sexta-feira, março 29, 2013

Ramalho, o Papa, Darwin e o Rei à Espera


(Hesito em incluir esta narrativa no leque de histórias improvisadas do jornalismo português. É verdade que Ramalho Ortigão foi um distinto jornalista e terá sido na redacção de textos para jornais que mais se distinguiu. É verdade também que este caso foi parcialmente filtrado para periódicos portugueses na primeira década do século XX. Mas é inquestionável que, durante a missão vaticana, Ramalho não se sentiu jornalista, nem agiu como tal. Fica, por ora, dentro deste lote. Os leitores dirão de sua justiça).

"Wikipedia Commons" - Domínio livre.

O ano era 1901. Passavam doze meses sobre a morte de Eça de Queirós. Os amigos do escritor poveiro esforçavam-se por ajudar a viúva e os filhos, sabendo que Eça, como aliás acontecera durante o tempo em que vivera, não deixara fortuna. Bernardo Pinheiro Correia de Melo, o primeiro conde de Arnoso, um dos membros dos Vencidos da Vida e amigo de infância de Eça e Ramalho Ortigão, pedira na Câmara dos Pares uma pensão para a viúva e para os filhos do escritor, em nome dos serviços prestados à literatura portuguesa. Ramalho, a Ramalhal figura que Eça descrevera em tempos e que com ele colaborara intensamente durante três décadas, arregaçara as mangas e debruçara-se sobre as obras inéditas que Eça deixara quase terminadas. Durante um ano, trabalhou no manuscrito de “A Cidade e as Serras”, deixando-o quase pronto para edição. Havia outros manuscritos na calha, mas, a 28 de Agosto de 1901, o escritor portuense decidiu partir abruptamente para Itália.
A acreditar nas suas palavras, viajou sem agenda, ao sabor do momento, desejoso de beber a cultura artística e religiosa de Milão e Roma, tendo para isso escrito ao conde de Arnoso, secretário particular do rei, para solicitar uma audiência a Dom Carlos I que o dispensasse temporariamente do serviço na Biblioteca da Ajuda. Entre Setembro e Dezembro desse ano, Ramalho viveu na capital italiana, acompanhado de amigos (é identificado, por exemplo, o “amigo Monteverde”, que poderá ser o escultor italiano Giulio Monteverde). Levaria, ou não, uma missão diplomática em mente? Ou, já em Roma, teria sido um improvisado correio diplomático, por necessidade de uma das partes envolvidas? Não se sabe com certeza.
Sabe-se apenas que, certo dia, de surpresa, Henrique O’Connor Martins, encarregado de negócios interino da embaixada portuguesa de Roma (onde esteve, segundo preciosa informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 1896 a 1909) e amigo de Ramalho, pediu em seu nome uma audiência ao papa Leão XIII, através do cardeal Rampola, secretário de Estado da Santa Sé durante este papado.

Henrique O'Connor Martins, em quadro pintado por Sanchez de Barbuda
"Illustração Portuguesa", 1903, n.º 18
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
Revista "Ocidente", n.º 887, 1903
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
“A minha surpresa foi tão grande como se as sibilas e os profetas do Juízo Final de Miguel Ângelo acabassem de me anunciar que o próprio Padre Eterno me mandava chamar. Podia lá ser! Eu, velho filho do século, ferrugento racionalista, pobre pecador, discípulo, no último banco, de Spinosa, de Darwin, de Littré, de Auguste Comte, de Renan, antigo entusiasta de Byron, de Hugo, de Carlyle, de Proudhon, de Michelet, de Ruskin, ser assim recebido na paternal intimidade do Santuário pelo sucessor de São Pedro, pelo vigário de Cristo, afigurava-se-me a mais inverosímil anomalia, parecendo tacitamente envolver da minha parte uma deturpação de identidade, uma dissimulação de pessoa, quase uma insídia”, escreveu mais tarde, na “Ilustração Portuguesa”, ao lembrar o caso [grafia corrigida para melhor percepção do texto].
Mas quem era na altura o sucessor de Pedro no Vaticano?

