domingo, outubro 31, 2004

19 anos

A Quercus completa hoje 19 anos de vida. É impensável imaginar agora a discussão ambiental sem este parceiro de todas as horas, elemento indispensável que representa a sociedade civil e a acção cívica desinteressada em defesa do Ambiente.
Começou com a mera pretensão de promover acções de conservação da natureza, mas cedo percebeu que a sua área de intervenção poderia e deveria ser mais ampla, abraçando a agora popularizada noção de desenvolvimento sustentável.
Ao longo destes anos, e por inerência também de um projecto de investigação que realizei no âmbito da tese de mestrado, acompanhei o crescimento desta associação. Proponho-vos hoje um exercício de recordação:
A melhor acção: É discutível, mas o processo de contestação à entrada do navio de pavilhão cipriota no porto de Leixões em 2000 está na minha lista de preferências. Bem coordenada, com contornos espectaculares e com forte impacte em todos os meios de comunicação, esta abordagem à embarcação que transportava madeira exótica ficou na minha memória. Anos mais tarde, conheci o intrépido activista que chegou a ser preso nesse dia. É hoje um amigo e um colaborador da publicação onde trabalho.
A maior vitória: Escolho duas. A consagração constitucional do direito à não caça dos proprietários de terrenos foi essencial. Por pressão da Quercus e outros agentes, conseguiu-se, pela primeira vez, consagrar este direito, tão evidente como difícil de obter. Por outro lado, destaco também a criação do Parque Natural do Tejo Internacional, iniciativa de grande fôlego, com forte cunho da Quercus, que partiu para o terreno, adquiriu hectares e ofereceu-os a acções de conservação e educação ambiental.
O pior momento: Julgo que a maioria dos dirigentes da Quercus não esconde que o pior momento foi vivido com a difícil saída de alguns dirigentes em meados da década de 1990. A perda de quadros e sobretudo a saída de alguns elementos para a trincheira dos opositores constituíram os momentos mais negros da vida da associação.
A batalha mais longa: A contestação à central de co-incineração de Souselas. Nem sempre foi bem articulada, nem sempre foi bem explicada. Mas não restam dúvidas de que a Quercus tirou desta batalha o seu certificado de habilitações para acções de grande envergadura, extremamente desgastantes e complexas.
A acção mais divertida: É uma escolha muito pessoal, porque assisti de perto ao processo. A contestação em pijama nos relvados da Alameda da Universidade, em Lisboa, contra o ruído intenso provocado pela circulação aérea nas horas nocturnas foi muito engraçada. Inesquecível a visão de alguns dos actuais responsáveis da associação em pijama de listas, entrevistados por repórteres encasacados e incrédulos.

Aqui ficam então os parabéns pelo 19.º aniversário. Que a Quercus conte muitos mais.

sábado, outubro 30, 2004

Bem-vindos às estradas da Brisa

Começo por dizer que tenho a pior das impressões da empresa Brisa, gestora de auto-estradas no nosso país. Normalmente, só ouvimos falar da empresa em três circunstâncias mediáticas: quando ela anuncia gigantescos lucros de actividade anual; quando ela impõe aumentos grotescos no preço das portagens, sem apelo nem agravo; quando ela se esquiva a arcar com as responsabilidades por acidentes ocorridos nos traçados por ela geridos e por deficiências de segurança da sua responsabilidade. Hoje, cabe-me também dar conta da inesquecível experiência de conduzir numa estrada da Brisa.
Sábado, manhã enevoada. O tempo não convida, mas um inesperado compromisso levou-me a seguir de urgência para o Norte. O destino previsto era o Entroncamento, mas, como depressa perceberão, nunca lá cheguei. Expliquemos.
Às 11h30, a fila de trânsito começava ainda em Lisboa, em plena Segunda Circular, junto ao nó do Campo Grande. Coisa normal, pensei, para um início de fim de semana alargado e marcado pela deslocação de milhares de lisboetas ao Norte. Segui, confiante, estrada fora. Eram 11h30, repito.
A fila compacta não foi escoando como de costume. Por vezes, vagarosamente, como uma cobra no período mais lento do seu metabolismo, a fila dava pequenas sapatadas e lá avançávamos 500 metros. À medida que os ponteiros do relógio marcavam o início do meu atraso, fui sintonizando repetidamente os postos de rádio que encontrei. Sem informações para dar, fui ouvindo música, mais música, sempre música.
12h30: sete quilómetros percorridos. Os primeiros condutores exasperados estão prestes a explodir à mínima faúlha. Felizmente, uma bátega de água, com pedrinhas de granizo à mistura, contribuiu para que voltássemos todos, beligerantes e espectadores, para o calor dos carros. Como um rebanho confinado a um corral exíguo, milhares de veículos permaneceram imóveis, à espera de ordem para prosseguir.
Duas horas depois de cada engarrafamento, começam normalmente os boatos. A culpa é deste ou daquele. Dos velhos que andam devagar e esbarram nos rails. Das senhoras que conduzem sem cuidado. Dos adeptos do tuning que transformam as estradas em pistas. Do governo. Da oposição. Os motivos da paragem também intrigam. Um acidente. Muitos acidentes. Um viaduto caiu. Uma operação stop. Obras na estrada. Uma manifestação de ambientalistas (sugestão que escutei, afianço, embora não compreenda exactamente por que motivo alguma ONGA desejaria fechar uma estrada em dia de chuva). Uma greve da Brisa.
14h. Já lá vão duas horas e meia de insuportável lentidão. Nas rádios, ninguém parece dar conta de mais uma crise nas estradas da Brisa. Alguém debate a crise dos transportes públicos na antena. Apetece-me arrancar cabelos às mãos cheias. Andei 21km e a esta hora já devia estar no meu destino.
Meia hora depois, uma placa sinaliza um número de atendimento da Brisa. Ligo sofregamente. Procuro disfarçar a irritação e fico a saber que um camião tombou ao quilómetro 92. O conteúdo derramou sobre as duas faixas. A funcionária não sabe dizer o que era o conteúdo - fardos de palha ou lixo tóxico? Não sabe indicar itinerários alternativos. Não sabe estimar o tempo de espera. Não sabe explicar por motivo não está um representante da Brisa na antena, explicando o sucedido e dissuadindo outros desgraçados a viajar para esta armadilha.
Espalho rapidamente a informação à minha volta. Alguns condutores ligam apressadamente para o mesmo número e insultam, com personalidade, a operadora. Penso em fazer um pequeno discurso sobre auto-estradas exíguas para um parque automóvel gigantesco e sobre circulação de pesados mal acondicionados e com cargas perigosas nestas estradas, mas detenho-me a tempo. As veias no crânio desprovido de cabelo do condutor à minha direita trepidam e não antecipam nada de bom. Limito-me a minar o nome da Brisa, o que sempre é serviço público.
O resto, acredito, o leitor adivinha. Lenta, lentamente percorri escassos quilómetros enquanto imaginava a carga do malfadado camião e me deleitava com o que eu gostaria de lhe fazer. Cheguei ao desvio para Torres Novas às 15h50, mais de quatro horas depois do previsto.
Pelo meio, passei por painéis electrónicos, belíssimas peças de equipamento, culto da tecnologia de ponta de que a Brisa se mune, mas infelizmente desligados. Soube entretanto que, mais a sul, perto de Santarém, pedaços (!) de um viaduto caíram no asfalto, cortando a circulação nos dois sentidos por mais umas horas. Aparentemente, os viadutos da Brisa caem que nem tordos.
Hora mais tarde, ligo o computador. Leio as notícias e páro embasbacado: "Os Lucros da Brisa Cresceram 61% no Primeiro Semestre de 2004" - leio num título.
Devia ter levado um pedaço do viaduto tombado. É capaz de valer dinheiro...

sexta-feira, outubro 29, 2004

A quem interessa a privatização das Águas de Portugal?

