonista de uma carta surreal no dia 27 – carta essa que, adivinho, bem gostaria de varrer para debaixo do tapete nos anos seguintes. 
        Leitão de Barros terá então escrito ao jornal, queixando-se: «Como sou desenhador e ganho dinheiro desenhando, entendi que tinha o direito de exercer a minha profissão executando a iconografia dos sucessos da noite de 19 de Outubro. Nada absolutamente tenho nem quero ter com política», dizia. 
        «Segundo os relatos de alguns jornais, reconstituí o crime de que foi vítima António Granjo, ex-Presidente do Conselho, tendo todo o cuidado de desenhar apenas figuras perfeitamente anónimas para não levantar suspeitas ou ferir injustamente quem quer que fosse. Segundo o relato do ministro da Marinha do governo Manuel Maria Coelho, era um facto que indivíduos vestidos de marinheiros tinham tido acção neste caso, motivo porque lá aparece realmente uma figura fardada» – continuava. 
        Leitão de Barros lembrava que também no regicídio de 1908 se reconstituíra o atentado em todo o mundo sem que ninguém se sentisse lesado. Desta vez, porém, a Marinha sentira-se vexada. «Pois, senhor redactor, acabam de me proibir de vender os postais que reproduzem o desenho publicado pela Imprensa da Manhã (que aliás não foi apreendida e fez até duas edições) e de intimar a Casa Paulo Guedes a retirar das suas montras o original desse desenho.» 
        O desenhador sentia-se atacado na bolsa. «Com que direito se pode proibir um pacato cidadão que paga os seus impostos o exercício da sua profissão? Quem me indemniza dos prejuízos que tal proibição me causa? (…) O público que ajuíze e eu que pague… e me cale.»

A Imprensa da Manhã, 27 de Novembro de 1921

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