O PAPA LEÃO XIII

De 20 de Fevereiro de 1878 a 20 de Julho de 1903, data da sua morte, o cardeal Vincenzo Pecci, antigo arcebispo de Perugia, foi o papa Leão XIII. Serviu durante 25 anos na cadeira de São Pedro, num período conturbado. Pela primeira vez, a Santa Sé estava confinada às fronteiras do Vaticano na sequência do conflito aberto em Itália com Vítor Emanuel (sogro do “nosso” rei Dom Luís) e depois com o rei Humberto. Como notou Ramalho, “Leão XIII é o primeiro da sua hierarquia que cinge a tiara não tendo por estados pontifícios mais que a estância do Vaticano, onde a estátua de Garibaldi, do alto do Janículo, o fita vitoriosamente como eterno prisioneiro da Itália irredenta”.
Ramalho encontrou de facto duas cortes em Roma, uma no Quirinal, outra no Vaticano, “duplicando o número dos representantes diplomáticos de todos os países” e obrigando-os a reunir entre si em “territórios extra-oficiais e neutros, mais facilmente acessíveis aos viajantes, como os halls dos grandes hotéis, o salão dos restaurantes à moda e o lindo tea room do Corso”. Em face do que sabemos hoje, é duvidoso que a “defrontação dentro do mesmo povoado de duas autoridades adversas (…) produz[isse] no público romano o mais singular respeito pela opinião alheia”, como notou o escritor. O papa estava confinado por decreto ao Vaticano e a situação era insustentável.
Leão XIII fez o que pôde durante estes anos de conflito: escreveu. Algumas das mais duradouras encíclicas papais foram produzidas pelo seu punho, valendo-lhe o epíteto de “papa das doutrinas sociais e económicas”. Num discurso invulgarmente moderno, mediou os conflitos entre patrões industriais e a crescente classe operária, estipulando direitos e deveres para o capital e para o trabalho (Rerum Novarum, 1891). De alguma forma, a doutrina social da Igreja foi fundada no seu papado.
Foi também um papa que percebeu rapidamente o poder dos novos meios de comunicação de massa, baseados na reprodução da imagem. Tornou-se um dos primeiros papas fotografados e foi decerto o primeiro filmado, graças a um acordo com o cineasta William Dickson que, depois de longos meses de negociação, foi autorizado a filmar Leão XIII em passeios pelos jardins do Vaticano (1898).
Para além do conflito político com Itália, Leão XIII teve outro incêndio para apagar e, neste caso, não foi propriamente bem sucedido. Assustada com as implicações das obras de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, particularmente do ser humano, a Igreja manteve uma distância prudente em relação ao evolucionismo e ao progresso da ciência. Nenhum papa abordara oficialmente o assunto antes de Leão XIII. Na encíclica Providentissimus Deus (1893), o pontífice tocou vagamente no problema, alinhavando argumentos a favor e contra o progresso científico, usados depois pelos dois campos em disputa. Criticou por exemplo “a sede pela novidade” e a “liberdade de pensamento sem restrições” do pensamento científico, mas reconheceu também que a Bíblia não deveria ser lida no sentido literal. Não querendo alienar o mundo científico do catolicismo, mas recusando mérito às teorias da selecção natural e da evolução, Leão XIII manteve a Santa Sé no limbo. Aliás, só em 1950 uma encíclica referiu explicitamente o corpo teórico de Charles Darwin – em Humani Generis, Pio XII declarou-o não contraditório com a religião, na medida em que o evolucionismo trata da origem do corpo humano em matéria viva e não da alma, embora o mito de Adão e Eva como primeiros antepassados do homem fosse objecto de debate teológico até 2004.
Leão XIII não era um conservador. Tinha até uma curiosidade infindável sobre a ciência. Sabe-se que recebeu Júlio Verne em 1884 e interveio directamente para terminar o absurdo impedimento aos católicos de frequentarem as Universidades de Oxford e Cambridge em 1895. Mas não conseguiu destrinçar os méritos do Darwinismo dos postulados dos seus continuadores, como Herbert Spencer e o seu princípio da sobrevivência dos mais fortes, ou Francis Galton. E ficou, neste tema, do lado mais frágil da história.

RAMALHO E A LEITURA ENVIESADA DE DARWIN
Nos quinze dias que sucederam ao pedido de audiência ao cardeal Rampola, Ramalho entreteve-se a escrever um documento que resumia a sua obra literária, de “antigo panfletário”, “sem tentar atenuá-la pela contrição de qualquer pecado que nela se contenha, a não ser o da sua condenável perfeição artística”. O documento autobiográfico serviu para o Maestro de Câmara do papa conhecer a identidade do diplomata improvisado e viabilizar a audiência, percebendo simultaneamente que estava defronte de um antigo autor que assumira no passado profundas posições anticlericais. Em 1877, por exemplo, Ramalho escrevera uma brilhante e venenosa carta aberta ao papa Pio IX (inserida nas Farpas e republicada em 1882, no jornal A Imprensa, n.º 32).
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
No processo, Ramalho desvirtuou o pensamento de Darwin, imaginando que Leão XIII o condenara ou, pelo menos, percebera “o erro fundamental da doutrina de Darwin”. Em nenhum momento, Darwin antevira que o “agente principal da conservação e do desenvolvimento das espécies [é] o esforço individual na luta pela vida, enunciando o dogma cruel do struggle for life”, como Ramalho escreveu. Foi assim despropositada toda a sua arenga – aparentemente discutida pelo próprio com o papa – contra aqueles que não perceberam que “a espécie unicamente vinga e prevalece, não pelo feroz impulso da combatividade, mas pelo meigo instinto do associamento [sic] e da unificação dos indivíduos, como se dá não só com as humildes formigas e com as frágeis abelhas, mas com os mais possantes e ferozes dos carnívoros, sempre que eles se encontram em supremo conflito com a destrutiva hostilidade da concorrência”. Nunca Darwin, nem mesmo Spencer, tinham proposto tal coisa. Desconhece-se, infelizmente, se o papa Leão XIII concordou com os argumentos de Ramalho, mas o escritor e jornalista não tinha sido convocado para uma conversa teológica. O papa tinha motivos mais prosaicos para lhe falar.

A MENSAGEM
Foi num domingo, dia 10 de Novembro de 1901, pelas onze horas de manhã. Ramalho foi avisado do horário da audiência com dois dias de antecedência pelo Maestro de Câmara. Segundo o escritor, mais ninguém esteve presente na reunião. Sentado numa cadeira de espaldar, "como Voltaire na estátua do Houdon", o papa chamou-o num francês com sotaque italiano. "Pus um joelho no chão e prostrei-me, reverente, perante a majestade de um homem inteiramente vestido de branco no meio de uma câmara vermelha", contou o escritor numa carta particular. A "magreza" e a "senilidade" do interlocutor "dão-lhe um aspecto que já não parece humano".
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice  – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Aproveitou entretanto para lançar a escada para outro tema – a decadência do clero português, a sua mediocridade intelectual e moral desde meados do século XIX. Por outras palavras, o escritor atribuiu às lacunas culturais do clero a incapacidade para manter a elite e o povo português no mesmo espírito de devoção católica que marcara os sete séculos anteriores. Enquadrou-os em retórica sobre a devoção portuguesa à Santa Sé e os contributos de tantos homens portugueses do clero para a divulgação da fé, mas o papa percebeu a posição. Discutiram a reforma setecentista da educação do marquês de Pombal, descrito inesperadamente pelo papa como “grande homem e, o que não é muito frequente, também um bom católico”.  E Leão XIII cunhou depois a mensagem que deveria ser enviada aos portugueses: “É para elevar esse nível que o Colégio Português em Roma existe. Procurarei aperfeiçoá-lo e, não obstante a minha pobreza, vou-lhe consagrar trezentos ou quatrocentos mil francos. Não conhece o Colégio?... Vá vê-lo... E informe o rei do que pretendo fazer pelo clero português.”
Como notou Luís Salgado de Matos, num artigo de 1994 (aqui), o papa partilhava a mesma perspectiva que Ramalho transmitiu. Aliás, segundo o mesmo autor, o diagnóstico era-lhe familiar porque também o núncio apostólico em Lisboa enviava sucessivos relatórios sobre o tema. O Colégio visava acolher estudantes de Lisboa, pagos pelas dioceses portuguesas, uniformizando a sua educação religiosa e aumentando os seus horizontes culturais. A decisão viria aliás a marcar a educação dos religiosos portugueses nas primeiras décadas do século XX.

JORNALISTA OU DIPLOMATA
Ramalho saiu da audiência com uma bênção papal para si e para a sua família, tendo sido esse o ângulo que escolheu mais tarde para relatar a aventura. Mas, na verdade, em 1901, Ramalho não parecia um jornalista ou um escritor. No dia seguinte, escreveu do Hotel do Capitólio ao conde de Arnoso, de forma a que este informasse Dom Carlos I da posição papal. Pensou em redigir directamente a missiva ao rei, mas pareceu-lhe "impertinente", como reconheceu na carta ao conde.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”. 
"Flores de Roma", por Ramalho Ortigão, 24 de Dezembro de 1906, "Ilustração Portuguesa"
(página recuperada a partir da Hemeroteca Digital)

Pouco mais tempo esteve em Roma, a cidade que, “de século para século, através de todas as vicissitudes da política e de todas as evoluções do progresso, sobre sucessivas e sobrepostas ruínas de todas as caducidades, continua a exercer nos homens o mesmo invasivo sortilégio, a mesma carinhosa atracção que tinha na antiguidade”. Partiu para Nápoles nos dias seguintes.
A missão do diplomata, que fora jornalista e escritor, terminara.

O ARTIGO QUE ESTEVE PARA NÃO EXISTIR
Segundo a correspondência guardada no espólio do conde de Arnoso na Biblioteca Nacional [E32, v. sobretudo E32/2645], Ramalho colocara toda a informação de que se lembrara na carta improvisada ao secretário particular de Dom Carlos em 1901, pelo que, em Outubro de 1906, quando se preparava para redigir o seu texto sobre as memórias do encontro papal, viu-se na necessidade de apelar ao amigo "que tão bem arquiva muitos papéis, [se] não terá e não me quererá emprestar por uma hora uma carta que sobre o aludido assunto então lhe escrevi de Roma". O conde de Arnoso em boa hora o fez, caso contrário não teria sido passado à posteridade o minucioso relato de 1906.

