quinta-feira, março 26, 2020

Abata-se ao efectivo

Sentimental como sou, quando analiso as ordens de serviço da polícia política, fico chocado com a forma seca como os serviços davam conta do falecimento de um funcionário (com excepção, naturalmente, dos corpos dirigentes). «Abata-se ao efectivo por falecimento» era o código administrativo e glacial para referenciar uma morte.
Este obituário do Público sobre a morte de João Gomes não anda distante disso. Seco, lista cargos e funções, mas não percebe a importância do jornalista que ontem tombou. João Gomes foi o primeiro em Portugal a exercer a profissão depois de concluir um curso universitário em jornalismo (em Lille); foi um católico comprometido com os movimentos anteriores e posteriores à revolta da Sé e penou por isso em Caxias e no Aljube; foi um jornalista da velha guarda que entrou em ruptura com os velhos republicanos do jornal República. Pelo meio, sim, foi fundador do Partido Socialista.

Abata-se então ao efectivo por falecimento.

quinta-feira, março 19, 2020

Há 46 anos em Lisboa

Há 46 anos, também num 18 de Março, Eugénio Alves escreveu no República um dos mais curiosos textos codificados da história da nossa imprensa. O golpe das Caldas, prenúncio da revolução de Abril, falhara no dia 16. Alguns oficiais envolvidos nos preparativos da revolução foram detidos. Receou-se o pior.
Coube a Eugénio Alves escrever a crónica do jogo entre Sporting e FC Porto, disputado no domingo, 17 (não é que seja muito importante para vocês, mas o Sporting ganhou por dois a zero, com dois golos do Dinis). O texto tanto descrevia a derrota dos nortenhos, como dava conta nas entrelinhas do falhanço das Caldas, procurando incutir ânimo aos restantes conspiradores.
Sob o título “Quem Travará os Leões?”, Eugénio Alves escreveu: «Os muitos nortenhos que no fim-de-semana avançaram até Lisboa, sonhando com a vitória, acabaram por retirar, desiludidos pela derrota. O adversário da capital, mais bem organizado e apetrechado (sobretudo bem informado da sua estratégia), contando ainda com uma assistência fiel, fez abortar os intentos dos homens do Norte. Mas, parafraseando o que em tempos dissera um astuto comandante, 'perdeu-se uma batalha mas não se perdeu a guerra'.»
O texto passou na Censura e foi publicado. Não se encontram documentos da Censura das últimas semanas antes da queda da ditadura. Certo é que, quando o regime se apercebeu da brincadeira, já a imprensa francesa tinha amplificado o registo. Eugénio Alves não chegou a ser detido.

(a imagem é do Diário de Notícias. Tenho o recorte do República noutro computador, mas, com a quarentena, é o melhor que se pode arranjar)


