terça-feira, novembro 26, 2019

70 anos de Record

Record completa hoje 70 anos. Publica-se, para memória futura, um documento que a rapaziada de A Bola gostava de citar quando os rivais começaram a morder os calcanhares. Eis como Record nasceu pela inspiração de três antigos colaboradores de A Bola, um dos quais (Afonso Lacerda) saiu logo após o primeiro número. Parabéns para toda a equipa! Muitos anos de vida!

A partir de arquivo do SNI/Censura, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(SNI/Censura, Caixa 597)

sexta-feira, novembro 22, 2019

Sessenta anos na gaveta


Durante sessenta anos, ninguém ligou ao diário de Mircea Eliade. Entre 1941 e 45, o escritor foi adido cultural da embaixada do seu país em Lisboa. Conheceu Salazar e Carmona, travou amizade com António Ferro, Correia Marques e Manuel Múrias e viu com apreensão a caminhada da Roménia para o abismo, à medida que o regime fascista de Bucareste participava na guerra. O diário foi descoberto em 2006, publicado em romeno, em castelhano e por fim em português.
Em 1941, note-se, Eliade é um conservador. Admira Salazar, mas abomina Hitler. Adora Lisboa, mas queixa-se da «pobreza intelectual desta gente». Escrevia uma página diária num caderno de escola e arrancava-a para a juntar ao esconderijo das outras, não fosse alguém na embaixada ler as suas reflexões. Deixou-nos neste diário um relato psicológico da Lisboa em tempo de guerra que vale a pena ler. Um exemplo: 
«17 de Dezembro de 1941. Desde que os Estados Unidos entraram na guerra, aqui mudou a atmosfera: os portugueses estão nervosos, têm medo, receiam... os sucessos navais alemães intimidaram-nos. Estava numa tabacaria quando se soube que o Prince of Wales e o Repulse tinham sido afundados. Dois burgueses olharam um para o outro, pálidos: – Por este andar, com dois couraçados por dia, estamos f......! Há alguns dias, rumores lançados pelos ingleses: os japoneses entraram em Macau, os alemães vão ocupar Portugal...
Hoje fala-se em Timor sem nada de concreto.
»

quarta-feira, novembro 13, 2019

Há 40 anos, na rua onde estou


Há 40 anos, sensivelmente a esta hora, a cem metros do sítio onde está hoje a redacção da National Geographic, o bairro das Avenidas Novas acordou com estrondo.
Um veículo branco, com pelo menos dois homens a bordo, aguardou no início da Rua António Enes por um ritual que se repetia todas as manhãs. Junto das árvores, na divisória que separa as duas faixas da rua, outro homem esperava. O embaixador israelita Ebrahim Eltar saiu da embaixada, que ainda se mantém num quarto andar do cruzamento com a Rua Filipe Folque, e aproximou-se do Volvo oficial azul. O carro branco acelerou e, para espanto de dezenas de transeuntes, um dos ocupantes disparou uma pistola-metralhadora na direcção do embaixador. Providencialmente, o guarda-costas já abrira a porta do carro.
À mesma hora, uma senhora, residente no prédio contíguo à embaixada (e mãe de dois bons amigos meus), saía tranquilamente do prédio. A partir daqui, o relato das testemunhas diverge, como é normal em episódios desta natureza.
Um homem, o guarda-costas da PSP Ildefonso Ferreira, reagiu com enorme sangue-frio. Atirou-se sobre o embaixador e protegeu-o com o seu próprio corpo da maioria dos disparos, aterrando com estrondo no capot do veículo da vizinha que apanhou o susto da sua vida e ficou com o automóvel inutilizado.
O motorista do embaixador accionou a ignição do Volvo e iniciou a marcha, já com o embaixador (vivo) e o guarda-costas (morto) no asfalto. O carro branco nunca parou e fugiu pela Rua Filipe Folque. O homem que aguardara a pé lançou uma granada defensiva na direcção do Volvo, que estilhaçou os vidros do rés-do-chão da António Enes, fugindo a correr pela Rua Luís Bívar.
O senhor António, que trabalhava na Pastelaria Nobreza desde 1971 e ainda trabalha na mesma rua, na carvoaria de frente, assistiu a tudo. Conta que os estilhaços atravessaram a rua e vieram cair a seus pés. Outro guarda da PSP foi atingido por estilhaços, tal como a infeliz vizinha que terminou o dia na sala de operações do Hospital de Santa Maria.
O comando terrorista acelerou e fugiu. Os homens foram detidos dias depois numa pensão de Lisboa. Representavam a secção de Lisboa dos Militantes Operários Internacionalistas.
Faz hoje 40 anos. 
O croquis do episódio publicado pelo Diário de Lisboa, 14 de Novembro de 1979
(a partir de arquivo da Fundação Mário Soares)

domingo, novembro 10, 2019

Ainda é possível travar o encerramento da Biblioteca-Museu República e Resistência?

