(Hesito em
incluir esta narrativa no leque de histórias improvisadas do jornalismo
português. É verdade que Ramalho Ortigão foi um distinto jornalista e terá sido
na redacção de textos para jornais que mais se distinguiu. É verdade também que
este caso foi parcialmente filtrado para periódicos portugueses na primeira
década do século XX. Mas é inquestionável que, durante a missão vaticana,
Ramalho não se sentiu jornalista, nem agiu como tal. Fica, por ora, dentro deste
lote. Os leitores dirão de sua justiça).
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O ano era 1901.
Passavam doze meses sobre a morte de Eça de Queirós. Os amigos do escritor
poveiro esforçavam-se por ajudar a viúva e os filhos, sabendo que Eça, como
aliás acontecera durante o tempo em que vivera, não deixara fortuna. Bernardo
Pinheiro Correia de Melo, o primeiro conde de Arnoso, um dos membros dos
Vencidos da Vida e amigo de infância de Eça e Ramalho Ortigão, pedira na Câmara
dos Pares uma pensão para a viúva e para os filhos do escritor, em nome dos
serviços prestados à literatura portuguesa. Ramalho, a Ramalhal figura que Eça
descrevera em tempos e que com ele colaborara intensamente durante três
décadas, arregaçara as mangas e debruçara-se sobre as obras inéditas que Eça
deixara quase terminadas. Durante um ano, trabalhou no manuscrito de “A Cidade
e as Serras”, deixando-o quase pronto para edição. Havia outros manuscritos na
calha, mas, a 28 de Agosto de 1901, o escritor portuense decidiu partir
abruptamente para Itália.
A acreditar nas
suas palavras, viajou sem agenda, ao sabor do momento, desejoso de beber a
cultura artística e religiosa de Milão e Roma, tendo para isso escrito ao conde de Arnoso, secretário particular do rei, para solicitar uma audiência a Dom Carlos I que o dispensasse temporariamente do serviço na Biblioteca da Ajuda. Entre
Setembro e Dezembro desse ano, Ramalho viveu na capital italiana, acompanhado
de amigos (é identificado, por exemplo, o “amigo Monteverde”, que poderá ser o
escultor italiano Giulio Monteverde). Levaria, ou não, uma missão diplomática
em mente? Ou, já em Roma, teria sido um improvisado correio diplomático, por
necessidade de uma das partes envolvidas? Não se sabe com certeza.
Sabe-se apenas
que, certo dia, de surpresa, Henrique O’Connor Martins, encarregado de negócios
interino da embaixada portuguesa de Roma (onde esteve, segundo preciosa
informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 1896 a 1909) e amigo de
Ramalho, pediu em seu nome uma audiência ao papa Leão XIII, através do cardeal
Rampola, secretário de Estado da Santa Sé durante este papado.
Henrique O'Connor Martins, em quadro pintado por Sanchez de Barbuda "Illustração Portuguesa", 1903, n.º 18 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Revista "Ocidente", n.º 887, 1903 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
“A minha
surpresa foi tão grande como se as sibilas e os profetas do Juízo Final de
Miguel Ângelo acabassem de me anunciar que o próprio Padre Eterno me mandava
chamar. Podia lá ser! Eu, velho filho do século, ferrugento racionalista, pobre
pecador, discípulo, no último banco, de Spinosa, de Darwin, de Littré, de
Auguste Comte, de Renan, antigo entusiasta de Byron, de Hugo, de Carlyle, de
Proudhon, de Michelet, de Ruskin, ser assim recebido na paternal intimidade do
Santuário pelo sucessor de São Pedro, pelo vigário de Cristo, afigurava-se-me a
mais inverosímil anomalia, parecendo tacitamente envolver da minha parte uma
deturpação de identidade, uma dissimulação de pessoa, quase uma insídia”,
escreveu mais tarde, na “Ilustração Portuguesa”, ao lembrar o caso [grafia
corrigida para melhor percepção do texto].