Lisboa é um turbilhão de mexericos e insinuações. Nas mesas e telefones das redacções, amontoam-se pistas deixadas por fontes anónimas ou identificadas, mais ou menos sérias, mais ou menos interessadas. Naturalmente, a minha mesa não foge à regra.
Debruço-me hoje sobre uma das conclusões das jornadas parlamentares do Partido Comunista Português (PCP) em Aveiro. O polémico Bernardino Soares anunciou que o PCP pedirá uma audição parlamentar sobre a reforma da gestão do lucrativo sector das águas. O pedido de discussão parlamentar promete e é tudo menos inocente. A privatização da empresa Águas de Portugal exige uma série reflexão, que possa encontrar a resposta à incontornável pergunta: em que medida a privatização melhorará o serviço prestado pela empresa?
A água não é uma mercadoria, disseram os responsáveis do PCP. Concordo. O sector da água é demasiado vital para ser colocado no mercado e para ser concessionado a um grupo de empresas e indivíduos. A água é um bem estratégico e é impensável que o Estado abdique da sua gestão. Como lidará um futuro governo perante uma crise de contaminação de determinado serviço de abastecimento? Que tipo de responsabilidades serão assacadas à empresa gestora? Quem assume a responsabilidade de resolução de uma crise de saúde pública, resultante da má vigilância ou conduta de um privado?
O PCP apresentou um trio de medidas que me parecem absolutamente vitais, embora as propostas comunistas de Aveiro tenham sido apagadas do espectro mediático e tenham visto luz apenas num terço de página do "Público".
1) Pedem os comunistas que, se a privatização avançar, o Governo imponha no caderno de encargos a divulgação regular de todas as análises do conteúdo da água para consumo humano. Nada mais justo. Um consumidor informado é um consumidor tranquilizado. Se tivermos um caudal de informação correcta e regular, temos instrumentos para medir a qualidade da água que ingerimos. Aliás, nunca se percebeu por que motivo estas análises são mantidas em gavetas e não afixadas na Internet. Será legítimo especular que, até agora, nem todas as análises reflectiram água consumível?
2) O PCP incentiva também o Governo a publicitar todos os contratos de concessão que impliquem utilização do domínio público hídrico. É um pedido natural, mas que, a ser concedido, tem o poder de uma bomba-relógio. Voltamos aos rumores que circulam nas redacções: se soubermos quem utiliza a água pública após a privatização, teríamos nós a surpresa de ver nomes conhecidos? Veríamos a quem aproveitou a privatização? Perceberíamos melhor a argumentação privatizadora? Percebo e respeito o pedido do PCP. Duvido que ele seja satisfeito e respeitado integralmente.
3) Por fim, os comunistas solicitam a revisão do Plano Nacional da Água, medida essencial de defesa dos direitos dos actuais e futuros consumidores num sector instável e que provavelmente apresentará sintomas de ruptura durante o século XXI
Chamo a atenção para a notável investigação de Filipe Duarte Santos sobre os cenários resultantes das alterações climáticas no século XXI. No capítulo dos recursos hídricos, a equipa deste docente da Universidade Nova de Lisboa escreve o seguinte (tradução do original inglês da minha autoria): "O previsível decréscimo do caudal dos rios no Sul de Portugal à medida que se aproximar o fim deste século, associado à crescente assimetria espacial e temporal da distribuição dos recursos hídricos, pode ter consequências dramáticas e, portanto, deve ser alvo de enorme preocupação." Chove cada menos. As reservas esgotam-se. A seca agudiza-se nas regiões áridas. A água será, não duvidem, um bem estratégico. Da sua posse resultarão tensões sociais, de impacte imprevisível.
No tempo que falta desta legislatura, tomemos nota da importante, mas aparentemente marginal, discussão sobre a privatização das Águas de Portugal. No parlamento, jogar-se-á o futuro. E lamentavelmente, o futuro comercializa-se.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Cortar a eito

Há um velho adágio político, tão válido hoje como há cem anos, quando foi enunciado. Reza assim: Nunca fales quando estás zangado; caso contrário, farás o melhor discurso de que alguma vez te arrependerás!
Ontem, no decurso da VIII Conferência Nacional de Ambiente, o ministro Luís Nobre Guedes tomou uma forte posição contra os lobbys instalados e estou em crer que, nos próximos anos, o feitiço voltar-se-á contra o feiticeiro. Nobre Guedes falou sem prudência. E isso costuma ser fatal.
Provavelmente, Nobre Guedes cuidou que estava apenas a falar para uma plateia selecta, de público predisposto a embarcar numa aventura dialéctica que impulsionasse o Ambiente para o topo da agenda. Erro. Todos os microfones devem ser tratados como um ser vivo, dizia o velho ministro Jim Hacker, na série "Yes, Minister". E este foi potencialmente devorador, pois gravou palavras que estão hoje estampadas nas páginas de todos os jornais nacionais.
E o que disse Nobre Guedes? Comprometeu-se a enfrentar interesses monumentais instalados, sugerindo que os adversários do Ambiente começam no Conselho do Ministro (!?) e estendem-se pelo tecido empresarial e autárquico. Lembrou que o seu ministério é o mais mal amado dentro do governo, o que, parece-me, evocou a recente discussão ministerial das opções energéticas do país: as propostas dos Ministérios da Ciência e Ensino Superior e das Actividades Económicas nem passaram pela tutela ambiental, embora implicassem terríveis impactes no ordenamento do território e nos ecossistemas onde fossem implantadas as soluções nucleares e/ou hidroeléctricas. Nobre Guedes foi ultrapassado na semana passado e explodiu agora.
O ministro disse mais: sugeriu que vai começar a demolir as urbanizações ilegalmente construídas dentro da esfera das áreas protegidas (faltou talvez explicar se vai dar o exemplo máximo e arrasar a sua própria casa, perto de Azeitão!). Anunciou que vai cair o "Carmo e a Trindade" e, pareceu-me (mas a declaração foi suficientemente dúbia para gerar equívocos), prometeu a defesa da inviolabilidade da REN e da RAN. Ofereceu-se ainda para servir de pedagogo ambiental, viajando de lés a lés pelo país, esclarecendo, animando e ajudando. Como diria Arnaldo Matos, educando.
As palavras são corajosas, mas não creio, por um instante, que sejam totalmente sinceras. Desafio o ministro a provar que daqui a um ano a revisão do estatuto do REN, promovida por Sidónio Pardal, não terá sido aprovada; desafio-o a mostrar, daqui a 12 meses, as casas terraplenadas no PN Arrábida e no PN Ria Formosa; desafio-o ainda a apresentar sucessivas propostas sustentáveis, mas politicamente difíceis, no seio do Conselho dos Ministros, demonstrando que ninguém cala o Ambiente e os seus promotores.
No final do colóquio, o ministro disse que teria sido mais prudente não abrir determinadas gavetas no ministério. Como as abriu e é um ministro que "detesta a tecnocracia" (sic), não as voltará a fechar sem ter resolvido cada pasta. Receio bem que, daqui por uns meses, o próprio Nobre Guedes estará fechado no tradicional gavetão reservado aos bem-intencionados, aos impetuosos e aos incontinentes verbais. Não seria o primeiro.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Irresistível

