segunda-feira, maio 26, 2014

A Fonte das 40 Bicas


 1768.
Lisboa ainda vive atormentada com as repercussões do sismo de treze anos antes e a corte de Dom José mantém-se na Ajuda, onde pouco ruiu, cimentando a confiança régia na geologia do seu novo bairro.
O rei recrutou o naturalista italiano Domingos Vandelli para o seu empreendimento mais recente: a construção de um espaço de lazer para os príncipes e netos. Vandelli trouxe de Pádua o modelo de um jardim botânico moderno e preocupou-se em criar uma colecção vasta de espécies vegetais – nos tempos áureos, o Real Jardim Botânico da Ajuda chegou a ter cinco mil espécies, oriundas de todos os cantos do globo.
As décadas subsequentes ao sismo de 1755 foram, porém, aventurosas e os braços de Vandelli, naturalista formado em medicina que se correspondia com Lineu, não chegavam para todos os fogos. Quatro anos depois da incumbência de criar um jardim botânico na Ajuda, em 1772, Vandelli foi chamado a Coimbra como lente de História Natural e Química na Universidade. Ali também criou as bases do jardim botânico da Universidade de Coimbra e idealizou as viagens filosóficas à Amazónia, conduzidas por alguns dos seus alunos.
Na Ajuda, portanto, o projecto ficou na mão de um auxiliar, o chefe dos jardineiros Júlio Mattiazi. Igualmente originário de Pádua, Mattiazi tratou do jardim e… da pedra. Idealizou as fontes que orientam a visita e estruturam a paisagem da Ajuda, tanto ou mais do que as sebes. A mais famosa, a Fonte das 40 Bicas, reúne animais míticos e fauna aquática, num espantoso conjunto de serpentes, peixes alados, cavalos-marinhos e outras feras. Segundo garante a tradição do bairro, a fonte terá sido construída exclusivamente com mão-de-obra da Ajuda.
De acordo com a directora do Jardim Botânico, a professora Dalila Espírito Santo, a documentação sobrevivente na Ajuda [grande parte foi para Coimbra; alguma seguiu para a Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica; e algum espólio viajou com a comitiva real para o Brasil em 1808 e ficou pelo Rio de Janeiro] comprova que Vandelli não ficou maravilhado quando viu as fontes de Mattiazi. Afinal, um jardim botânico é um espaço no qual a vegetação deve reger a paisagem, recusando a submissão à construção de pedra.
Hoje, porém, a caminho dos 250 anos do Jardim Botânico da Ajuda (em 2018), após testemunhar revoluções e mudanças de regime, cuidados desvelados e descuidos sem perdão, são as fontes que permanecem imutáveis desde 1768. O ciclo de vida das plantas, naturalmente, foi fazendo a sua selecção, as pilhagens napoleónicas destruíram muito, o clima distinguiu as espécies mais adaptáveis e a crónica falta de financiamento também deixou mossas.
Do Jardim Botânico original, ficaram os peixes alados de Mattiazi, que Vandelli desaprovou, mas o tempo validou.

Ler também:
Almaça, Carlos. A Natural History Museum of the 18th Century, 1996, Museu Bocage, Lisboa.

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