Mas quem era na
altura o sucessor de Pedro no Vaticano?
O PAPA LEÃO XIII
De 20 de
Fevereiro de 1878 a 20 de Julho de 1903, data da sua morte, o cardeal Vincenzo
Pecci, antigo arcebispo de Perugia, foi o papa Leão XIII. Serviu durante 25
anos na cadeira de São Pedro, num período conturbado. Pela primeira vez, a
Santa Sé estava confinada às fronteiras do Vaticano na sequência do conflito
aberto em Itália com Vítor Emanuel (sogro do “nosso” rei Dom Luís) e depois com
o rei Humberto. Como notou Ramalho, “Leão XIII é o primeiro da sua hierarquia
que cinge a tiara não tendo por estados pontifícios mais que a estância do
Vaticano, onde a estátua de Garibaldi, do alto do Janículo, o fita
vitoriosamente como eterno prisioneiro da Itália irredenta”.
Ramalho
encontrou de facto duas cortes em Roma, uma no Quirinal, outra no Vaticano,
“duplicando o número dos representantes diplomáticos de todos os países” e
obrigando-os a reunir entre si em “territórios extra-oficiais e neutros, mais
facilmente acessíveis aos viajantes, como os halls dos grandes hotéis, o salão dos restaurantes à moda e
o lindo tea room do Corso”. Em
face do que sabemos hoje, é duvidoso que a “defrontação dentro do mesmo povoado
de duas autoridades adversas (…) produz[isse] no público romano o mais singular
respeito pela opinião alheia”, como notou o escritor. O papa estava confinado
por decreto ao Vaticano e a situação era insustentável.
Leão XIII fez o
que pôde durante estes anos de conflito: escreveu. Algumas das mais duradouras
encíclicas papais foram produzidas pelo seu punho, valendo-lhe o epíteto de
“papa das doutrinas sociais e económicas”. Num discurso invulgarmente moderno,
mediou os conflitos entre patrões industriais e a crescente classe operária,
estipulando direitos e deveres para o capital e para o trabalho (Rerum Novarum,
1891). De alguma forma, a doutrina social da Igreja foi fundada no seu papado.
Foi também um
papa que percebeu rapidamente o poder dos novos meios de comunicação de massa,
baseados na reprodução da imagem. Tornou-se um dos primeiros papas fotografados
e foi decerto o primeiro filmado, graças a um acordo com o cineasta William
Dickson que, depois de longos meses de negociação, foi autorizado a filmar Leão
XIII em passeios pelos jardins do Vaticano (1898).
Para além do
conflito político com Itália, Leão XIII teve outro incêndio para apagar e,
neste caso, não foi propriamente bem sucedido. Assustada com as implicações das
obras de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, particularmente do ser
humano, a Igreja manteve uma distância prudente em relação ao evolucionismo e
ao progresso da ciência. Nenhum papa abordara oficialmente o assunto antes de
Leão XIII. Na encíclica Providentissimus Deus
(1893), o pontífice tocou vagamente no problema, alinhavando argumentos a favor
e contra o progresso científico, usados depois pelos dois campos em disputa.
Criticou por exemplo “a sede pela novidade” e a “liberdade de pensamento sem
restrições” do pensamento científico, mas reconheceu também que a Bíblia não
deveria ser lida no sentido literal. Não querendo alienar o mundo científico do
catolicismo, mas recusando mérito às teorias da selecção natural e da evolução,
Leão XIII manteve a Santa Sé no limbo. Aliás, só em 1950 uma encíclica referiu
explicitamente o corpo teórico de Charles Darwin – em Humani Generis, Pio XII declarou-o
não contraditório com a religião, na medida em que o evolucionismo trata da
origem do corpo humano em matéria viva e não da alma, embora o mito de Adão e
Eva como primeiros antepassados do homem fosse objecto de debate teológico até
2004.
Leão XIII não
era um conservador. Tinha até uma curiosidade infindável sobre a ciência.
Sabe-se que recebeu Júlio Verne em 1884 e interveio directamente para terminar
o absurdo impedimento aos católicos de frequentarem as Universidades de Oxford
e Cambridge em 1895. Mas não conseguiu destrinçar os méritos do Darwinismo dos
postulados dos seus continuadores, como Herbert Spencer e o seu princípio da
sobrevivência dos mais fortes, ou Francis Galton. E ficou, neste tema, do lado
mais frágil da história.
RAMALHO E A LEITURA
ENVIESADA DE DARWIN
Nos quinze dias
que sucederam ao pedido de audiência ao cardeal Rampola, Ramalho entreteve-se a
escrever um documento que resumia a sua obra literária, de “antigo
panfletário”, “sem tentar atenuá-la pela contrição de qualquer pecado que nela
se contenha, a não ser o da sua condenável perfeição artística”. O documento autobiográfico serviu para o Maestro de Câmara do papa conhecer a identidade do diplomata improvisado e viabilizar a audiência, percebendo simultaneamente que estava defronte de um antigo autor que assumira no passado profundas posições anticlericais. Em 1877, por exemplo, Ramalho escrevera uma brilhante e venenosa carta aberta ao papa Pio IX (inserida nas Farpas e republicada em 1882, no jornal A Imprensa, n.º 32).
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
No processo,
Ramalho desvirtuou o pensamento de Darwin, imaginando que Leão XIII o condenara
ou, pelo menos, percebera “o erro fundamental da doutrina de Darwin”. Em nenhum
momento, Darwin antevira que o “agente principal da conservação e do
desenvolvimento das espécies [é] o esforço individual na luta pela vida,
enunciando o dogma cruel do struggle for life”, como Ramalho escreveu. Foi assim despropositada toda a sua arenga –
aparentemente discutida pelo próprio com o papa – contra aqueles que não
perceberam que “a espécie unicamente vinga e prevalece, não pelo feroz impulso
da combatividade, mas pelo meigo instinto do associamento [sic] e da unificação
dos indivíduos, como se dá não só com as humildes formigas e com as frágeis
abelhas, mas com os mais possantes e ferozes dos carnívoros, sempre que eles se
encontram em supremo conflito com a destrutiva hostilidade da concorrência”.
Nunca Darwin, nem mesmo Spencer, tinham proposto tal coisa. Desconhece-se,
infelizmente, se o papa Leão XIII concordou com os argumentos de Ramalho, mas o
escritor e jornalista não tinha sido convocado para uma conversa teológica. O
papa tinha motivos mais prosaicos para lhe falar.
A MENSAGEM
Foi num domingo,
dia 10 de Novembro de 1901, pelas onze horas de manhã. Ramalho foi avisado do horário da audiência com dois dias de antecedência pelo Maestro de Câmara. Segundo o escritor, mais ninguém
esteve presente na reunião. Sentado numa cadeira de espaldar, "como Voltaire na
estátua do Houdon", o papa chamou-o num francês com sotaque italiano. "Pus um joelho no chão e prostrei-me, reverente, perante a majestade de um homem inteiramente vestido de branco no meio de uma câmara vermelha", contou o escritor numa carta particular. A "magreza" e a "senilidade" do interlocutor "dão-lhe um aspecto que já não parece humano".
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Aproveitou entretanto para lançar a escada para outro tema – a decadência do clero português, a sua
mediocridade intelectual e moral desde meados do século XIX. Por outras
palavras, o escritor atribuiu às lacunas culturais do clero a incapacidade para
manter a elite e o povo português no mesmo espírito de devoção católica que
marcara os sete séculos anteriores. Enquadrou-os em retórica sobre a devoção
portuguesa à Santa Sé e os contributos de tantos homens portugueses do clero
para a divulgação da fé, mas o papa percebeu a posição. Discutiram a reforma
setecentista da educação do marquês de Pombal, descrito inesperadamente pelo
papa como “grande homem e, o que não é muito frequente, também um bom
católico”. E Leão XIII cunhou
depois a mensagem que deveria ser enviada aos portugueses: “É para elevar esse
nível que o Colégio Português em Roma existe. Procurarei aperfeiçoá-lo e, não
obstante a minha pobreza, vou-lhe consagrar trezentos ou quatrocentos mil
francos. Não conhece o Colégio?... Vá vê-lo... E informe o rei do que pretendo
fazer pelo clero português.”
Como notou Luís
Salgado de Matos, num artigo de 1994 (aqui), o papa partilhava a mesma
perspectiva que Ramalho transmitiu. Aliás, segundo o mesmo autor, o diagnóstico
era-lhe familiar porque também o núncio apostólico em Lisboa enviava sucessivos
relatórios sobre o tema. O Colégio visava acolher estudantes de Lisboa, pagos
pelas dioceses portuguesas, uniformizando a sua educação religiosa e aumentando
os seus horizontes culturais. A decisão viria aliás a marcar a educação dos
religiosos portugueses nas primeiras décadas do século XX.
JORNALISTA OU
DIPLOMATA
Ramalho saiu da
audiência com uma bênção papal para si e para a sua família, tendo sido esse o
ângulo que escolheu mais tarde para relatar a aventura. Mas, na verdade, em
1901, Ramalho não parecia um jornalista ou um escritor. No dia seguinte, escreveu do Hotel do Capitólio ao
conde de Arnoso, de forma a que este informasse Dom Carlos I da posição papal. Pensou em redigir directamente a missiva ao rei, mas pareceu-lhe "impertinente", como reconheceu na carta ao conde.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”.
"Flores de Roma", por Ramalho Ortigão, 24 de Dezembro de 1906, "Ilustração Portuguesa" (página recuperada a partir da Hemeroteca Digital) |
Pouco mais tempo
esteve em Roma, a cidade que, “de século para século, através de todas as
vicissitudes da política e de todas as evoluções do progresso, sobre sucessivas
e sobrepostas ruínas de todas as caducidades, continua a exercer nos homens o
mesmo invasivo sortilégio, a mesma carinhosa atracção que tinha na
antiguidade”. Partiu para Nápoles nos dias seguintes.
A missão do
diplomata, que fora jornalista e escritor, terminara.
O ARTIGO QUE ESTEVE PARA NÃO EXISTIR
Segundo a correspondência guardada no espólio do conde de Arnoso na Biblioteca Nacional [E32, v. sobretudo E32/2645], Ramalho colocara toda a informação de que se lembrara na carta improvisada ao secretário particular de Dom Carlos em 1901, pelo que, em Outubro de 1906, quando se preparava para redigir o seu texto sobre as memórias do encontro papal, viu-se na necessidade de apelar ao amigo "que tão bem arquiva muitos papéis, [se] não terá e não me quererá emprestar por uma hora uma carta que sobre o aludido assunto então lhe escrevi de Roma". O conde de Arnoso em boa hora o fez, caso contrário não teria sido passado à posteridade o minucioso relato de 1906.
Revista "Ocidente", n.º 1167, 1911 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Dias depois, uma nova carta foi enviada pelo escritor ao amigo. Estava visivelmente agastado com a revista "Ilustração Portuguesa" e perguntava se valeria a pena ele, o conde de Arnoso, o conde de Sabugosa e Luiz de Magalhães colaborarem, como tinham prometido, no número especial de Natal da publicação, "uma revista veículo de tais opiniões. Por minha parte, acho que não". A que se referia o escritor?
Sabemo-lo pela carta seguinte, igualmente dirigida ao conde de Arnoso e redigida com fúria invulgar num homem que se gabava da sua contenção. É a mais violenta das dezenas de cartas de Ramalho Ortigão para o conde de Arnoso. E visava Fialho de Almeida, notável sátiro da sociedade portuguesa que, na edição de 29 de Outubro de 1906, redigira a crónica "Lisboa Monumental".