Mão amiga fez-me chegar o seguinte anúncio público. Cumpro o dever patriótico de o divulgar pela blogosfera:

«Em virtude de Sua Excelência o Presidente do Governo Regional ter dado tolerância de ponto para a tarde de hoje aos funcionários públicos da administração regional das ilhas Faial e Pico, devido à realização do jogo de futebol Madalena -  U Leiria. Por autorização do Magnífico Reitor da UAç.
A respectiva dispensa é extensiva aos funcionários da UAç-Horta»

A César o que é de César. Desconheço se o Madalena ganhou o jogo.

segunda-feira, outubro 25, 2004

O pai tirano

A leitura que continuo a fazer do Orçamento de Estado (OE) para 2005 (leitura, aliás, que recomendo para avós e bebés, como diria um dos ministros) desperta mais inquietações. Verifico agora a situação perigosa a que o executivo votou as energias renováveis, mas suponho que o problema não deve ser grave. Da imprensa que consultei, apenas o "Jornal de Notícias" de 21/10 dedicou meia página ao assunto. É pouco para a avenida de risco que agora se abriu, mas talvez reflicta o abandono do sector, verdadeiro enteado das preocupações do Estado.
Ao contrário do que se esperava, ao contrário do que o Estado se comprometeu perante a União Europeia e agentes do sector, ao contrário ainda do que as declarações ocas de apoio ao sector da energia renovável faziam prever, o OE recusa atribuir mais incentivos aos projectos sustentáveis de exploração de energia.
Assim, prevê-se apenas:
- um investimento (suponho que, mesmo este, a contragosto) de seis milhões de euros no sector. É exactamente a mesma verba do que em 2004, pelo que suponho que os organismos de Estado que se dedicam à investigação continuarão com a corda na garganta, sem dinheiro para as despesas básicas, com a indignidade de os investigadores pagarem do seu bolso as deslocações de trabalho e com as entradas de novos elementos para o quadro perpetuamente congeladas.
- benefícios fiscais de 30% na aquisição de equipamentos novos para exploração energética, mas com um tecto máximo de 728 euros/ano
Apesar disso, estabelecem-se metas vigorosas para o sector, sobretudo para a energia eólica, como se o crescimento de utilizadores nascesse por geração espontânea. Aqui ao lado, em Espanha, Zapatero deu continuidade às medidas de Aznar e manteve a redução de IVA para a aquisição de equipamento novo ou de manutenção destinado ao aproveitamento de qualquer fonte renovável. Quer isto dizer que um espanhol paga apenas 5% de IVA na compra de um painel solar, o mesmo valor que uma empresa de exploração de energia eólica pagará no acto de compra de componentes de uma turbina. Em Portugal, pagam-se os 19% da ordem.
Mas, repito, essa tacanhez orçamental não nos impede aparentemente de ter vistas largas. E assim toca de espicaçar os agentes de mercado, colocando metas mais agressivas, na esperança de que um milagre das rosas transforme as fontes da EDP em turbinas, mantendo fé de que Nossa Senhora de Fátima logre a mutação dos aquecedores a gás em modernos colectores de energia solar e de que o nosso consumo de gasolina seja transformado pelo mágico Luís de Matos numa utilização sã de biodiesel.
A nota emitida pelo Ministério das Actividades Económicas, tutelado pelo excelso Álvaro Barreto, apontou baterias para 39% da produção eléctrica do próximo ano em Portugal com base em energias renováveis (a quota actual cifra-se em 28%). É obra!
Não deixa de ser curioso que a mesma fonte não estabeleça quaisquer exigências para empresas estatais ou privadas. E porque não obriga Barreto os novos edifícios licenciados pelas autarquias (com determinada volumetria) a apresentar painéis solares? E porque não obriga o ministro as empresas estatais a gerir melhor a sua energia, motivando aproveitamentos mais racionais e premiando os cumpridores? E, já agora, porque não facilita Barreto a transição entre a investigação do sector (porque ela existe em Portugal e está de boa saúde) e a aposta empresarial, com incentivos reais e penalizações para as empresas que a longo prazo esquecerem a sua responsabilidade social?
A tudo isto, o ministro faz vista grossa e deixa ao cuidado de pequenos promotores ou de autarquias diligentes a execução de propostas válidas. Em Santarém, com visão e sem grande esforço, a edilidade local obriga os novos edifícios a captar uma percentagem (julgo que 40%) da energia dispendida através de colectores solares. Não custa muito, mas não se faz. As metas foram estabelecidas por este pai tirano, que acabou de cortar a mesada aos filhos, mas, mesmo assim, lhes exige o sucesso que ele nunca ousou obter!
Voltarei ao tema.

