terça-feira, maio 06, 2014

A história para lá do óbvio



A maior parte dos trabalhos publicados na revista resulta de planeamento e de produção. Sempre que me convidam para falar sobre fotografia na National Geographic, tenho o cuidado de sublinhar que a espontaneidade é muito mais rara do que os leitores imaginam. Por regra, antes de captar uma fotografia, o repórter fotográfico já a imaginou. Já testou outras soluções de composição, iluminação e exposição. Já fez experiências que correram mal. É raro o momento em que um fotógrafo sai despreocupadamente para o campo e capta, sem preparação nem reflexão, o momento certo. Por outras palavras: a espontaneidade custa muito trabalho e não tem nada que ver com a sorte.
Em Janeiro deste ano, fiz uma intervenção deste teor no festival de fotografia de Vouzela, procurando sublinhar a importância das narrativas visuais para a nossa publicação e a necessidade premente de não repetir conceitos, nem objectos. Tinha então em mente um trabalho em curso que o fotógrafo Steve Winter levava a cabo com os pumas da América do Norte. Motivado para fotografá-los em contexto semi-urbano, Steve dedicou mais de um ano a esta reportagem e a fotografia mais emblemática (um puma caminhando em frente do lendário cartaz de Hollywood, em Los Angeles) demorou quatro meses a executar. Não houve nada de acidental na proeza!
Ora, em Vouzela, assisti a várias apresentações. Uma delas, do jovem fotógrafo Ricardo Lourenço, representava o Alentejo selvagem, tal como a região se apresenta a este repórter de Portalegre. Entre várias fotografias memoráveis, fiquei com esta debaixo de olho: um lacrau fluorescente. Não sabia nada sobre o tema, nem imaginava se o Ricardo teria procurado documentação sobre o fenómeno ou se a imagem resultava da tal espontaneidade que eu não me canso de dizer que é inexistente.
Foi uma das poucas ocasiões em que uma página da National Geographic nasceu a partir de uma fotografia e não de uma ideia original, susceptível de desenvolvimento posterior e de materialização em imagem. Ao talento do Ricardo, juntou-se o conhecimento do biólogo Pedro Sousa, investigador do CIBIO, que contextualizou o fenómeno, forneceu informação científica recente, desconstruiu algumas ideias feitas que eu tinha sobre a função deste dispositivo e permitiu que o texto fosse o mais rigoroso possível, dentro dos constrangimentos de espaço que as secções iniciais impõem.
Eis portanto como um inofensivo lacrau terminou nas páginas da edição portuguesa da National Geographic. Com o talento do Ricardo e a sabedoria do Pedro.

Sem comentários: