terça-feira, março 05, 2013

A fotografia de Luiz Carvalho selou o destino da Dona Branca



"Tal & Qual", 5 de Março de 1983
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Faz hoje 30 anos. No dia 5 de Março de 1983, na sua edição n.º 140, o semanário Tal & Qual apresentou aos portugueses Maria Branca dos Santos. Para muitos lisboetas, frequentadores habituais das escadarias de madeira da sua residência, na Rua Dr. Almeida Amaral, ao Campo Mártires da Pátria, não foi propriamente uma apresentação. Conheciam aquela cara e aquela história – a imagem acabada da “tia boa e tolerante que, quando éramos miúdos, nos dava cubos de marmelada guardados num velho e pesado aparador, situado numa soturna sala de jantar”, como mais tarde a descreveria o jornalista Hernâni Santos. Nesse dia, sem que ninguém o soubesse, começou o fim da Dona Branca.
Por admissão do jornalista José Rocha Vieira, à época director do jornal e autor do primeiro texto sobre Maria Branca dos Santos, o “furo” jornalístico começou com quatro clientes da banqueira e com as suas histórias de encantamento com a “mulher que é um autêntico banco”. No Portugal de 1983, de depressão económica e inflação galopante, o enredo de Dona Branca era irresistível: uma simpática anciã da Mouraria, de 72 anos, que ora vestia casaco de peles na rua, ora o trocava por um avental em casa; que tratava todos por “ó filho” e “ó filha”; que não resistia a contar a sua anedota picante; e sobretudo que, apesar da iliteracia, pagava juros de 10% ao mês aos depositantes que lhe confiavam as economias.
Os quatro testemunhos garantiam ao jornal que “o ‘cacau’ está tão seguro nas mãos desta mulher de cabelos brancos como nos cofres da mais sólida instituição de crédito”, mas faltava credibilizar a narrativa com uma fotografia sugestiva da banqueira. O objectivo foi concretizado pelo fotógrafo Luiz Carvalho, à data o único repórter fotográfico do Tal & Qual e na verdade o jornalista que desbloqueou o contacto com a senhora (alguns pormenores adicionais aqui). 

Fotografias de Luiz Carvalho
(reproduzidas a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Com um misto de oportunidade e persuasão, Carvalho fotografou o quotidiano da entourage da banqueira e captou a senhora num momento que viria a ser publicado ad nauseam nos meses seguintes: a imagem mostrava-a confiante, sorridente, saindo de um prédio, de casaco de peles e colar de pérolas, ajudada por uma colaboradora. Aparentemente captada à distância, mas autorizada pela própria, a fotografia revelava ainda a pequena “peculiaridade física indispensável a uma tia: um dos dentes da frente, espetado e comprido, encavalita-se-lhe no lábio inferior, ficando à mostra quando fecha a boca”. Em manchete – e as manchetes provocatórias e divertidas do Tal & Qual inauguraram um estilo de que O Independente viria a ser herdeiro anos depois –, o jornal escrevia: “Dona Branca – Uma banqueira às suas ordens.”
Numa curta entrevista telefónica, a “benemérita” garantia nada ter “a dizer, meu filho. Posso pedir dinheiro emprestado e posso dar por ele os juros que quiser. O meu dinheiro é meu: posso rasgá-lo, dá-lo ou até ir à janela e deitá-lo para a rua.”


RESPONSABILIDADE
Estavam feitas as apresentações, mas nem os jornalistas adivinhariam o turbilhão que se viveria na sociedade portuguesa nos 19 meses seguintes, até à detenção da Dona Branca, em Outubro de 1984. Em jeito de anedota, vale a pena referir que, nessa reportagem inaugural, o jornal cometeu involuntariamente um lapso, noticiando que o escritório onde a banqueira também fazia empréstimos se situava na Rua Abade Faria, n.º 30. Foi um erro incómodo, como se veria uma semana mais tarde. O escritório ficava no n.º 20 e, durante toda a semana, os moradores do 30 não tiveram sossego, tantos eram os toques na campainha dos novos depositantes.
Num texto estupendo (aqui), Luiz Carvalho conta que demorou dois meses a persuadir a benemérita a deixar-se fotografar sem se esconder. Prometeu-lhe que nada de mal sucederia. Era uma promessa impossível de cumprir, pois os mais de cem mil exemplares do jornal circularam pelo país e criaram um mito imparável. Como dizem os dinamarqueses, as promessas e os ovos são facilmente quebráveis.
A operação da “banqueira do povo” baseava-se num ritmo estável de depósitos e numa rede de confiança que impedia estranhos (no sentido de não conhecidos dos membros da pirâmide) de entrarem no negócio. Enquanto se manteve nesses parâmetros, a operação progrediu, apesar dos indícios mais tarde apurados de que os colaboradores da Dona Branca desviavam regularmente fundos, comprometendo o esquema piramidal de crédito. A celebridade proporcionada pelo Tal & Qual e pela fotografia de Luiz Carvalho selou depois o destino da benemérita.