domingo, outubro 24, 2004

O velho silogismo do Côa

Em política, há um falso silogismo que frequentemente é colocado em prática por ministros ávidos de mostrar serviço. Traduz-se na fórmula jocosa: Todos os gatos têm quatro patas; o meu cão tem quatro patas, logo... o meu cão é um gato! Em linguagem política, o silogismo traduz-se em: Tenho de fazer alguma coisa! Este dossier é alguma coisa, logo tenho de fazer este dossier. O raciocínio turvo aplica-se desta vez à anunciada tentativa de recuperar o projecto hidro-eléctrico do Côa.
Como é público, o último Conselho de Ministros discutiu (mas não aprovou) duas propostas de resolução da crise energética nacional, substanciada na excessiva dependência do petróleo que não temos. A proposta de Álvaro Barreto defendia a criação de uma central nuclear (ver a nota que escrevi ontem); a segunda proposta, anónima segundo a imprensa, debatia a recuperação do projecto hidro-eléctrico no rio Côa - o mesmo que fora abandonado no primeiro ano do governo de António Guterres, na sequência da intensa campanha popularizada pelo slogan "as gravuras não sabem nadar".
O que mudou nestes oito anos que possa validar a reapreciação do velho plano da EDP? O caso Côa produziu claramente vencedores e vencidos e não me custa a acreditar que a iniciativa deste projecto tenha partido de algum amargurado político social-democrata da altura. O Côa, as suas gravuras e o seu património cultural são espinhas enfiadas na garganta de alguns filisteus, que não compreendem como a EDP foi ultrapassada em nome de um interesse não tangível, como é o património artístico do vale do Côa.
Mas creio que há algo mais profundo nesta história. A barragem do rio Sabor (o último verdadeiramente pristino em Portugal) foi a contrapartida que o Estado cedeu então à EDP como compensação pelas verbas já investidas em Foz Côa. Há dois anos que a plataforma pelo rio Sabor, que engloba associações de defesa do ambiente, autarcas, académicos e populações mobilizadas, tem feito intensa campanha pelo abandono do projecto. E como sempre acontece nas campanhas cívicas bem organizadas, o problema ganhou notoriedade e simpatia e move agora dezenas de interessados, contando também (é bom lembrá-lo) com meios de comunicação sensibilizados para a causa e para a polémica.
Não vou discutir para já os méritos e deméritos da barragem do rio Sabor (ficará para uma nota futura). Mas não me custa a acreditar que as recentes propostas veiculadas nos meios de comunicação - a imbecilidade da aposta nuclear e a incongruência do regresso ao Côa - tenham sido utilizadas como moedas de troca, males maiores invocados para lembrar às plataformas de defesa do rio Sabor que o governo vai mesmo satisfazer a EDP, seja no Sabor ou no Côa. A ver vamos, porém, se no decorrer deste jogo de póquer alguém fez um bluff maior do que as suas capacidades...

sábado, outubro 23, 2004

Desventuras do ministro não renovável

Num programa de acção nacional, há determinadas áreas vedadas, independentemente da orientação política do(s) partido(s) que lidera(m) o governo. Não se decide invadir Espanha por um conflito de armadores de pesca nos Açores; não se dinamita Luanda se Angola não pagar a dívida externa; não se determina um alerta de calamidade nacional se três pessoas entrarem num hospital com salmonela. Até ontem, pensávamos todos que também não se incluía a solução nuclear no pacote de opções energéticas possíveis, sobretudo quando o resto do globo se vê a braços com problemas terríveis de resíduos tóxicos e contaminação de áreas envolventes de centrais nucleares. Álvaro Barreto e Graça Carvalho, respectivamente ministros das Actividades Económicas e da Ciência e Ensino Superior, mostraram que afinal o leque de truques no arsenal político é mais amplo. E a velha ideia de Barreto voltou a ser discutida em Conselho de Ministros.
Confesso que encarei a escolha de Álvaro Barreto para ministro como um péssimo sinal para o ambiente em Portugal. Até então, cuidara que a célebre aposta no "ouro verde" de Portugal, discurso que marcou as políticas florestais da década de 1980 e que teve como brilhante resultado a eucaliptização do país e a consequente escalada de fogos anuais, marcara a sepultura da sua carreira, tamanha tinha sido a asneira. Mas não.
Barreto é um opositor das energias renováveis. Sempre o foi. Barreto é um defensor dos petróleos. Sempre o foi. Mas mesmo mais o empedernido filisteu poderia ter evoluído, sobretudo se tivesse percebido que as alterações climáticas e a crise energética são hoje problemas reais e não meras projecções para o século XXI. Barreto pensa que não. A solução para a nossa dependência doentia do petróleo alheio é agora a criação de centrais nucleares. Nunca da boca de Barreto se ouviu uma linha sobre racionalização energética, reciclagem de resíduos e materiais, apoio a fontes de energias renováveis, sanções a indústrias poluidoras. Barreto vive nos anos 1950 e, tal como a jangada de pedra de Saramago, afastou-se à deriva do mundo real.
Mas se Barreto já estava posicionado na grelha política, o mesmo não sucedia com Graça Carvalho. Intrigou-me o apoio entusiástico da Ministra da Ciência e do Ensino Superior, a mesma pessoa que, enquanto investigadora do Instituto Superior Técnico, fez parte de um fantástico projecto de teste da utilidade do hidrogénio como combustível para os transportes públicos do Porto e de mais três cidades europeias.
Diz-nos a imprensa de ontem e de hoje que foi Graça Carvalho quem propôs a solução nuclear, mas a ministra, embaraçada, não comentou a notícia no final do Conselho de Ministros. São precisos dois para dançar o tango, dizem os ingleses. Barreto encontrou a sua parceira.
Desconheço totalmente se há sensibilidade no actual conjunto de ministros para barrar este projecto louco. Houve, pelo menos, algum bom senso na recusa da aprovação instantânea, como se a opção de um país pela energia nuclear fosse uma mistura imediata de leite e Ovomaltine - decidimos e avançamos no dia seguinte.
Mas não deixa de ser profundamente irónico constatar a disparidade de pessoas e práticas no actual elenco governativo. Na mesma semana em que o secretário de Estado adjunto do Ministério do Ambiente anunciou novidades, cautelosas mas mesmo assim benéficas, na discussão europeia do comércio de emissões, alguns colegas pouco solidários propuseram uma solução nuclear para a crise energética nacional. Talvez num dia próximo escutemos Álvaro Barreto dizer que o país avançará alicerçado no ouro atómico. É suficientemente tonto para isso!