Primeira página de "Acção", jornal conservador publicado entre 1936 e 1938 e entre 1941 e 1948, preservado do primeiro ao último número (sem falhas estranhas…) na colecção de Carlos Ferrão

Quis o destino que estivesse precisamente a ler as lamentações do jornalista Rocha Martins em 1934 sobre a perda para o estrangeiro da biblioteca de António Carvalho Monteiro (integrada desde 1929 na Biblioteca do Congresso, em Washington) quando tomei conhecimento do encerramento, previsto para a próxima quinta-feira, da Biblioteca-Museu República e Resistência (BMRR), em Lisboa. Passaram 85 anos, mas é triste constatar que o país continua a entender as suas melhores bibliotecas como espaços onde se sujam as mãos em jornais antigos.
Vale a pena historiar o processo de criação das bibliotecas locais integradas na rede de bibliotecas municipais. Durante o mandato de Jorge Sampaio à frente da Câmara Municipal de Lisboa, João Soares, então vereador da Cultura, entendeu que seria vantajoso ampliar a rede e integrar novas bibliotecas especializadas nos bairros onde estavam em curso os Processos Especiais de Revitalização. Foi o caso, entre outros, da BBMR, instalada primeiro num edifício da antiga vila operária Grandella, em Benfica, e deslocada para o bairro do Rego em 2001. Foi a primeira e única biblioteca especializada num processo decisivo da história do país, com um acervo que documenta a história dos anos finais da Monarquia, a Implantação da República, a Primeira República e o golpe militar de 28 de Maio de 1926.
No bairro do Rego, a biblioteca é mais do que um equipamento, como agora se diz. É um espaço implantado num bairro difícil, mas permanentemente ocupado por estudantes, moradores e investigadores que consultam as colecções, utilizam a Internet e dão-lhe vida. Testemunho semanalmente que, ao contrário da declaração infeliz da presidente da Junta de Freguesia das Avenidas Novas em Junho, a Biblioteca não está morta – vive com os meios que lhe dão e suporta a investigação de quem se dedica ao estudo deste período. Dá vida aos quarteirões em redor num bairro onde pouco mais existe e possui um património que extravasa as meras fronteiras da colecção que acolhe: num país onde a memória não é salvaguardada, dispõe de um corpo de funcionários que conhece a colecção e sugere, com frequência, rumos complementares de consulta.
Discute-se há anos o fecho das instalações sob o argumento piedoso de que são necessárias obras. Ocorreu uma primeira tentativa de encerramento no último mandato autárquico de António Costa, mas o ruído dos protestos silenciou então a iniciativa. No Verão deste ano, nasceu nova vaga, com o impulso decisivo da vereadora da Cultura para quem o espaço parece ser incómodo e inútil.
A Câmara Municipal de Lisboa e a Assembleia Municipal não assumem o fecho definitivo da BMRR, embora nenhuma das declarações dos decisores – cuidadosamente articuladas – prometa também a sua continuidade. Quem conheceu o destino do acervo que esteve no Bairro Grandella e que foi encaixotado para parte incerta aquando da última remodelação, com perda significativa por exemplo dos registos áudio que o historiador Carlos de Oliveira recolhera com muitos dos sobreviventes dos movimentos anarquistas do início do século, teme muito justamente que outros caixotes e outros armazéns fragmentem e danifiquem uma colecção que vale pela sua unicidade.
Numa semana em que a actividade em Lisboa parece ter-se resumido ao Web Summit, é provável que poucos no actual elenco autárquico valorizem o volume e relevância da documentação preservada na BMRR. E os que sabem o que está em causa parecem nutrir um indisfarçável desconforto ideológico com uma biblioteca que celebra os movimentos sociais que construíram a nossa República, em todas as suas imperfeições.
O pólo do Bairro do Rego/Cidade Universitária foi criado para acomodar a colecção de 26 mil jornais, opúsculos, folhetos (proibidos ou efémeros) recolhida pelo jornalista Carlos Ferrão durante 60 anos e vendida simbolicamente ao Estado Português em 15 de Julho de 1976 com a única condição de que o fundo preservasse o nome da sua viúva, Dulce. Estão ali documentos de movimentos operários e sindicais. Livros que não existem em mais lado nenhum sobre as sociedades secretas e partidos efémeros do final do século XIX e início do século XX. Edições de autor e edições clandestinas. Está ali, em resumo, uma pequena história da nossa República. Em toda a sua fragilidade. Vale pelo conjunto e a sua dispersão pelas múltiplas bibliotecas da rede impedirá a perspectiva de conjunto que a visão de João Soares celebrara em 1993.
Não deixa de ser tristemente irónico que a machadada final num projecto cultural iniciado por uma autarquia governada por forças socialistas e comunistas venha agora a ser dada por um elenco socialista tecnocrata, que enche a boca com a Implantação da República no 5 de Outubro, mas não preserva, incólume, o seu melhor fundo documental durante o resto do ano.

VERSÃO MAIS EXTENSA DE CARTA HOJE INSERIDA NO "PÚBLICO", 10 DE NOVEMBRO DE 2019