quarta-feira, abril 16, 2014

Hemingway proibido


Não é uma página especialmente significativa da relação da Direcção dos Serviços de Censura com a literatura, mas é um episódio curioso e pouco conhecido. Em 1968, o ensaísta João Palma-Ferreira, responsável pela tradução para português de autores como John dos Passos, Archibald MacLeish, Saul Bellow ou J.D. Salinger, traduziu um longo e raro poema de Ernest Hemingway dedicado à sua quarta (e última) esposa e publicado uma única vez, em 1944, na revista "The Atlantic Monthly". Foi surpreendido, semanas depois, com a proibição integral de publicação. A Censura não autorizava, considerando o poema lascivo e promíscuo.
Tradicionalmente calmo e ponderado, Palma-Ferreira exasperou-se com a medida "perfeitamente enigmática e ridícula". Escreveu a vermelho ao temido Coronel Páscoa, da Direcção dos Serviços de Censura. "É um poema de amor escrito em 1944. É um poema de Ernest Hemingway. É um poema apolítico. É uma obra de arte de um dos grandes artistas do mundo. Não se compreende esta proibição seja qual for o ângulo por que se pretenda justificá-la."
O autor incentivava o Coronel a corrigir "um erro perfeitamente descabido", uma "proibição, que ainda para cúmulo, pode passar por absolutamente leviana".
Não teve sorte. Numa anotação manuscrita, no topo da folha, o director dos serviços manteve o corte de Gabinete de Leitura e referia ainda: "Os termos em que esta carta do Dr. João Palma-Ferreira vêm redigidos inibem-me de deles tomar conhecimento (!?!) e de responder. Arquive-se."
E arquivou-se.

Roma locuta est.

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