quarta-feira, outubro 20, 2004

Maçadores por deformação

Já fazia falta e era estranhada em diversos sectores: o ano de 2004 estava a findar, e a peculiar Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) ainda não tinha proferido uma declaração absurda. Pois cá está ela e, desta vez, a sorte grande saiu ao Instituto da Conservação da Natureza.
Ora diz a ANMP que o recente decreto-lei que dá seis anos aos Planos Directores Municipais (seis anos, senhores, seis anos)para se adaptarem às exigências das directivas europeias e habitats não chegam e obrigarão os municípios, logo a ANMP, a pagar nova revisão dos PDM ainda agora revistos. A culpa, dizem os responsáveis autárquicos, é do Ministério do Ambiente (que não promoveu a legislação a tempo). Ao mesmo tempo, argumentam ainda os senhores autarcas, o ICN, com esta aborrecida mania de tudo proteger e classificar, só dá prejuízos às esclarecidas autarquias do nosso país.
Winston Churchill desabafou um dia que, se um democrata passasse cinco minutos regularmente com um eleitor de rua, perderia rapidamente o gosto pela defesa da democracia. Atrevo-me a dizer que se o estadista inglês tivesse convivido com a nossa ANMP teria sérias dúvidas sobre a necessidade de escutar este tipo de parceiros da sociedade civil.
A ANMP é, por definição, uma figura obscura, sem utilidade visível. O país não foi regionalizado e as juntas metropolitanas têm capacidade para gerir problemas transmunicipais. Por outro lado, a mera concepção do conjunto das nossas mais de 300 autarquias a remar para o mesmo lado provoca-me gargalhadas. Gaia e o Porto, Amadora e Sintra, Loures e Odivelas comungando dos mesmos interesses?
A ANMP é um fantasma, uma não-organização. E, pior do que isso, uma não-organização maçadora, que gosta de lançar a confusão. Adaptando Churchill, nunca tão poucos chatearam tantos no decurso da história!
Desmontemos a argumentação. Seis anos chegam e sobram para adaptar a legislação às exigências comunitárias. Parece pouco? Estas exigências fazem parte da "cartilha europeia" desde a nossa adesão. Simplesmente, a esmagadora maioria dos filiados da ANMP escolheu ignorá-las. O PDM já é desrespeitado de qualquer maneira, de norte a sul, de leste a oeste. Mais uns anos de irregularidade não provocarão estragos.
Mas a atoarda ao ICN traz água no bico. Como um abutre pairando sobre o moribundo, a ANMP cheirou o drama. Sabe que pode tirar dividendos do enfraquecimento das posições do ICN, minando-lhe a credibilidade (lá ouvimos outra vez o discurso dos "tontinhos da ecologia", que protegem mato seco e meia dúzia de aves que se calhar até gostam de conviver com estradas e prédios altos!). A isso, espero, o Ministério do Ambiente responderá com uma palavra de confiança sobre o papel do ICN. Deve-lhe pelo menos isso.

terça-feira, outubro 19, 2004

Um tolo, três peritos e um ministro-sombra

Desculpem-me as palavras rudes do título, mas esta foi a minha primeira reacção quando comecei a digerir o "Prós e Contras" de ontem, programa da RTP dedicado ao ambiente e desenvolvimento sustentável em Portugal.
Proponho um exercício dramático: apresentarei os personagens do enredo como se de uma peça de teatro se tratasse. Acompanhem-me por isso se quiserem perceber o que se passou ontem nos estúdios da televisão estatal.
Fátima Campos Ferreira é a apresentadora. Pelo próprio formato do programa, é obrigada a dominar temáticas radicalmente diferentes de semana para semana. Esforça-se por atirar alguns números para cima da mesa, mas não percebe quase nada do que é dito. Fica radiante quando um dos convidados pega na sua deixa e lhe diz qualquer coisa como "Ainda bem que me pergunta isso". Passou duas horas a prometer que se falaria de energia e basicamente gastou dois minutos com o tema (intervenção de Carlos Pimenta). Repete ad eternum a fórmula "Senhor ministro, o que tem a dizer?" - a dado ponto fez lembrar o lendário "Juiz Decide", dos primórdios da SIC. Terminou com um sorriso dos grandes, dizendo que este programa encarna "a nossa missão e o espírito de serviço público". Caramba! Tanto também não.
Carlos Pimenta foi ministro do Ambiente e, para muitos, foi o melhor de sempre. Fartou-se rapidamente de remar contra a maré petrolífera que sistematicamente domina todas as políticas energéticas dos governos de esquerda e direita e decidiu fazer o mais certo: fugiu da vida política e foi ganhar dinheiro. Está ligado a um consórcio de exploração de energia eólica e foi uma das personagens mais interessantes do programa. Estava porém irritadíssimo e gritava a plenos pulmões em cada intervenção. A dado ponto, se o deixassem, teria enfiado uma turbina eólica pela garganta da Fátima Campos Ferreira. Sobretudo quando ela lhe dizia "Só mais um bocadinho, sotôr, já lhe passo a palavra."
Viriato Soromenho-Marques é um ambientalista dedicado e outra excelente aquisição para o programa de ontem. Falou com propridade porque é talvez o maior especialista nacional em política ambiental, nomeadamente nos passos (poucos) que demos de legitimação do tema na agenda política e dos passos (muitos) que ainda faltam. Não posso troçar dele. Considero-o meu amigo (é um privilégio que os blogs nos fornecem - troçamos só de quem queremos!)
Luís Nobre Guedes é o actual ministro, o quarto de uma legislatura que ainda só leva dois anos. Vinha satisfeito porque alguém lhe tinha passado um papel com o total de emissões gasosas industriais em 2003, mas poderia começar por aprender a não dizer "emissões de estufa". Transmite, com isso, a ideia de que está a falar de plantações de morangos. Esteve atento ao que se dizia, com pose ministerial, mas levou uma bordoada de Luís Schmidt mesmo a acabar o "show", quando a socióloga, no remate final, falou de casas aprovadas e casas chumbadas ao sabor da corrente e cujos critérios ninguém percebe. Quando o filmaram depois do "take" precioso, ainda estava a consertar o maxilar na sequência desse "uppercut".
Pedro Silva Pereira é, há dois anos, o ministro-sombra do Ambiente. Quando soube que haveria um frente a frente entre ele e Nobre Guedes, fiquei com o mesmo ar dos adeptos do Benfica depois lhes sair em sorte o Oriental na Taça de Portugal. Vai dar goleada! Afinal, a vantagem traduziu-se em pontos residuais. Nervoso, interrompeu o ministro vezes sem conta. Viu-se que não fazia ideia se o número que o ministro atirou ao ar era real ou não, mas não arriscou. Deveria ter-se escangalhado a rir depois de ouvir Nobre Guedes dizer que deseja que este governo seja reconhecido como o "do desenvolvimento sustentável". Limitou-se a sorrir delicadamente, numa pose de aspirante a estadista. Mas definitivamente Pedro Silva Pereira não é o novo José Sócrates.
Por fim, Luísa Schmidt. É brilhante, racional e metódica. Não está muito à vontade em televisão, e o remate final foi feito aos solavancos, como se tivesse soluços. Mas compensa a lacuna fotogénica com um domínio tremendo das pastas em que se envolve. A sua intervenção valeu pela "murraça" que inflingiu ao ministro quando a cortina se preparava para cair. A sua recente investigação, publicada em livro e guião de quatro documentários, fala por si. Deveria ter sido ela a conduzir o debate e escusávamos de ter ouvido a Fátima dizer sabiamente que "vai há muitos anos ao vale do Ave em trabalho, e outros colegas também vão, e aquilo está cada vez pior".

Tudo somado, não me interpretem mal, valeu a pena passar o serão a ver o "Prós e Contras". Esperemos pelo próximo.

domingo, outubro 17, 2004

Como ler o Orçamento para 2005?

Quando passei os olhos pela proposta governamental para o Orçamento de Estado de 2005, confesso que tive de reler algumas parcelas. Intrigou-me sobremaneira a rubrica do Ambiente. Não esperava, até pelos sinais negativos que fui escutando desde meados de Setembro, um aumento percentual. Tinha esperança de que a dotação orçamental fosse semelhante ou pelo menos que não reduzisse substancialmente o que se gasta em Portugal. Mas não esperava um aumento de 30 milhões de euros.
Essa é a primeira conclusão (obviamente para a temática de que trata este blog) que extraio da proposta de OE para 2005 e dificilmente se poderão retirar leituras negativas deste facto concreto: o ministério de Nobre Guedes receberá mais 14% do que em 2004.
Há porém leituras que temos necessariamente de fazer. Sendo o Orçamento francamente optimista, é forçoso aguardar por uma reapreaciação no próximo ano e pela inevitável descida de valores. Mas, mesmo assim, este foi um sinal positivo que o executivo transmitiu para quem gosta e lida com o sector do Ambiente.
Esmiuçando a previsão de gastos item a item, o meu sorriso desapareceu. Na semana passada, tinha escrito neste cyber-espaço que o Instituto da Conservação da Natureza (ICN) estava à beira da ruptura e que necessitava de instrumentos financeiros reais para lidar com problemas estruturais gravíssimos. Infelizmente, a verba atribuída ao ICN desceu novamente - já lá vão três anos seguidos de redução da "mesada".
Perante isto, retiro portanto uma de duas conclusões: ou o documento que foi filtrado para os jornais apresentava um erro tipográfico e este valor não está correcto ou o Ministério do Ambiente está voluntariamente a emagrecer o ICN, enfraquecendo-o e minando a única entidade nacional de gestão da conservação. Espero sinceramente que João Silva Costa, presidente do ICN, se manifeste durante estes dias, explicando o que lhe vai na alma. Deve elucidar-nos se esta nova redução mereceu ou não o seu acordo. E, já agora, como vai pagar as facturas que se acumulam nas administrações das várias áreas protegidas, facturas essas que aguardavam pelo oásis de um OE mais reconfortante.
Enquanto esse dia não chega, recordo uma velha máxima de um especialista de endocrinologia: num ser humano (tal como num instituto público), emagrecimentos sucessivos só têm um resultado: também se morre de anorexia!

Uma nota de esperança

A semana que agora findou trouxe uma boa notícia para a gestão e conservação da natureza em Portugal, embora o relevo fornecido pelos media tenha sido incompleto. Não encaro esta boa nova como solução para todos os males, uma aspirina ecológica capaz de resolver todas as insuficiências, mas é indiscutivelmente um sinal de retoma... pelo menos de alguma sanidade na gestão desta pasta problemática.
No Luxemburgo, uma delegação do Ministério português do Ambiente, secundado por parceiros espanhóis e italianos, obteve uma vantagem negocial inesperada no processo do financiamento comunitário à Rede Natura. Expliquemos: a Rede Natura assenta no princípio de que a agricultura não está necessariamente de costas voltadas para a conservação, pelo que é possível desenvolver projectos agrícolas sem impactes negativos nos ecossistemas onde eles são implantados. Com o estabelecimento desta rede, os países comunitários pretenderam contribuir para a complementariedade entre estas duas áreas, gerando sinergias e emprego e fomentando a educação ambiental.
A rede resulta do genuíno empenho na conservação de recursos naturais e inclui dois tipos de classificação: as ZEC (Zonas Especiais de Conservação - incluem habitats naturais e espécies de flora e fauna) e as ZPE (Zonas de Protecção Especial - incluem populações significativas de aves selvagens e respectivos habitats).
Ora, a rede já existia, mas temia-se pela sua sobrevivência, na medida em que o seu financiamento estava ameaçado a partir de 2006. Do Luxemburgo, porém, surgiu fumo branco, e o financiamento da rede estará contemplado (e até reforçado) no QCA de 2007/2013.
Perante esta boa notícia, é fundamental agora estimular processos regionais de candidatura e convencer as comunidades agrícolas a aproveitar estes fundos sem esquecer a vertente ambiental. Será um esforço hercúleo, mas o Ministério do Ambiente, para já, está de consciência tranquila: dotou o interior de um instrumento válido de financiamento a médio prazo. Se ele é desbaratado ou inutilizado até 2013, serão contas de outro rosário. Mas importa agora que conservacionistas e agricultores deitem mãos à obra e decidam que candidaturas poderão ser apresentadas neste programa (deixando para o programa Life as iniciativas exclusivamente de protecção ambiental). Existe portanto uma bolsa de ar até 2013. É fundamental aproveitá-la porque pode ser a última...

sexta-feira, outubro 15, 2004

Não toquem na REN

Uma das candidatas a pior notícia do ano é certamente o processo REN, a restruturação da célebre Reserva Ecológica Nacional idealizada por Gonçalo Ribeiro Telles na década de 1970.
Admito que o tema não entusiasma políticos e intelectuais, peixeiras e padeiros, jornalistas e analistas. Mas o resultado das diligências que agora se travam terão impactes no ordenamento do território das próximas décadas.
Comecemos primeiro por dizer que a REN tem as costas largas. Virtualmente sempre que um construtor vê um projecto travado, sempre que um autarca sente uma negociata inviabilizada, sempre que um particular descobre que não pode expandir o telheiro ou a garagem por mais vinte metros quadrados, chovem pedras na direcção desta figura jurídica, uma espécie de motel da última oportunidade, a última barreira de sanidade antes da entrada na areia movediça.
A REN é arcaica, dizem-nos. A REN trava o investimento. A REN classifica e protege meia dúzia de metros quadrados de pântanos e dunas que ninguém usa. A REN é, por isso mesmo, uma pedra no sapato de muito boa gente e não espanta que a sua reapreciação tenha sido saudada por vários quadrantes do imobiliário.
À data em que escrevo estas linhas, não se sabe ainda que limites a nova REN terá. Não se conhecem os critérios que poderão ser invocados no futuro para desclassificar um terreno para construção ou ocupação. Mas teme-se, até pelas posições sinistras do principal entusiasta da revisão do estatuto (o professor Sidónio Pardal), que a REN se descaracterize e se torne uma figura moldável aos gostos de ocasião.
Admito que nem tudo na REN faz sentido. A legislação até chega a ser restritiva, porque o afã proibitivo veda a mais inocente intervenção numa área classificada. Mas não me esqueço de reconhecer também que se o território ainda não está totalmente desordenado, isso deve-se às restrições da REN.
Daqui a 20 anos, se o projecto do professor Pardal retirar o arame farpado que hoje em dia constitui a única protecção estatal para áreas de significativa importância ecológica, veremos uma falésia vicentina pejada de casas, uma serra da Estrela recheada de espaços lúdicos, zonas húmidas transformadas em áreas de navegação de lazer e, no cimo de tudo isto, uma monumental lápide com os dizeres: aqui jaz a valência ecológica portuguesa. Pereceu no dia em que o Estado deixou mexer na REN!

