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Já contém as marcas que farão de Velázquez o artista de referência no século XVII espanhol: o jogo entre claros e escuros, a definição criteriosa do movimento e das personagens, a representação das actividades de quotidiano que tanto chocavam os contemporâneos.
Uma década mais tarde, Vicente Carducho, pintor e historiador, lastimará a representação na tela “dos homens de trabalho, sem conhecimento ou reflexão, que degradam a arte nobre para noções vulgares, como hoje vemos nas representações dos bodegones”. O catálogo do Museu Metropolitano de Nova Iorque consagrado à exposição do pintor em 1989-90 não teve dúvidas em considerar que Carducho escrevia sobre Velázquez.
O quadro, pintado por Velázquez antes de se radicar em Madrid, viajou mais do que muitos seres humanos: sabe-se que, no século XVIII, já não estaria em Espanha, vendido para a Bélgica e depois para Paris. Foi comprado num leilão em 1813 por Samuel Peach, que o adquiriu por engano – julgava comprar uma obra de Bartolomé Murillo e levou um Velázquez!
Reconhecida a autoria, a obra foi vendida em mais duas ocasiões até chegar, em 1863, às mãos de Francis Cook.
Este industrial têxtil inglês escolhera então Monserrate para passar as temporadas de Verão. Reconstruiu o palácio, criou os jardins e começou a constituir uma colecção ecléctica em Sintra, semelhante à dos velhos gabinetes de curiosidades: um busto romano aqui, uma estátua grega acolá, sarcófagos e múmias, quadros clássicos e modernos. Em 1863, adquiriu esta obra, embora não se saiba se chegou a estar exposta em Sintra ou apenas na sua residência londrina.
O tempo passa e as fortunas esfumam-se. As duas guerras mundiais abalaram as finanças familiares. As três gerações seguintes procuraram manter incólume a colecção artística, bem como o jardim e palácio de Monserrate. Em 1929, foi feito um primeiro contacto para tentar que o governo português adquirisse a propriedade e recheio, evitando o loteamento. Em vão.
Em 1946, a família fartou-se de esperar e iniciou a venda rápida de todos os bens móveis. Houve um leilão em Lisboa, despachado em três dias. Os directores dos principais museus nacionais compareceram, mas limitaram-se a seguir com os olhos as peças que voavam para o estrangeiro.
Monserrate foi vendida a um industrial português que, um ano depois, foi “persuadido” a vender ao governo. Já estava então sem recheio e em acelerado processo de decomposição.
Saúl Saragga, o industrial, pretendia dividir Monserrate em várias parcelas. Como notou a dissertação de mestrado de Marta Ribeiro, foi necessário que Flávio Resende, director da Faculdade de Ciências de Lisboa, intercedesse directamente junto de Salazar para que o processo irreparável fosse travado. Em 25 de Maio de 1949, a velha propriedade de Cook tornou-se, por fim, pública.
E Velázquez? A família manteve o quadro na sua posse por mais uma década, talvez ciosa do carinho que o patriarca mantivera pela velha cozinheira.
Em 1955, finalmente, os Trustees da Família Cook cederam-no à National Gallery de Edimburgo, onde está exposto desde então. Assim fugiu um Velázquez que poderia cá estar.
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