No texto, Fialho escandalizou Ramalho pelo tom anticlerical e fortemente crítico das autoridades. Transcrevo algumas passagens que decerto enervaram o escritor: "O circo equestre não tem mais viabilidade, pois temos em Santo Antão coliseu para dez ou vinte gerações de títeres e palhaços"; "[Este é] um tempo em que o homem carece de se baptizar todos os dias, o que faz da casa de banhos contemporaneamente o único baptistério a abrir nesta terra de gente por lavar"; "quanto a jazigos de família, uma vez o forno crematório decretado, traremos para casa em boiões as cinzas dos ancestros, com que bordaremos as letras do arroz doce, nos festivos jantares de aniversário"; "cada brasileiro ou rendeiro rico teve licença de erguer a casa a esmo, conforme planos de mestre António ou mestre Isidro, e isto sem a Câmara lhes pedir outras contas que não fossem alcavalas tributais – sua apoucada e cerdosa ocupação"; e, por fim, "é certo que um pouco de deboche activa a civilização dos povos bisonhos e é um factor maravilhoso de sugestões. Roleta, mulheres, circos de verão, teatrofones, música clássica, atlética, mascaradas, festas de carácter pitoresco e popular (…)"
Tudo indica que os amigos consideraram a fúria injustificada e puritana, pois Ramalho disse depois submeter-se "gostosamente às opiniões da maioria", mas ainda foi ameaçando, com implacável raiva, que "nada me seria mais fácil, quando o julgar oportuno, do que desfazer o focinho de Fialho de Almeida em cima da sua prosa".
EPÍLOGO
A audiência
papal foi caindo no esquecimento nas décadas seguintes. A sua
reabilitação histórica partiu de António Rodrigues Cavalheiro, historiador, deputado da União Nacional e autarca. Através da condessa de Arnoso, viúva de Bernardo de Melo, Cavalheiro teve acesso ao espólio do conde e publicou informação sobre o episódio – quer em artigos de jornal, quer em artigos mais estruturados como na "Panorama" de 1960. Fê-lo com uma marcada matriz ideológica, evocando as lições de religiosidade extrema do povo português que o caso encerrava.
Isso mesmo pode
ser avaliado na sua coluna de opinião de 26 de Setembro de 1944, no “Diário da Manhã”,
jornal oficial da União Nacional. A propósito dos 29 anos da morte do escritor,
o historiador recordou então o ensaio “Flores de Roma”, publicado por Ramalho
na “Ilustração Portuguesa”.
"Diário da Manhã", 24/09/1944, por Rodrigues Cavalheiro |
Cavalheiro não
deixava de lamentar as diatribes de “As Farpas” do século XIX, “páginas menos
dignas da sua alta craveira mental, com que pagou tributo às superstições
racionalistas do seu tempo”. Em 1901, porém, segundo Cavalheiro, Ramalho já
estava noutro patamar da evolução espiritual, na “ascensão para a grande luz do
Catolicismo”.
Para o deputado
da União Nacional, o episódio encerrava uma lição relevante: a resposta
de Ramalho ao exagero das tomadas de posição de alguns jornalistas e políticos
sobre a Santa Sé, meras expressões de arruaça intelectual que não poderiam
esconder a relação privilegiada do país com a Igreja. E terminava: “Que
profundo tema de meditação para quem não abdique totalmente da faculdade de
pensar e de concluir!”
1 comentário:
Não e costume ver jornalistas darem-se a tanto trabalho de pesquisa. Dou-lhe os parabens por isso, Gonçalo. É fundamental ler esta história como vc a leu: cruzando os papéis particulares de Ramalho e Arnoso com o que Ramalho depois decidiu tornar público. Há outras historias deste seu projeto que beneficiariam tb de uma leitura comparada.
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