terça-feira, março 17, 2020

Leituras pandémicas # 2


«Pouco passava das 16h30. Hanssen caminhou pelo trilho florestal, flanqueado por árvores, até chegar a uma ponte de madeira que atravessava o Wolf Trap Creek, um curso de água estreito que serpenteia através do parque. Para os russos e para Hanssen, a ponte era conhecida como “dead drop ELLIS”. Com cuidado, Hanssen depositou um saco por baixo da ponte, longe dos olhares de eventuais caminhantes. Demorou cerca de quatro minutos a emergir da floresta e a regressar ao seu carro. Naquele momento, ele percebeu. Os homens que corriam na sua direcção estavam armados com metralhadoras.» Os seus 23 anos de espionagem estavam quase a terminar.
Em Nova Iorque, há um museu chamado Spyscape. Ao contrário do Museu Internacional da Espionagem de Washington ou do Museu Alemão da Espionagem em Berlim, este espaço celebra sobretudo as histórias dos homens que espiaram contra o Ocidente, as toupeiras que penetraram com sucesso nas principais agências de segurança norte-americanas e inglesas. Alguns, como Philby, Burgess ou McLean, fizeram-no por convicção. Outros, como Aldrich Ames, fizeram-no por dinheiro. E há, pontualmente, casos especiais, cuja motivação nunca foi genuinamente apurada. Nesse grupo restrito, não há ninguém como Robert Hanssen.
Em Spy: The Inside Story of How the FBI’s Robert Hanssen Betrayed America (Random House, 2002), David Wise explora o extraordinário percurso do homem que foi ascendendo na hierarquia do FBI, ao mesmo tempo que vendia segredos aos russos. Conseguiu esconder a sua identidade e desmascarou agentes americanos na Rússia – em pelo menos três casos, as suas denúncias conduziram à execução de agentes duplos americanos.
Em Moscovo, sabiam que «Ramon Garcia» tinha de estar bem posicionado, mas não o conheciam. Hanssen deixava a documentação roubada em sacos de lixo, por baixo dos painéis que assinalam a entrada de um parque natural de Virgínia. Ali também recolhia o dinheiro que selava o negócio. Durante 21 anos, Hanssen espiou, indiferente à mudança de regime na URSS. Chegou a ser encarregado, por uma comissão de inquérito, do grupo que se propunha identificar a “toupeira” nos serviços americanos. Hanssen estava, naquele momento, encarregado de se identificar… a si próprio.
Jornalista veterano do The New York Time, David Wise relata a ascensão e consolidação deste homem temente a Deus, membro da Opus Dei nos Estados Unidos e conhecido pelos colegas pelo seu fervoroso anti-comunismo. Em privado, porém, Hanssen seguia outras estrelas e outros deuses.
Note-se, por fim, que a narrativa tem uma passagem exótica por Portugal. Da mesma forma que Robert Hanssen cometeu certa vez o erro de abordar directamente um agente russo num parque de estacionamento, à maneira de Deep Throat, dizendo-lhe estar pronto para colaborar com mais regularidade, Wise dá conta de que o mesmo sucedera certa vez na embaixada soviética em Lisboa. Um potencial informador entrou no edifício, exibiu a sua credencial da CIA e terá anunciado a sua disposição para espiar a favor da URSS, mas os serviços russos declinaram a oportunidade, considerando-a demasiado óbvia.
Hanssen, que traíra tantos agentes duplos, foi traído por um agente russo que vendeu ao FBI todos os ficheiros de Moscovo sobre o enigmático «Ramon Garcia». Durante três anos, começou uma silenciosa caça ao homem que viria a culminar na detenção de Hanssen, em Fevereiro de 2001, perto da ponte de madeira de Foxstone Park. O espião está desde então numa prisão de alta segurança, condenado a prisão perpétua.

sábado, março 14, 2020

A Biografia Roubada


Em tempos de quarentena forçada, valem-nos os livros. Leitão de Barros, A Biografia Roubada, de Joana Leitão de Barros e Ana Mantero (Bizâncio, 2019), estava há semanas estacionado na mesa de cabeceira, lido e ponderado. Aqui fica, por fim, a recensão.
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A classe de 1895-96-97 foi das mais diversificadas da vida pública portuguesa. Gerou jovens que viveram a Implantação da República na adolescência (com 15/16 anos) e assistiram ao golpe do 28 de Maio de 1926 na sua fase mais criativa, dobrado que estava o cabo dos 30 anos. Alguns escolheram a vida artística, como Luís Cristino (n. 1896) e Cottinelli Telmo (n.1897), que se tornariam arquitectos de renome. Outros escolheram as Letras, como Azeredo Perdigão (n.1896), Reinaldo Ferreira (n. 1897) ou – se me permitirem que estique a classe por mais um ano – Ferreira de Castro (n.1898). Outros ainda, com a maturidade, fizeram vigorosas opções políticas, abraçando primeiro o Estado Novo e demarcando-se depois (em diferentes graus) do salazarismo. Entram neste grupo Henrique Galvão (n. 1895), António Ferro (n. 1895) ou Armindo Monteiro (n. 1896).
E depois, claro, há o caso sui generis do biografado deste livro, José de Leitão de Barros (1896-1967).
Resultado de sete anos de prospecção, separação e leitura do arquivo pessoal de Leitão de Barros, a obra corresponde a um esforço meritório para retirar Barros da obscuridade para onde foi resvalando, justificando apenas interesse parcial da academia e dos investigadores. Ao longo dos anos, emergiram da universidade teses sobre Barros, o cineasta, ou Barros, o director artístico de jornais. Nenhuma, até agora, ousou tentar explicar todas as facetas de um homem multifacetado, com intervenção no jornalismo (através da entrevista, da reportagem, da crónica e da direcção de arte e fotografia), no cinema (como realizador, guionista e empresário), nas artes populares (com a invenção das marchas populares), na escultura, na pintura, na música ou na cenografia do espaço público. Será nesse sentido que as autoras propõem restituir a biografia «roubada» a Barros, como um tributo que faltou.
Escrita a quatro mãos por duas das netas de José Leitão de Barros, a obra revela um extraordinário espólio pessoal mantido pelo biografado até ao fim dos seus dias, guardando as centenas de cartas que foi recebendo, mas também os esboços das cartas que dirigiu, o que permite um acompanhamento vivo e documentado das muitas polémicas em que Barros se foi envolvendo.
Desse ponto de vista, a obra é monumental. Para investigadores como o autor da recensão, que esgravatam há anos arquivos públicos em busca de fragmentos de informação, um arquivo intacto como o de Barros é um Eldorado ou, se preferirem, é a promessa de uma nascente de um novo e caudaloso rio de informação.
Nas cartas de Barros, seguimos o drama do cineasta que perde quilómetros de filme gravado no sertão brasileiro porque um funcionário da alfândega de Lisboa expôs descuidadamente as caixas de filme à luz solar. Seguimos as discussões com Martins Barata e Cottinelli Telmo sobre o rumo da carreira do aguarelista. Acompanhamos (naquele que será o melhor trecho do livro) as trocas de impressões com Salazar, à medida que o ditador lê as versões da entrevista que Barros conduziu com ele para O Século, retocando-as e sugerindo as passagens a destacar.
«Não sei se, apesar da referência feita no trabalho às perguntas ‘cozinhadas’, não seria melhor adaptá-las às respostas. Pelo menos em relação a algumas. Pode parecer que não se quis tratar das questões postas, mas o L.B. fará como entender. (…) Eliminei alguns termos fracos ou deslocados», escreve Salazar, em Agosto de 1950 (pg. 110) Depois, com a entrevista na rua, dirá: «Continuo a pensar que a entrevista nada tem de sensacional, nem mesmo de importante que justifique dar-lhe o jornal relevo excepcional (…) Não seria prudente ser-se mais comedido nas apresentações ao público de coisas que qualquer um poderia dizer?» (112).
O acervo possui igualmente pequenas pepitas. Revela por exemplo como Augusto de Castro, em 1940, ainda na pele de embaixador, descreve depreciativamente o cinema como «arte em compota» (pg. 135), tese que o futuro director do Diário de Notícias certamente não apadrinharia mais tarde. E expõe a falta de vergonha da Academia de Belas-Artes, no fim da vida de Barros, negando-lhe o acesso por motivos pouco nobres, com a agravante de o voto que lhe faltou para a aceitação dos pares ter sido sonegado por Martins Barata, seu familiar.
Estes são os méritos de uma obra notável e necessária. Vamos às fragilidades.
Quando um trabalho desta envergadura é conduzido por descendentes do biografado, há uma tendência quase irreprimível de limar arestas. Barros foi um dos ideólogos do salazarismo. Não foi cúmplice, nem personagem secundária do culto da figura de Salazar, ainda ministro das Finanças em 1928. O capítulo dedicado à intervenção de Barros no Notícias Ilustrado é frágil e não resiste a uma análise crítica. Através do recurso à fotografia (que, aliás, em depoimento muito mais tardio ao Diário Popular, Barros dirá que nunca teve pudor em manipular para efeitos cénicos ou ideológicos), Barros construiu um mito.
O seu distanciamento do regime depois da Segunda Guerra Mundial não apaga essa identificação prematura. Aliás, o próprio distanciamento dever-se-á mais a opções estéticas (uma aposta vigorosa no cinema e o êxodo do jornalismo, excepto através da crónica de costumes, de que foi exímio intérprete) e financeiras do que ideológicas. Barros e António Ferro criaram um monstro que depois os engoliu, mas não deixaram de o criar e o livro pouco questiona esse papel. Basta lembrar a esse propósito o episódio da «identificação» de Salazar nos Painéis de São Vicente, «vendido» na primeira página do Notícias Ilustrado.
Há uma segunda dimensão de Barros que não é questionada nesta interpretação histórica. Na juventude artística, Barros não arriscou. Almada Negreiros e todo o Grupo do Orpheu colocaram o pescoço no cepo. Arriscaram pela opção artística mais árdua e, em muitos casos, pagaram o preço da penúria na década seguinte. Almada e Reinaldo Ferreira ousaram partir para o estrangeiro, superando as fragilidades impostas pelo obtuso mercado português. Leitão de Barros – perdoem-me a crueza da expressão – casou bem e fez aguarelas. É uma opção respeitável, só que não fez dele um pioneiro.
Numa obra desta dimensão, que lida com sete décadas de informação, são também inevitáveis as pequenas gralhas e interpretações erradas. A data crucial da revolta de Fevereiro de 1927 em Lisboa não é o 9 mas o 7 (pg. 79) e, no instante, Barros nada arriscou. Já estava do outro lado da barricada.
As iniciais Z.Z. não correspondem a Leitão de Barros, como sugerido (pg. 84). Como explicou Ribeiro dos Reis em depoimento prestado ao Sports em 1950, Z.Z. era o nome com que Norberto de Araújo começou por assinar os seus trabalhos no Jornal dos Sports.
Há igualmente uma confusão comum entre os Caetanos Beirões da Veiga que lidaram com o mercado das notícias em Portugal na primeira metade do século XX. E nota-se, claro, um cuidado extremo em não tocar nos aspectos da vida de Barros que esbarraram com a moral e bons costumes da época, valendo-lhe até uma polémica detenção policial.
Em resumo, Leitão de Barros: A Biografia Roubada torna-se agora, por direito próprio, a obra de referência sobre o biografado. Restitui-lhe alguma profundidade e deverá ser ponto de partida para novas investigações sobre o papel de Barros nos múltiplos campos em que interveio. Não é para ser tomado à letra, como os mandamentos de pedra de Moisés, mas é o melhor que já foi produzido sobre esta figura peculiar. O que já não é pouco. 