quinta-feira, outubro 14, 2004

As falácias do túnel do Marquês

Nas profundezas do centro de Lisboa, um buraco gigantesco desafia a compreensão, motiva agitados debates à superfície e constituirá certamente tema de jocosa leitura pelas gerações futuras.
Dos dois lados da barricada esgrimem-se argumentos – alguns correctos, outros falaciosos. A facção que apoia o túnel defende-se com a seguinte matriz teórica:
a) O túnel era inevitável para gerir a entrada e saída de automóveis através da linha de Estoril-Cascais.
b) O túnel constituiu uma importante ajuda para descongestionar o marquês do Pombal
c) O túnel insere-se na política de grandes obras e grandes soluções para a resolução de problemas complexos, idealizada pelo elenco que gere os destinos da Câmara Municipal de Lisboa (CML)
d) O túnel já está começado e portanto o recuo na obra não custará menos de 10 milhões de euros.
e) O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) recentemente concluído dá razão aos promotores do projecto.
Na outra trincheira, defendida essencialmente por movimentos cívicos de protecção do ambiente, associações de moradores e partidos da oposição, a argumentação baseia-se nos seguintes pontos:
a) O túnel era dispensável enquanto solução de gestão das chegadas e partidas de viaturas da linha Estoril-Cascais.
b) O túnel envia uma mensagem negativa à população, na medida em que legitima o transporte individual e privado em prejuízo do transporte colectivo.
c) O túnel é uma obra cara e provoca um desgaste prolongado na população residente ou que trabalha nas redondezas. Um projecto mais curto e construído mais perto da superfície poderia resolver o imbróglio.
d) Ainda não é tarde de mais para parar o túnel, independentemente dos custos.
e) O EIA sugere muita cautela e chega a sugerir soluções alternativas.
Sem defender cegamente o conjunto de argumentos de oposição ao projecto, considero que esta é de facto uma obra que deverá ser interrompida. E explico porquê: aborrece-me sobremaneira esta noção peregrina de começar os trabalhos de escavação sem qualquer noção do impacte da obra no trânsito da zona, abatendo árvores centenárias na zona contígua e desconhecendo lamentavelmente o impacte de um túnel de betão nas estruturas próximas do metropolitano e da EPAL.
Se o projecto avançar, existirá jurisprudência para qualquer outra entidade que decida avançar antes de se aborrecer com estudos prévios e antecipações de impacte ambiental. Será o fartar vilanagem pelos vários municípios deste país. E os EIA perderão de vez a réstia de dignidade que ainda os rodeia.
Mas há outro pomo de discórdia que exige clarificação. Para mim, é injustificável que apenas o "Público" e o "Expresso" tenham relatado com precisão as conclusões do EIA. No editorial de 13/10/04, o "Diário de Notícias" tem o desplante de subverter por completo as conclusões do EIA e anunciar que "já existe um estudo de impacte ambiental favorável que só aguarda aprovação do Instituto do Ambiente". O Estudo que eu li não diz isto. Não absolve a CML. Não aconselha a realização da obra. É portanto falacioso e irresponsável escrever que nada impede agora a realização da obra e que o pedido de um EIA foi um gesto absurdo e despesista de um advogado extremista. Uma posição destas é ainda mais indefensável porque a maioria dos cidadãos não lerá o EIA. Os lisboetas dependem dos media para obter as suas conclusões. E quando os media não cumprem a sua missão, a discussão pública do projecto inquina numa tremenda farsa.
Para que conste, o estudo é equilibrado e admite que o trânsito que sai da cidade para a A5 melhorará. Revela que se economizarão 300 mil horas/ano perdidas nos engarrafamentos da zona e que a circulação de superfície será beneficiada. Mas, ao mesmo tempo, os autores do estudo dizem que a saída do Marquês de Pombal pelo túnel será seriamente dificultada (não se antecipam horas perdidas no trânsito aí). O final do túnel, na Av. Fontes Pereira de Melo, provocará agravamentos da circulação com impactes até Palhavã e Saldanha. O túnel sugere ainda que muitos utilizadores dos transportes públicos voltarão a trazer o carro para a cidade num claro retrocesso a hábitos nocivos do passado (e depois do anúncio da Quercus de que a Avenida da Liberdade é a artéria mais poluída da cidade!). Por fim, os autores do estudo lançam sérias dúvidas sobre a segurança de um declive tão acentuado da estrutura. Se estes pontos constituem um balanço "favorável" ao túnel, como diz o DN, teria muito gosto em apreciar um EIA desfavorável à obra!?!
É fundamental portanto que todos (a favor e contra a obra) participemos na discussão pública. Para que também esta não seja uma formalidade, descrita en passant pelos situacionistas do costume.

segunda-feira, outubro 11, 2004

A longa sangria do ICN

A cada dia que passa, o Instituto da Conservação da Natureza (ICN) parece cada vez mais um barco à deriva. Não se infira daqui que critico técnicos e administradores da instituição. Tenho pelo ICN o carinho dispensado aos projectos inovadores, que rasgaram horizontes e impuseram práticas e conceitos inéditos no quadro do planeamento do território e da conservação da natureza em Portugal. Quem se recorda dos caóticos anos 1980 reconhece que a criação deste instituto clarificou, por fim, o que parecia não ter rei nem roque: o ordenamento do território do ponto de vista ecológico, de acordo com critérios estabelecidos pela brilhante Lei de Bases do Ambiente de 1987.
Há semanas, um professor da Faculdade de Ciências de Lisboa dizia-me que o ICN, com todos os seus defeitos e com todo o imobilismo resultado de uma estrutura pesada e onerosa, seria sempre preferível a qualquer solução de circunstância, fosse ela a direcção-geral de Ambiente, de Florestas ou qualquer organismo disponibilizado à pressa para albergar estas competências. Subscrevo claramente esta tese. E acrescento que nunca este cenário esteve tão próximo como em Outubro do ano passado.
Nos últimos dias desse mês de Outubro, a Quercus evitou a extinção do ICN e a transferência das suas competências para a alçada da direcção-geral de Florestas (DGF). A rápida capacidade de reacção da organização ambientalista transferiu a discussão da esfera interna (onde se preparava já uma decisão final e inapelável) para a esfera pública e motivou uma ampla reacção da sociedade civil, de ex-ministros, de políticos ligados ao sector e até do ministro Amílcar Theias, que justificadamente não aceitou imolar o ICN num processo de contornos duvidosos. Não nos iludamos: a debatida transferência das competências sobre as áreas protegidas para a DGF, no seio do Ministério da Agricultura, teria impactes gravíssimos sobre a gestão do território e a sua possível conversão, a breve prazo, em áreas de cultivo ou de plantio florestal.
A primeira tentativa falhou então em Outubro de 2003, mas nem por isso o futuro do ICN desanuviou. Três ministros depois (e não contando já com o facto de Amílcar Theias ter sido a segunda opção de Durão Barroso para esta pasta!) e sem verbas minimamente dignas, o ICN assemelha-se a um navio à deriva, que vai vivendo dos víveres que ainda armazenou, que vê cada vez mais técnicos abandonar o barco e seguir outras carreiras e que começa a ver as suas competências esvaziadas à medida que se discutem modificações radicais no estatuto da Reserva Ecológica Nacional. Um dia, não muito distante, o barco do ICN vai finalmente parar e afundará lentamente.
O que se pretende com esta asfixia da primeira entidade com responsabilidades na gestão das áreas protegidas e da conservação da natureza? Porque não se criam condições para a investigação dos biólogos ligados às várias áreas protegidas? Por que motivo o poder político tem a triste tendência de isolar o ICN, deixando-o sozinho a pregar no deserto, quando lhe cheira a polémica (aconteceu na discussão do Parque Marinho da Arrábida; voltou a suceder na serra da Nogueira e na ria Formosa; ocorre agora no Parque Natural da Arrábida)? Responda quem souber.

