terça-feira, maio 20, 2014

Urbano Carrasco foi “correio” acidental de Salazar



«Com os meus respeitosos cumprimentos, dirijo-me a Vossa Excelência para fazer um breve relato que suponho oferecer interesse. Se assim for considero-me satisfeito por servir Vossa Excelência. Caso contrário, lamento fazer perder um tempo que é valioso», começava a carta dactilografada pelo jornalista Urbano Carrasco no dia 19 de Fevereiro de 1964, com destino a António Oliveira Salazar, presidente do Conselho.
Em duas ocasiões anteriores, já aqui relatei casos protagonizados pelo extraordinário repórter do Diário Popular que foi Urbano Carrasco [inseridas no livro Parem as Máquinas!]. Hoje, narro um episódio diferente, porventura o mais delicado da carreira deste homem que dedicou quarenta anos ao vespertino lisboeta. Evitarei juízos críticos e sentenças morais desadequadas, pois o contexto histórico e militar da época é irrepetível. Em 1964, o Estado português encontrava-se em guerra e certamente que Urbano Carrasco pesou as implicações deontológicas da profissão face ao dever de lealdade para com o governo.
A carta, recebida pelo ditador dois dias depois, em 21 de Fevereiro, conforme nota manuscrita no canto superior esquerdo da missiva, continuava: «Na minha recente entrevista, em Madrid, que o Diário Popular está a publicar, fiz algumas perguntas que ficaram sem resposta e no que se refere a outras foi-me dito que as não poderia divulgar.» A que se referia Carrasco?
"Diário Popular", 18 de Fevereiro de 1964
(a partir do arquivo da Biblioteca Nacional)

No dia 18 de Fevereiro de 1964, o jornal dirigido por Martinho Nobre de Melo utilizou mais de metade da sua primeira página para um tema internacional, uma raridade num jornal definido em 1956 por Guilherme Brás Medeiros, um dos seus administradores, como um jornal de noticiário de proximidade. Apesar disso, nesta terça-feira, titulava-se em letras garrafais: “TSHOMBÉ FALA AO DIÁRIO POPULAR SOBRE A MORTE DE LUMUMBA E A ACTUAL SITUAÇÃO NO CONGO. O MEDO É O RESPONSÁVEL PELO QUE SE PASSA EM ÁFRICA!” A entrevista exclusiva fora obtida em Madrid por Urbano Carrasco e a sua publicação fora partida por três edições, sempre com destaque de primeira página, apesar de o tema competir na agenda com outros focos de atenção, como o golpe de estado no Gabão, a intervenção das forças internacionais em Chipre e o terrível sismo da ilha de São Jorge, nos Açores.
Moisés Tshombé (1919-1969), porém, era um dirigente político em quem o governo português apostara fortemente desde 1960. Filho de uma família nobre, fora educado numa escola de missionários no então Congo Belga e formara-se em Contabilidade. Fundara na década de 1950 o CONAKAT, um partido que se distinguira primeiro na luta contra o colonialismo belga e, logo depois, por declarar a secessão da província do Catanga face ao Congo. Nas eleições legislativas de 1960, conquistara o poder e oferecia ao mundo um discurso alternativo ao de Lumumba no Congo e de Holden Roberto em Angola. Anticomunista, propunha-se colaborar com os governos belga, francês e português na reconstrução económica do Catanga, então responsável por 60% da produção mundial de urânio e 80% dos diamantes industriais (dados do major Rui Velez, no seu excelente Salazar e Tshombé, 2013, DG Edições, fonte principal deste texto e autor da descoberta da carta de Urbano Carrasco para Salazar, amavelmente disponibilizada).




O percurso político de Tshombé replica a história atribulada do próprio Congo. A declaração de independência do Catanga conduziu a uma intervenção da Organização das Nações Unidas no território, a pedido de Patrice Lumumba e Cyrille Adoulla, líderes independentistas do Congo. Em Janeiro de 1961, Lumumba deslocara-se ao Catanga, mas fora detido, torturado e executado, alimentando ainda mais o caos no território (uma comissão posterior do Parlamento Belga isentou Moisés Tshombé de responsabilidades na execução de Lumumba). Face à intervenção da ONU, Tshombé exilou-se na Rodésia do Norte e depois em Espanha, onde Urbano Carrasco o encontrou, semanas antes de o dirigente regressar ao Congo para integrar novo governo de coligação.
A investigação de mestrado do major Rui Velez (disponível aqui) revela exaustivamente que Salazar e Franco Nogueira apostaram fortemente na liderança de Tshombé, que visitara Lisboa em 1963. No Forte do Estoril, Salazar propôs ao dirigente do Catanga a supressão das bases das forças independentistas angolanas no território, bem como a detenção dos cabecilhas do movimento. A guerrilha independentista provocava então evidentes danos no Nordeste de Angola e a possibilidade de os homens de Holden Roberto cruzarem livremente a fronteira do Congo impedia o exército português de retaliar. Em troca da intervenção no Catanga, o ditador português oferecia aconselhamento e equipamento militar. Nos seus volumes de memórias, Franco Nogueira revelou que Salazar achou Tshombé lúcido e realista, tendo mesmo comentado: «No meu espírito, promovi-o a estadista branco.» O Catanga adquiriu vasto equipamento militar nos meses seguintes.
Era neste homem e no seu projecto para o Catanga que o governo português apostava para recuperar o controlo sobre a frente militar no Norte de Angola. Todavia, a entrevista de Urbano Carrasco (que terá sido obviamente lida e aprovada pelos Serviços de Censura, embora eu não tenha encontrado as provas da Censura destes textos) versou exclusivamente sobre a situação política no Congo, nunca mencionando Angola ou a frente guerrilheira de Holden Roberto. No primeiro trecho da entrevista (18 de Fevereiro), Carrasco apresentou Tshombé, distinguindo-o de Lumumba e das ameaças veladas que este fizera aos antigos dirigentes coloniais; no dia seguinte, o Diário Popular dava-lhe voz para recusar responsabilidades na morte de Lumumba e dois companheiros. Na peça, Tshombé acusava o governo central congolês pelo sucedido e Cyrille Adoula pela polémica decisão de regar os três corpos com ácido, impedindo qualquer exame legal posterior. Em título, referia: «NÃO FORAM PRISIONEIROS MAS AGONIZANTES O QUE RECEBEMOS EM ELISABETHVILLE – ESPANCAMENTO MORTAL DE LUMUMBA PELOS SOLDADOS DO GOVERNO CENTRAL CONGOLÊS.»
Por fim, no terceiro e último trecho da entrevista, Tshombé repetia a Carrasco a nota dominante do seu discurso: «ADOULA, QUE ORIENTOU PESSOALMENTE A DESTRUIÇÃO DO CADÁVER DE LUMUMBA, É UM FANTOCHE QUE NÃO SABE O QUE FAZ E A ONU, SUFICIENTEMENTE DESPRESTIGIADA NO CONGO, VAI SAIR DALI SEM TROMBETAS NEM BANDEIRAS.» No corpo da entrevista, Tshombé sossegava os europeus: «A colaboração com os europeus é indispensável. Só com ela se poderão salvar os países africanos e fazê-los trilhar uma senda de progresso.» Em jeito premonitório, Tshombé avisava Carrasco: «Será necessário muito tempo, receio-o, para que o Congo volte a ter paz. Vai mesmo conhecer, nos meses que se avizinham, horas extremamente difíceis.»

O RECADO PARA SALAZAR
Na Villa Kaunis em Madrid, elegante propriedade no bairro de La Moraleja onde a delegação do Catanga se exilara, Urbano Carrasco fez várias perguntas sobre Angola, Portugal e o apoio que Moisés Tshombé se propunha dar à causa nacional. O líder do Catanga, porém, pediu explicitamente que o jornalista não publicasse as suas respostas sobre o tema pois, se atendesse o pedido, «não deixaria de ser violentamente atacado pelos americanos.»
Carrasco quis saber o que faria Tshombé face à «incompreensível liberdade e apoio que são dados aos bandos de guerrilheiros que ali [no Congo] têm a sua base e dali organizam ataques contra Angola». A resposta foi pronta:
«Não tome nota do que vou dizer-lhe. Pelo menos não o escreva no seu jornal, pois ver-me-ia obrigado a desmenti-lo… Já tenho suficientes complicações com os americanos e não deixariam de me atacar violentamente dizendo que eu sou amigo dos colonialistas. Também isso me criaria dificuldades no Congo, mas a minha recusa em responder-lhe para publicação é devida, sobretudo, aos americanos. Para si, contudo, sempre lhe direi que a minha posição e a minha amizade pelos portugueses são bem conhecidas. E se um dia eu dirigir o Congo, nem sequer é problema o que me pergunta: claro está que nessas circunstâncias nunca poderiam viver no Congo esses Holden Robertos e outros! Isso é problema que nem se põe. Mas se o fosse dizer agora, os americanos caíam-me em cima, ainda com maior violência!»
A outra questão sobre a hegemonia americana sobre os interesses económicos do Congo, Tshombé voltou a pedir sigilo: «Também não posso responder-lhe a essa pergunta e peço-lhe que não diga no seu jornal que a formulou. Porque espero poder responder-lhe sem quaisquer restrições, mas só depois de instalado em Leopoldville…»
Urbano Carrasco terminava a missiva: «Foi isto, Senhor Professor, que não publiquei, mas ouvi ao Presidente Tshombé e suponho possa oferecer interesse ser [sic] do conhecimento de Vossa Excelência.» Os dados, porém, estavam lançados e Tshombé perdera apoios decisivos. Regressou ao Congo em triunfo no Verão de 1964, mas foi destituído um ano mais tarde. Exilou-se novamente, fugindo a tempo de uma condenação à revelia em 1967. Com apoio ocidental, Joseph Mobutu tomara o poder com mãos de ferro em 1965 e só o largaria 32 anos depois.
Moisés  Tshombé viria a morrer na Argélia em 1969, na sequência de um ataque cardíaco. Dois anos antes, o avião em que viajava fora desviado misteriosamente para Argel. O Diário Popular noticiou a sua morte na primeira página no dia 30 de Junho de 1969 e Carrasco evocou, na página 11, a entrevista de 1964. Confessava «a admiração que fiquei a ter pelo discutido político e estadista congolês face à serena prova de que ele dava provas» e lembrava que, à data da entrevista, Tshombé ainda considerava Mobotu «um amigo pessoal», circunstância que a realidade desmentiria. Carrasco aproveitou então a ocasião para referir que, à despedida em Madrid, Tshombé fizera votos para que o povo de Angola vivesse em paz e não mergulhasse na miséria em que caíra o povo do Congo. «Nós, portugueses, conseguimos evitar em Angola o que Moisés Tshombé, mesmo com sacrifício da sua vida, não conseguiu para o Congo». 
Com o entusiasmo patriótico, Urbano Carrasco esqueceu em 1969 que omitira qualquer referência a Angola no texto publicado cinco anos antes.

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