terça-feira, março 10, 2020

Hermano Neves e a invasão do carro do ministro

Passaram ontem 104 anos sobre a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, na sequência do apresamento em portos portugueses de embarcações alemãs. Portugal entrava por fim na Primeira Grande Guerra.
Nas comemorações da efeméride, vale a pena contar em poucas palavras o "furo" de Hermano Neves, figura jornalística da Primeira República e pai de Mário Neves, que viria a ser director-adjunto do Diário de Lisboa e de A Capital.
Em 1985, numa conferência em Lisboa, Norberto Lopes contou a história do homem que faleceu na mesma casa em que nascera Fernando Pessoa, num quarto andar esquerdo do Largo de São Carlos. Em 1916, a pasta dos Negócios Estrangeiros cabia a Augusto Soares. Estava iminente o acto final que desencadearia a declaração de guerra. "A Capital" todos os dias apelava ao cumprimento do tratado de amizade com a Inglaterra. 
No dia 9 de Março, Soares recebeu das mãos do barão Van Rosen, ministro alemão em Lisboa, a nota que implicava o corte de relações. Não a podia revelar a ninguém antes de sair para a Assembleia. Saiu do seu gabinete em passo veloz e entrou no carro oficial. Hermano Neves esperava-o na estrada.
Num ponto estratégico do percurso, interrompeu a marcha do automóvel, bloqueando-o. Abriu a porta do carro e, sem cerimónias, entrou. Augusto Soares achou graça ao atrevimento. Contou-lhe a notícia, exigindo sigilo até ao anúncio oficial aos deputados. Cada um saiu para cumprir o seu dever.
Augusto Soares explicou aos deputados o ponto de situação. Hermano dirigiu-se ao jornal para escrever. Quando os deputados saíram para a rua, o jornal tinha esta edição a circular.
De Hermano Neves, disse Luís da Câmara Reys: «O jornalismo é um pouco como a cirurgia. Exige olhar e pulso firmes, execução rápida e brilhante e – quanto à moralidade e independência – uma grande limpeza de mãos. Infelizmente, sob este último ponto de vista, há para aí tantas unhas de luto!»