ESTADO DE GRAÇA
Jornal popular, de poucas páginas, poucas palavras, poucas fotografias e poucas peneiras, o Tal & Qual encontrou na Dona Branca o seu filão. Nas semanas seguintes, a benemérita foi regularmente tema de notícias. Ora porque o jornal procurava perceber o seu complexo esquema de investimento imobiliário capaz de suportar o pagamento de juros aos depositantes (12/03/83), ora porque os nobres El Pais, Guardian ou Frankfurter Rundschau lhe dedicavam reportagens (19/03/83), ora ainda porque a Dona Branca não resistira a telefonar para o programa “A Festa Continua”, de Júlio Isidro, na RTP, licitando por 350 contos um quadro no âmbito de uma emissão de apoio à Casa da Imprensa (11/05/83). O público no Cinema Europa fez “aahhh” quando soube da identidade da benemérita, e a “gentil banqueira do povo” marcou mais uns pontos no imaginário popular, que a romantizou como uma encarnação moderna do Padre Cruz.

"Tal & Qual", 3 de Fevereiro de 1984
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Perto do final do ano de 1983, o verniz começou a estalar, sempre com o Tal & Qual no comando da reportagem. Por um lado, a revelação de que recebia uma pensão de pobreza de 3.900 escudos foi escandalosa, face ao conto de fadas que se conhecia; por outro, Ernâni Lopes, ministro das Finanças, recomendou na RTP cautela aos depositantes e, em privado, pediu à Inspecção de Crédito do Banco de Portugal para investigar a operação. No primeiro inquérito, aliás, a Dona Branca chorou copiosamente e explicou que só ajudava os necessitados. Os inspectores entreolharam-se quando tomaram conhecimento da sua lista de clientes. Entre os depositantes, constavam deputados, políticos, figuras da televisão e do cinema português. E vários inspectores da Policia Judiciária.

A QUEDA DO ABISMO
No imaginário popular, brincava-se que a Dona Branca daria um ministro das Finanças mais capaz do que “o sovina Ernâni Lopes”, mas, a partir de Fevereiro de 1984, o ritmo dos depósitos começou a decrescer. Emergiram na imprensa suspeitas de insolvência. Apesar disso, pelo menos para o exterior, o negócio prosperava. Ao escritório da Rua Abade Faria, somava-se agora outro na Avenida Rio de Janeiro. Dezenas de angariadores patrulhavam a cidade. Acumulavam-se sacos de plástico com dinheiro na sede da organização. Passavam-se recibos de depósito sem confirmação. Cega pela atenção pública, Dona Branca parecia ter perdido o controlo da operação. Ao fotógrafo de uma agência francesa que a captou no seu Mercedes com a sobrinha, a benemérita pespegou dois beijos na face.
Em Junho, Maria Branca dos Santos anunciou um período de meditação, coincidente com a fase em que já não conseguia cobrir os juros exorbitantes. Surgiram os primeiros relatos de burla na sua própria organização. De contas paralelas em Espanha e na Suíça. Descreviam-se recibos de depósito forjados, mas pagos como válidos (saber-se-ia mais tarde, durante o julgamento, que o principal livro de contas da organização era a memória da Dona Branca). Branca vendia património imobiliário e jóias para cumprir os compromissos. 
Homem de muitas guerras, com 92 anos de experiência, o banqueiro Cupertino de Miranda resumia o que parecia inevitável: “Na actual conjuntura, não conheço nenhum negócio legítimo que dê sequer 30 por cento. Ora 120 por cento ao ano é inconcebível.”
Fosse por convicção ingénua ou por desejo de prolongar a história jornalística da sua publicação, Hernâni Santos continuou a alimentar o mito. A 5 de Junho de 1984, relatou a história da benemérita que apoiara a Associação de Deficientes das Forças Armadas e que se preparava para oferecer equipamento ao Instituto de Oncologia. Pior do que isso: o jornal publicitou casos de sucesso de depositantes a quem as contas continuavam a bater certo e para quem o dinheiro estava seguro.
Um dia, o dinheiro deixou de estar seguro. A conta 631 5356 do Banco Português do Atlântico, na Praça de Londres, deixou de ter cobertura. Os depósitos cessaram. Os clientes da Dona Branca queriam levantar as economias e a conta estava “careca”. Colaboradores próximos publicavam desmentidos na imprensa, recusando qualquer ligação à operação da benemérita. Com ironia, mas alguma falta de vergonha, o Tal & Qual rotulou o caso com uma manchete inesquecível: “A Branca... rota” (07/09/1984).

"Tal & Qual", autor desconhecido
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Foi o pandemónio em Lisboa. Meio milhar de pessoas acorreu aos escritórios. Foi necessário destacar um contingente da PSP para a Avenida Rio de Janeiro porque, nas palavras de Rui Machete, ministro da Justiça, “não podemos permitir que a Dona Branca seja sovada”. Encenaram-se tentativas de recuperação em Setembro. Numa das ocasiões, um falso depositante aproximou-se do escritório e, à frente da fila de credores, garantiu que ali ia deixar 1.500 contos por ter confiança na banqueira. Era tarde. Nem os vinte investigadores da PJ que tinham caído na esparrela conseguiram recuperar os seus depósitos. A fonte secara.
No dia 4 de Outubro de 1984, a Dona Branca foi presa. Nunca se soube o volume total de depósitos perdidos. Morreu em Abril de 1992, numa casa de saúde, praticamente cega.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.

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