"Ilustração Portuguesa", n.º 93, Agosto de 1905 (a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Em 1905, o Jardim Zoológico de Lisboa
mudou-se para as suas instalações actuais, em Sete Rios. Para trás, ficavam os
tempos de Palhavã e das jaulas improvisadas, onde se encafuavam os animais, tristes e melancólicos. Nos terrenos da Quinta das Laranjeiras, o projecto
iniciado por Dom Fernando II ganhava por fim dignidade. Era certamente nisso
que os convidados pensavam no dia 28 de Maio à medida que se cortavam fitas e
se discursavam palavras de circunstâncias, dois hábitos portugueses tão antigos
como a ginja e o chinquilho.
Entre os animais expostos, um felino estranhava o ambiente. Era um leopardo moçambicano, oferecido por João de
Azevedo Coutinho ao rei Dom Carlos – e por este cedido ao Zoológico. “O Século”
refere que os uivos dos felinos assustavam as senhoras e motivavam graças dos
cavalheiros.
Meses depois, em Agosto, o Zoo e o
leopardo voltaram às páginas dos jornais. Desta vez, sem discursos nem
gracejos, mas com um episódio dramático que comoveu a cidade. Não se sabe bem
como (alguns jornais falam num descuido durante a transferência do animal;
outros referem que o felino encontrou uma fenda no topo da sua nova jaula), mas
o leopardo evadiu-se. Andou à solta – primeiro a passo, depois a trote. Soltou
alguns rugidos, assustou e assustou-se.
O animal tentou sair do Jardim Zoológico e
desaparecer por Sete Rios, mas alguém alertara a guarda e um regimento de
infantaria impediu o êxodo urbano que teria sido ainda mais espectacular. O
leopardo fugiu assim para o interior do Zoo, dissimulando-se entre a folhagem e os silvados. Foi visto junto dos macacos e,
mais tarde, perto da jaula das águias. Ali, por fim, foi encurralado. Em seu
redor, acercaram-se 14 soldados e alguns tratadores, com forquilhas, facas
atadas a paus em jeito de baionetas e armas de fogo. Parecia um exercício
militar. Nervosos, os homens dispararam à primeira ocasião e feriram a fera com balas reais.
O leopardo deu alguns passos e tombou
pesadamente à entrada do Túnel das Águas Boas. Destemido, o soldado 19 da 3.ª
Companhia quis vê-lo de perto e acabou por vê-lo efectivamente mais perto do
que gostaria. Num último sopro de vida, o leopardo atirou-se ao rosto do
infeliz e ali fincou os dentes. Aterrorizados, os camaradas de armas não se
fizeram rogados e dispararam sem norte, sobre a fera e sobre o homem. O animal
morreu de imediato. O soldado, crivado de balas, seguiu de carro eléctrico para o Hospital de São José, onde foi operado e sobreviveu, embora o seu nome não tenha sido
preservado para memória futura.
Dos relatos jornalísticos que li, destaco
o trabalho de “O Século” pela aposta clara na inversão das prioridades
tradicionais de representação. Sempre mais activo do que a concorrência, o
jornal de Silva Graça encomendou uma ilustração a um artista que não
consegui identificar, apesar da assinatura rabiscada no canto inferior
esquerdo. Recolhendo testemunhos presenciais, o ilustrador criou esta
reconstituição, usada no jornal e na revista semanal “Ilustração Portuguesa”.
As fotografias de suporte foram publicadas nas páginas seguintes, num
reconhecimento implícito de que era a ilustração o suporte ideal para contar
esta história.
Lembrei-me hoje deste episódio quando li a
mensagem de um leitor que se queixava da excessiva prioridade que damos às
ilustrações na revista. O fotógrafo tem uma abordagem jornalística, ao passo
que o ilustrador aborda a representação com uma perspectiva artística –
argumentava. Ontem como hoje, será mesmo a fotografia o dispositivo universal
para contar visualmente qualquer história? Ou a reconstituição de um ilustrador pode ser um gesto tão jornalístico como o clique na máquina?
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