"Tal & Qual", 5 de Março de 1983 (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Faz hoje 30
anos. No dia 5 de Março de 1983, na sua edição n.º 140, o semanário Tal & Qual apresentou aos portugueses Maria Branca dos Santos. Para
muitos lisboetas, frequentadores habituais das escadarias de madeira da sua
residência, na Rua Dr. Almeida Amaral, ao Campo Mártires da Pátria, não foi
propriamente uma apresentação. Conheciam aquela cara e aquela história – a
imagem acabada da “tia boa e tolerante que, quando éramos miúdos, nos dava
cubos de marmelada guardados num velho e pesado aparador, situado numa soturna
sala de jantar”, como mais tarde a descreveria o jornalista Hernâni Santos.
Nesse dia, sem que ninguém o soubesse, começou o fim da Dona Branca.
Por admissão do
jornalista José Rocha Vieira, à época director do jornal e autor do primeiro
texto sobre Maria Branca dos Santos, o “furo” jornalístico começou com quatro
clientes da banqueira e com as suas histórias de encantamento com a “mulher que
é um autêntico banco”. No Portugal de 1983, de depressão económica e inflação
galopante, o enredo de Dona Branca era irresistível: uma simpática anciã da
Mouraria, de 72 anos, que ora vestia casaco de peles na rua, ora o trocava por
um avental em casa; que tratava todos por “ó filho” e “ó filha”; que não
resistia a contar a sua anedota picante; e sobretudo que, apesar da iliteracia,
pagava juros de 10% ao mês aos depositantes que lhe confiavam as economias.
Os quatro
testemunhos garantiam ao jornal que “o ‘cacau’ está tão seguro nas mãos desta
mulher de cabelos brancos como nos cofres da mais sólida instituição de
crédito”, mas faltava credibilizar a narrativa com uma fotografia sugestiva da
banqueira. O objectivo foi concretizado pelo fotógrafo Luiz Carvalho, à data o
único repórter fotográfico do Tal & Qual e na verdade o jornalista que
desbloqueou o contacto com a senhora (alguns pormenores adicionais aqui).
Fotografias de Luiz Carvalho (reproduzidas a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Com um misto de oportunidade e persuasão, Carvalho fotografou o quotidiano da entourage
da banqueira e captou a senhora num momento que viria a ser publicado ad
nauseam nos meses seguintes: a imagem mostrava-a confiante,
sorridente, saindo de um prédio, de casaco de peles e colar de pérolas, ajudada
por uma colaboradora. Aparentemente captada à distância, mas autorizada pela
própria, a fotografia revelava ainda a pequena “peculiaridade física
indispensável a uma tia: um dos dentes da frente, espetado e comprido,
encavalita-se-lhe no lábio inferior, ficando à mostra quando fecha a boca”. Em
manchete – e as manchetes provocatórias e divertidas do Tal & Qual inauguraram um
estilo de que O Independente viria a ser herdeiro anos depois –, o jornal
escrevia: “Dona Branca – Uma banqueira às suas ordens.”
Numa curta
entrevista telefónica, a “benemérita” garantia nada ter “a dizer, meu
filho. Posso pedir dinheiro emprestado e posso dar por ele os juros que quiser.
O meu dinheiro é meu: posso rasgá-lo, dá-lo ou até ir à janela e deitá-lo para
a rua.”
RESPONSABILIDADE
Estavam feitas
as apresentações, mas nem os jornalistas adivinhariam o turbilhão que se
viveria na sociedade portuguesa nos 19 meses seguintes, até à detenção da Dona
Branca, em Outubro de 1984. Em jeito de anedota, vale a pena referir que, nessa
reportagem inaugural, o jornal cometeu involuntariamente um lapso, noticiando
que o escritório onde a banqueira também fazia empréstimos se situava na Rua
Abade Faria, n.º 30. Foi um erro incómodo, como se veria uma semana mais tarde.
O escritório ficava no n.º 20 e, durante toda a semana, os moradores do 30 não
tiveram sossego, tantos eram os toques na campainha dos novos depositantes.
Num texto
estupendo (aqui),
Luiz Carvalho conta que demorou dois meses a persuadir a benemérita a deixar-se
fotografar sem se esconder. Prometeu-lhe que nada de mal sucederia. Era uma
promessa impossível de cumprir, pois os mais de cem mil exemplares do jornal
circularam pelo país e criaram um mito imparável. Como dizem os dinamarqueses,
as promessas e os ovos são facilmente quebráveis.
A operação da
“banqueira do povo” baseava-se num ritmo estável de depósitos e numa rede de
confiança que impedia estranhos (no sentido de não conhecidos dos membros da
pirâmide) de entrarem no negócio. Enquanto se manteve nesses parâmetros, a
operação progrediu, apesar dos indícios mais tarde apurados de que os
colaboradores da Dona Branca desviavam regularmente fundos, comprometendo o
esquema piramidal de crédito. A celebridade proporcionada pelo Tal & Qual e
pela fotografia de Luiz Carvalho selou depois o destino da benemérita.
ESTADO DE GRAÇA
Jornal popular,
de poucas páginas, poucas palavras, poucas fotografias e poucas peneiras, o Tal & Qual encontrou na Dona Branca o seu filão. Nas semanas seguintes, a
benemérita foi regularmente tema de notícias. Ora porque o jornal procurava
perceber o seu complexo esquema de investimento imobiliário capaz de suportar o
pagamento de juros aos depositantes (12/03/83), ora porque os nobres El Pais, Guardian ou Frankfurter Rundschau lhe dedicavam reportagens (19/03/83), ora ainda porque a Dona
Branca não resistira a telefonar para o programa “A Festa Continua”, de Júlio
Isidro, na RTP, licitando por 350 contos um quadro no âmbito de uma emissão de apoio
à Casa da Imprensa (11/05/83). O público no Cinema Europa fez “aahhh” quando soube da
identidade da benemérita, e a “gentil banqueira do povo” marcou mais uns pontos
no imaginário popular, que a romantizou como uma encarnação moderna do Padre
Cruz.
"Tal & Qual", 3 de Fevereiro de 1984 (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Perto do final
do ano de 1983, o verniz começou a estalar, sempre com o Tal & Qual no comando
da reportagem. Por um lado, a revelação de que recebia uma pensão de pobreza de
3.900 escudos foi escandalosa, face ao conto de fadas que se conhecia; por
outro, Ernâni Lopes, ministro das Finanças, recomendou na RTP cautela aos
depositantes e, em privado, pediu à Inspecção de Crédito do Banco de Portugal
para investigar a operação. No primeiro inquérito, aliás, a Dona Branca chorou
copiosamente e explicou que só ajudava os necessitados. Os inspectores
entreolharam-se quando tomaram conhecimento da sua lista de clientes. Entre os
depositantes, constavam deputados, políticos, figuras da televisão e do cinema
português. E vários inspectores da Policia Judiciária.
A QUEDA DO
ABISMO
No imaginário
popular, brincava-se que a Dona Branca daria um ministro das Finanças mais
capaz do que “o sovina Ernâni Lopes”, mas, a partir de Fevereiro de 1984, o
ritmo dos depósitos começou a decrescer. Emergiram na imprensa suspeitas de
insolvência. Apesar disso, pelo menos para o exterior, o negócio prosperava. Ao
escritório da Rua Abade Faria, somava-se agora outro na Avenida Rio de Janeiro.
Dezenas de angariadores patrulhavam a cidade. Acumulavam-se sacos de plástico
com dinheiro na sede da organização. Passavam-se recibos de depósito sem
confirmação. Cega pela atenção pública, Dona Branca parecia ter perdido o
controlo da operação. Ao fotógrafo de uma agência francesa que a captou no seu
Mercedes com a sobrinha, a benemérita pespegou dois beijos na face.
Em Junho, Maria
Branca dos Santos anunciou um período de meditação, coincidente com a fase em
que já não conseguia cobrir os juros exorbitantes. Surgiram os primeiros
relatos de burla na sua própria organização. De contas paralelas em Espanha e
na Suíça. Descreviam-se recibos de depósito forjados, mas pagos como válidos
(saber-se-ia mais tarde, durante o julgamento, que o principal livro de contas
da organização era a memória da Dona Branca). Branca vendia património imobiliário e jóias para cumprir os compromissos.
Homem de muitas guerras, com 92
anos de experiência, o banqueiro Cupertino de Miranda resumia o que parecia
inevitável: “Na actual conjuntura, não conheço nenhum negócio legítimo que dê
sequer 30 por cento. Ora 120 por cento ao ano é inconcebível.”
Fosse por
convicção ingénua ou por desejo de prolongar a história jornalística da sua
publicação, Hernâni Santos continuou a alimentar o mito. A 5 de Junho de 1984,
relatou a história da benemérita que apoiara a Associação de Deficientes das
Forças Armadas e que se preparava para oferecer equipamento ao Instituto de
Oncologia. Pior do que isso: o jornal publicitou casos de sucesso de
depositantes a quem as contas continuavam a bater certo e para quem o dinheiro
estava seguro.
Um dia, o
dinheiro deixou de estar seguro. A conta 631 5356 do Banco Português do
Atlântico, na Praça de Londres, deixou de ter cobertura. Os depósitos cessaram.
Os clientes da Dona Branca queriam levantar as economias e a conta estava
“careca”. Colaboradores próximos publicavam desmentidos na imprensa, recusando
qualquer ligação à operação da benemérita. Com ironia, mas alguma falta de
vergonha, o Tal & Qual rotulou o caso com uma manchete inesquecível: “A
Branca... rota” (07/09/1984).
"Tal & Qual", autor desconhecido (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Foi o pandemónio
em Lisboa. Meio milhar de pessoas acorreu aos escritórios. Foi necessário
destacar um contingente da PSP para a Avenida Rio de Janeiro porque, nas
palavras de Rui Machete, ministro da Justiça, “não podemos permitir que a Dona
Branca seja sovada”. Encenaram-se tentativas de recuperação em Setembro. Numa
das ocasiões, um falso depositante aproximou-se do escritório e, à frente da
fila de credores, garantiu que ali ia deixar 1.500 contos por ter confiança na
banqueira. Era tarde. Nem os vinte investigadores da PJ que tinham caído na
esparrela conseguiram recuperar os seus depósitos. A fonte secara.
No dia 4 de
Outubro de 1984, a Dona Branca foi presa. Nunca se soube o volume total de
depósitos perdidos. Morreu em Abril de 1992, numa casa de saúde, praticamente
cega.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.
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