domingo, outubro 10, 2004

Nobel inesperado

Li e ainda desconfio. O Comité Nobel atribuiu o prémio Nobel da Paz deste ano à queniana Wangari Maathai, notável fundadora do movimento Green Belt. A inédita escolha de uma ambientalista, ainda por cima africana, ainda por cima queniana, ainda por cima fundadora de um movimento incómodo que tem denunciado práticas agrícolas desregradas e fracassos na política social queniana, é inesperada.
O reconhecimento da interacção entre a perspectiva ambientalista e a acção social em prol da paz é uma das boas notícias que nos chega em 2004. Pela primeira vez (ainda por cima, através de um Comité conservador como é o Nobel) se reconhece que uma acção ecológica que tem visado, durante trinta anos, aumentar os recursos naturais de um país tem igualmente impactes sobre a estabilidade social do mesmo. Ao liderar uma campanha maciça de plantio de árvores endémicas, o movimento Green Belt contribuiu para fixar populações, diminuir a acção da erosão e aumentar a oferta de madeira para as diversas utilizações locais. Como todos os movimentos, demorou a impor-se na sociedade queniana, mas hoje desfruta do mérito de ser olhado como um projecto suprapartidário.
Os dois últimos anos foram marcados pela saída abrupta do Ambiente da agenda política na maior parte das democracias ocidentais. Nas eleições presidenciais americanas, o tema não chegou ainda a ser debatido; em Itália e em França, o Ambiente surge agora abaixo do "top ten" das preocupações dos eleitores; em Inglaterra, os trabalhistas esqueceram as acusações que durante anos lançaram ao governo Tatcher e enterraram o tema debaixo de uma pilha de prioridades; em Portugal, já vamos no quarto ministro do Ambiente deste mandato parlamentar (Isaltino Morais, Amílcar Theias, Arlindo Cunha e Nobre Guedes) e o único tema ambiental que conseguiu furar a barreira mediática foi (honra seja feita, sobretudo ao actual secretário de Estado do Ambiente) a negociação da directiva do comércio de emissões. É pouco, muito pouco.
Que a recente decisão do Comité Nobel tenha continuidade. Que o papel social dos ambientalistas não seja esquecido. Que o Ambiente não se torne demasiado subalterno na agenda política. Será pedir muito?

sexta-feira, outubro 08, 2004

Áreas protegidas ao quilo

Há sectores financiados pelo Estado que não têm outra razão de existência para além do seu valor simbólico. A dotação orçamental para a gestão das áreas protegidas é um bom exemplo. Contrariamente às visões absurdas que por aí se escutam, uma área protegida estatal (parques naturais, reservas, zonas de protecção especial e por aí fora…) não tem de gerar receitas, nem tem de produzir mais-valias tangíveis. Não tem também de se submeter ao escrutínio do ministro que a tutela e que nela muitas vezes identifica apenas dinheiro esbanjado.
Uma área protegida é um apoio simbólico. É financiada com o único fim de a salvaguardar intacta, graças aos técnicos e investigadores que a gerem. Numa área protegida, os valores naturais estão acima de todos os outros.
O apoio estatal a uma área classificada demonstra acima de tudo que o Estado aprova aquele pedaço de terreno ou de mar. Considera-o suficientemente importante para a sobrevivência de uma ou mais espécies, de um ou mais ecossistemas, de uma ou mais formações geológicas. Contrariamente à tradicional e obtusa visão autárquica, as áreas protegidas não são empecilhos jurídicos, aplicados a martelo, para proteger meia dúzia de lírios e malmequeres. Repito, para que não restem dúvidas: o Estado financia a rede de áreas protegidas pura e simplesmente para que elas se mantenham incólumes. A sua unicidade é protegida da invasão urbana, dos interesses especulativos, dos visitantes incautos e mesmo das práticas nocivas de populações residentes (quantas vezes desculpadas com o estafado argumento de que elas têm na base hábitos seculares) por este estatuto extraordinário, que foi aceite pela nossa legislação e integrado na Constituição.
Uma área protegida é, se quiserem, o dote que o governo entrega ao seu sucessor, quando lhe cede a mão da noiva no final de cada mandato parlamentar.
Há um velho filme de Charlie Chaplin que relata o quotidiano de uma família miserável que, no auge da Grande Depressão, sem dinheiro para sobreviver, acaba um dia por se sentar à mesa de refeições com uma bota de couro dentro da panela! O jantar está servido: bota de couro para todos!
À escala, este é o lamentável estado a que se chegou nas áreas protegidas portuguesas: faltam verbas para tudo. Não há telefones, não há verba para limpeza, nem para manutenção dos veículos indispensáveis à vigilância. Não há também contratações de novos profissionais: estão congeladas desde o início do tristemente célebre discurso do "Portugal está de tanga!"
O processo, em si, não é novo. Cronicamente, os parques naturais têm tido que apertar o cinto e terminar cada ano civil a contar tostões. Mas o grau de carência vivido este ano é terrível e inédito. Como na metáfora de Chaplin, há botas de couro para o jantar de cada área protegida portuguesa.
Nas próximas semanas, discutir-se-á o orçamento de Estado para 2005. Do Minho ao Algarve, os gestores de áreas protegidas com quem falo estão genuinamente preocupados. Preocupa-os que, na onda poupadora presente, o ministro que tutela o sector não saiba ou não possa defender, no mínimo, a dotação da mesma verba de 2004; preocupa-os que a visão excessivamente economicista do governo os obrigue a incorporar missões absurdas na administração – estão na moda os vocábulos odiados "criar riqueza", "potenciar mais-valias", "ginasticar orçamentos", "viabilizar turismo ecológico em massa". Preocupa-os por fim que quando não há dinheiro para pagar telefones ou luz, o futuro seja sombrio.
Mais do que nunca, importa por isso frisar que as áreas protegidas existem per se. Numa sociedade moderna, representam o nosso presente à natureza (a designação de "Gift to Earth" do World Wildlife Fund é apropriada), os pedaços do nosso território terrestre e aquático que não têm preço e cujo valor simbólico supera o valor económico.
Que esta perspectiva não se perca por um momento da óptica do ministro do Ambiente. Sob risco de ele passar à história como o primeiro responsável de uma tutela que foi forçada a abolir estatutos de protecção de áreas naturais, depois de as deixar sem luz, sem telefone, sem água. Sem nada.