sábado, novembro 19, 2022

O Mundial da Junta


       As indignações sobre o Campeonato do Mundo de futebol organizado no Qatar revelam como sempre memória curta. Esta não foi a única atribuição polémica de uma grande prova desportiva a um regime questionável nem será a última. Houve outra que bem merece uma crónica porque envolve o maior jornal desportivo nacional e um episódio de censura flagrante.

       A atribuição da organização do Mundial de 1978 à Argentina fora decidida 12 anos antes, em Inglaterra, e não mereceu contestação. O cartaz oficial da prova, aliás, reproduz a saudação clássica de Juan Perón às multidões, com os dois braços erguidos. A FIFA só não contou com o golpe militar de 1976. A partir de então, ficou a braços com um problema diplomático, mas decidiu não agitar as águas. 

       O país sul-americano passou a ser governado por uma junta militar que fazia desaparecer pessoas e que rapidamente viu na prova uma oportunidade de limpar a sua imagem à escala global. O cartaz peronista, já amplamente divulgado, não foi substituído, mas a Junta meteu a pata em tudo e ainda hoje subsistem acusações de que a selecção da casa foi “empurrada” até à final.

       Mal a bola começou a rolar (tal como vai suceder no Qatar), as críticas perderam força. Só interessava o jogo. A imprensa portuguesa estava então praticamente estatizada e poucos jornais puderam levar enviados-especiais a Buenos Aires, sobretudo porque a selecção portuguesa voltava a não marcar presença. “A Bola” foi uma das excepções — enviou Vítor Santos, o chefe da redacção, e um segundo jornalista.

       Enquanto estiveram na Argentina, os jornalistas de “A Bola” (o segundo identificar-se-á se quiser porque anda por aqui) cobriram como puderam os jogos da prova. E fizeram em Buenos Aires o que Vítor Santos sempre pedia aos jornalistas no estrangeiro: crónica de costumes. 

       Mais afoito do que o chefe da redacção, o segundo jornalista andou pelas ruas, visitou o cemitério onde está sepultada Evita Perón, recolheu notas sobre o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se juntavam em silêncio para chorar o desaparecimento dos filhos. Publicou o que pôde (no dia 29 de Maio, perguntava: “Um hino nacional que fala em liberdade pode ser cantado por todos os argentinos?”) e guardou os textos mais cáusticos para quando regressasse a Portugal para «não desaparecer também», como me contou.

       O Mundial acabou no dia 25 de Junho de 1978 e os enviados-especiais regressaram a Lisboa. 

       O jornalista escreveu duas a três crónicas com as suas impressões. Carlos Miranda, o director, já estava em França, acompanhando a Volta velocipédica e Vítor Santos, ansioso pelo descanso, seguiu para férias em Portimão, o refúgio informal das chefias de ”A Bola”. Na azáfama de um jornal efervescente, Alfredo Farinha seguira para a China acompanhando uma digressão do Sporting e Joaquim Rita para o Canadá com o Benfica. Ficaram a subdirectora Margarida Ribeiro dos Reis, filha de um dos fundadores do jornal, e Carlos Pinhão, subchefe da redacção.

       Os textos foram entregues. Os dias passaram e o jornal não os publicava. A subdirectora vetou-os porque continham «ofensas a um chefe de Estado» – ofensa proibida pela Constituição portuguesa. Era o argumento escolhido para não agitar águas num país ainda barricado em facções políticas e num jornal que quase sempre preferiu a prudência à temeridade. Gerou-se discussão na redacção quando o caso foi conhecido. Dividiram-se os campos, como sempre acontece. Carlos Pinhão não se pronunciou.

       O processo chegou ao Conselho de Redacção, que emitiu uma nota de censura à direcção. O passo seguinte deveria ter sido a entrega do caso ao Conselho de Imprensa, nos termos da lei, mas o regresso do director acalmou as águas. “A Bola” não escreveu sobre a Junta Militar da Argentina em 1978, o país onde desapareciam pessoas sem deixar rasto.

* Versão actualizada com correcção de dois erros factuais.

Sem comentários: