sábado, dezembro 03, 2022

Espião, jornalista e empresário #2



       No Verão de 1935, Walt Disney realiza uma grande viagem de promoção pela Europa. O pretexto é a recolha de fontes de inspiração e locais de filmagem para os seus filmes, mas o motivo mais directo é comercial – Disney quer furar no Velho Continente. 
       Portugal entra na rota de Disney e a sua vinda é anunciada, embora a viagem não se concretize porque Walt teme um país mal servido por transportes e estradas. Mesmo assim, tem o cuidado de enviar presentes e brindes. Para esta campanha europeia, Walt traz centenas de bonecos de peluche e desenhos da sua famosa criação, o Rato Mickey. Traz também insufláveis gigantes que enchem os céus das capitais europeias. Distribui-os a personalidades que podem influenciar o sucesso da sua marca. Em Roma, as netas de Benito Mussolini são premiadas com peluches. Em Portugal, o pequeno Luís Fraga, neto do jornalista Acúrcio Pereira e afilhado de Luís Lupi, também recebe um.
       Descobrimo-lo da maneira mais inesperada. Quando “O Século” celebrou o Natal de 1940, publicou a fotografia de um bebé na primeira página – era Luís Fraga, com um ano de vida, rodeado de brinquedos e com o Rato Mickey em destaque. Lupi furara uma vez mais.
       No dia 6 de Dezembro, na Casa da Imprensa, lançamento do livro “Jornalista, Espião e Empresário” (Âncora), de Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira, com apresentação de Joaquim Vieira.

quarta-feira, novembro 30, 2022

A Gaffe do bruxo angolano


O Campeonato do Mundo de 2006 estava em curso e Angola estreava-se na grande competição de futebol. Por ironia do sorteio, a selecção africana fora colocada no mesmo grupo de Portugal. Tratando-se de uma nação com evidentes afinidades culturais, os jornalistas portugueses desdobravam-se para acompanhar o quotidiano dos palancas. 

Quem já acompanhou uma prova desportiva destas por um jornal sabe que é um trabalho maçador e pouco desafiante. É como uma refeição liofilizada que sabe ao mesmo para todos. O acesso aos protagonistas é mediado através de conferências de imprensa. Observam-se cinco minutos de um treino e é preciso empolar o mínimo pormenor para encher uma página de jornal ou 5 minutos de televisão.

Em Hannover, a acompanhar a selecção do sisudo mas competente Oliveira Gonçalves, estava um pequeno grupo de jornalistas portugueses. Um deles, enviado-especial do Record, conhecido pelo humor contagiante e desrespeito saudável pelas regras, lembrou-se de apimentar o dia 13 de Junho. Quando a comitiva técnica de Angola saiu do balneário para o relvado, apontou da bancada de imprensa para um elemento discreto, à paisana, que seguia os restantes treinadores a alguma distância. Baixou a voz e anunciou para os companheiros: «Sabem quem é? É o bruxo da selecção angolana. Foi importantíssimo para o apuramento.» Angola, de facto, qualificara-se in extremis, num jogo dramático no Ruanda.

O grupo riu-se. Não pensou mais na brincadeira. Alguns sabiam que se tratava do roupeiro da selecção. Era obviamente uma graça, mas há sempre um crédulo com complexos de Bob Woodward.

Nessa noite, na peça que a RTP transmitiu de Hannover, um dos jornalistas da estação pública contou aos portugueses – sem margem para dúvidas – que a selecção angolana empregava um bruxo para melhorar o desempenho no Mundial. Juntou mais alguns pormenores da sua lavra “à fonte original” e compôs o “furo”. Foi o pandemónio. A fake-news tornara-se real.

Na conferência do dia 15 de Junho, Oliveira Gonçalves denunciou a notícia. Compreensivelmente agastado e de dedo em riste para o jornalista da RTP, lembrou que a sua equipa técnica estudara nas melhores escolas de desporto, como os portugueses. E, com razão, disse também que a notícia da bruxaria só fora plausível porque envolvia uma selecção africana. Vermelho de raiva, não parava. E quanto mais se apercebia de que parte dos jornalistas portugueses já não conseguia disfarçar o riso ou manter-se de pé, mais se enfurecia.

Angola conseguiu dois empates históricos nesse Mundial. Talvez o bruxo tenha ajudado.

domingo, novembro 27, 2022

Espião, jornalista e empresário #1

        Na manhã de 24 de Março de 1946, uma criada entra no quarto 43 do Hotel do Parque, no Estoril, e encontra o xadrezista Alekhine morto, sentado num cadeirão, com os restos do jantar da véspera e com um tabuleiro em situação de jogo à sua frente. 

        Luís Lupi, correspondente da Associated Press, corre para o Estoril. Pede emprestada uma máquina fotográfica a um funcionário do hotel e capta três fotografias no quarto de Alekhine. São imagens macabras destinadas à imprensa internacional. Nenhum jornal nacional as publica.

        Há suspeitas de que Lupi compôs o cenário e até de que foi dele a ideia de colocar um tabuleiro à frente do defunto. Sempre dramático, o jornalista escreve para a sede da AP em Nova Iorque: “O gigante do xadrez, morto, parecia um cavalo derrubado”.




No dia 6 de Dezembro, na Casa da Imprensa, lançamento do livro “Espião, Jornalista e Empresário” (Âncora), de Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira Rosa, com apresentação de Joaquim Vieira.

sábado, novembro 26, 2022

Espião, jornalista e empresário


       Esta história começou há muitos anos, no dia em que uma viúva entrou na sede de uma agência noticiosa e pediu para falar com alguém que a ajudasse a clarificar o papel do marido na história do jornalismo, da política e da diplomacia portuguesa.

       Foi o fio que revelaria a meada do trabalho que o Wilton e eu fomos desfiando nos últimos anos. Falarei bastante sobre este projecto nas próximas duas semanas, mas, para já, estão convidados a guardar a tarde de dia 6 na agenda. Espero ver-vos na Casa da Imprensa.


sábado, novembro 19, 2022

O Mundial da Junta


       As indignações sobre o Campeonato do Mundo de futebol organizado no Qatar revelam como sempre memória curta. Esta não foi a única atribuição polémica de uma grande prova desportiva a um regime questionável nem será a última. Houve outra que bem merece uma crónica porque envolve o maior jornal desportivo nacional e um episódio de censura flagrante.

       A atribuição da organização do Mundial de 1978 à Argentina fora decidida 12 anos antes, em Inglaterra, e não mereceu contestação. O cartaz oficial da prova, aliás, reproduz a saudação clássica de Juan Perón às multidões, com os dois braços erguidos. A FIFA só não contou com o golpe militar de 1976. A partir de então, ficou a braços com um problema diplomático, mas decidiu não agitar as águas. 

       O país sul-americano passou a ser governado por uma junta militar que fazia desaparecer pessoas e que rapidamente viu na prova uma oportunidade de limpar a sua imagem à escala global. O cartaz peronista, já amplamente divulgado, não foi substituído, mas a Junta meteu a pata em tudo e ainda hoje subsistem acusações de que a selecção da casa foi “empurrada” até à final.

       Mal a bola começou a rolar (tal como vai suceder no Qatar), as críticas perderam força. Só interessava o jogo. A imprensa portuguesa estava então praticamente estatizada e poucos jornais puderam levar enviados-especiais a Buenos Aires, sobretudo porque a selecção portuguesa voltava a não marcar presença. “A Bola” foi uma das excepções — enviou Vítor Santos, o chefe da redacção, e um segundo jornalista.

       Enquanto estiveram na Argentina, os jornalistas de “A Bola” (o segundo identificar-se-á se quiser porque anda por aqui) cobriram como puderam os jogos da prova. E fizeram em Buenos Aires o que Vítor Santos sempre pedia aos jornalistas no estrangeiro: crónica de costumes. 

       Mais afoito do que o chefe da redacção, o segundo jornalista andou pelas ruas, visitou o cemitério onde está sepultada Evita Perón, recolheu notas sobre o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se juntavam em silêncio para chorar o desaparecimento dos filhos. Publicou o que pôde (no dia 29 de Maio, perguntava: “Um hino nacional que fala em liberdade pode ser cantado por todos os argentinos?”) e guardou os textos mais cáusticos para quando regressasse a Portugal para «não desaparecer também», como me contou.

       O Mundial acabou no dia 25 de Junho de 1978 e os enviados-especiais regressaram a Lisboa. 

       O jornalista escreveu duas a três crónicas com as suas impressões. Carlos Miranda, o director, já estava em França, acompanhando a Volta velocipédica e Vítor Santos, ansioso pelo descanso, seguiu para férias em Portimão, o refúgio informal das chefias de ”A Bola”. Na azáfama de um jornal efervescente, Alfredo Farinha seguira para a China acompanhando uma digressão do Sporting e Joaquim Rita para o Canadá com o Benfica. Ficaram a subdirectora Margarida Ribeiro dos Reis, filha de um dos fundadores do jornal, e Carlos Pinhão, subchefe da redacção.

       Os textos foram entregues. Os dias passaram e o jornal não os publicava. A subdirectora vetou-os porque continham «ofensas a um chefe de Estado» – ofensa proibida pela Constituição portuguesa. Era o argumento escolhido para não agitar águas num país ainda barricado em facções políticas e num jornal que quase sempre preferiu a prudência à temeridade. Gerou-se discussão na redacção quando o caso foi conhecido. Dividiram-se os campos, como sempre acontece. Carlos Pinhão não se pronunciou.

       O processo chegou ao Conselho de Redacção, que emitiu uma nota de censura à direcção. O passo seguinte deveria ter sido a entrega do caso ao Conselho de Imprensa, nos termos da lei, mas o regresso do director acalmou as águas. “A Bola” não escreveu sobre a Junta Militar da Argentina em 1978, o país onde desapareciam pessoas sem deixar rasto.

* Versão actualizada com correcção de dois erros factuais.