Revista "Ocidente", n.º 1167, 1911
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) 

Dias depois, uma nova carta foi enviada pelo escritor ao amigo. Estava visivelmente agastado com a revista "Ilustração Portuguesa" e perguntava se valeria a pena ele, o conde de Arnoso, o conde de Sabugosa e Luiz de Magalhães colaborarem, como tinham prometido, no número especial de Natal da publicação, "uma revista veículo de tais opiniões. Por minha parte, acho que não". A que se referia o escritor?
Sabemo-lo pela carta seguinte, igualmente dirigida ao conde de Arnoso e redigida com fúria invulgar num homem que se gabava da sua contenção. É a mais violenta das dezenas de cartas de Ramalho Ortigão para o conde de Arnoso. E visava Fialho de Almeida, notável sátiro da sociedade portuguesa que, na edição de 29 de Outubro de 1906, redigira a crónica "Lisboa Monumental".
No texto, Fialho escandalizou Ramalho pelo tom anticlerical e fortemente crítico das autoridades. Transcrevo algumas passagens que decerto enervaram o escritor: "O circo equestre não tem mais viabilidade, pois temos em Santo Antão coliseu para dez ou vinte gerações de títeres e palhaços"; "[Este é] um tempo em que o homem carece de se baptizar todos os dias, o que faz da casa de banhos contemporaneamente o único baptistério a abrir nesta terra de gente por lavar"; "quanto a jazigos de família, uma vez o forno crematório decretado, traremos para casa em boiões as cinzas dos ancestros, com que bordaremos as letras do arroz doce, nos festivos jantares de aniversário"; "cada brasileiro ou rendeiro rico teve licença de erguer a casa a esmo, conforme planos de mestre António ou mestre Isidro, e isto sem a Câmara lhes pedir outras contas que não fossem alcavalas tributais – sua apoucada e cerdosa ocupação"; e, por fim, "é certo que um pouco de deboche activa a civilização dos povos bisonhos e é um factor maravilhoso de sugestões. Roleta, mulheres, circos de verão, teatrofones, música clássica, atlética, mascaradas, festas de carácter pitoresco e popular (…)"
Tudo indica que os amigos consideraram a fúria injustificada e puritana, pois Ramalho disse depois submeter-se "gostosamente às opiniões da maioria", mas ainda foi ameaçando, com implacável raiva, que "nada me seria mais fácil, quando o julgar oportuno, do que desfazer o focinho de Fialho de Almeida em cima da sua prosa".

EPÍLOGO
A audiência papal foi caindo no esquecimento nas décadas seguintes. A sua reabilitação histórica partiu de António Rodrigues Cavalheiro, historiador, deputado da União Nacional e autarca. Através da condessa de Arnoso, viúva de Bernardo de Melo, Cavalheiro teve acesso ao espólio do conde e publicou informação sobre o episódio – quer em artigos de jornal, quer em artigos mais estruturados como na "Panorama" de 1960. Fê-lo com uma marcada matriz ideológica, evocando as lições de religiosidade extrema do povo português que o caso encerrava.
Isso mesmo pode ser avaliado na sua coluna de opinião de 26 de Setembro de 1944, no “Diário da Manhã”, jornal oficial da União Nacional. A propósito dos 29 anos da morte do escritor, o historiador recordou então o ensaio “Flores de Roma”, publicado por Ramalho na “Ilustração Portuguesa”.

"Diário da Manhã", 24/09/1944, por Rodrigues Cavalheiro
Cavalheiro não deixava de lamentar as diatribes de “As Farpas” do século XIX, “páginas menos dignas da sua alta craveira mental, com que pagou tributo às superstições racionalistas do seu tempo”. Em 1901, porém, segundo Cavalheiro, Ramalho já estava noutro patamar da evolução espiritual, na “ascensão para a grande luz do Catolicismo”.
Para o deputado da União Nacional, o episódio encerrava uma lição relevante: a resposta de Ramalho ao exagero das tomadas de posição de alguns jornalistas e políticos sobre a Santa Sé, meras expressões de arruaça intelectual que não poderiam esconder a relação privilegiada do país com a Igreja. E terminava: “Que profundo tema de meditação para quem não abdique totalmente da faculdade de pensar e de concluir!”

1 comentário:

Anónimo disse...

Não e costume ver jornalistas darem-se a tanto trabalho de pesquisa. Dou-lhe os parabens por isso, Gonçalo. É fundamental ler esta história como vc a leu: cruzando os papéis particulares de Ramalho e Arnoso com o que Ramalho depois decidiu tornar público. Há outras historias deste seu projeto que beneficiariam tb de uma leitura comparada.