quinta-feira, dezembro 02, 2004

Loucuras e euforias

Há cerca de uma semana, um grupo de governantes encorajou o presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) a preparar um dossier de candidatura de Lisboa a cidade olímpica em 2016 ou em 2020. Entre as vozes concordantes, ergueu-se a de Fernando Seara, presidente da Câmara Municipal de Sintra, que desafiou a sociedade civil: esta é a altura para os arautos da desgraça falarem. Quem não apoiar o projecto fale agora ou cale-se para sempre. Perante isto, cabe-me dar o meu modesto contributo.
Não vejo sinceramente grandes vantagens na organização de um projecto gigantesco como são uns Jogos Olímpicos. Nada me move contra o desporto – pelo contrário. Mas a organização de um evento desta magnitude implica um investimento onze vezes superior ao do recente Euro’2004, já de si monstruoso. Essa é a primeira preocupação: ainda não conhecemos as contas do Euro’2004, desconhecem-se ainda os impactes reais da prova nas finanças do país, mas já há quem defenda que nos devemos lançar de cabeça num evento ainda maior! No mínimo, seria prudente aguardar pela contabilidade da organização de Atenas e tentar perceber como um país de grandeza semelhante ao nosso (em termos de superfície e de população) se viu a contas com um buraco gigantesco, do qual não parece saber sair.
O segundo bloco de preocupações relaciona-se com a necessidade de construção de infra-estruturas desportivas. Em Atenas, disputaram-se, creio, 29 modalidades e dezenas de categorias. Movimentaram-se dez mil atletas. Qualquer dossier de candidatura tem de prever a construção de pavilhões, hipódromos, piscinas, estádios diversos, percursos de canoagem, pistas de remo, trilhos para BTT, recintos para voleibol de praia, campos de beisebol. Sou evidentemente sensível ao argumento de que os portugueses já provaram no Euro’2004 a sua capacidade de organização e de cumprimento de cadernos de encargos. Mas há questões paralelas, que me assustam: e o dia seguinte aos Jogos? O que vamos fazer com equipamentos desportivos topo de gama que não reflectem hábitos de prática desportiva dos portugueses? Justifica-se um estádio de beisebol (só para beisebol, sublinho), com capacidade para quinze mil pessoas, quando há menos de mil praticantes federados no nosso país? E o que faremos a um estádio de 50 mil pessoas só para atletismo, quando se sabe que o estádio da Maia, o melhor do país para a disciplina, está constantemente "às moscas" e o equipamento electrónico estraga-se por descuido?
Por outro lado, preocupa-me a localização deste projecto. Normalmente, as cidades olímpicas (equipamentos e infra-estruturas que suportam a aldeia olímpica, onde ficam instalados atletas, treinadores e árbitros) aglomeram-se em determinado bairro, concentrando equipamentos e facilitando acessos. Onde encontrarão os organizadores essa zona em Lisboa? Em Monsanto? Em Marvila? Na zona Oeste? E como lidarão as populações locais com a perspectiva de quinze anos de obras? E seguir-se-á o modelo de Atlanta, em 1996, onde o município destruiu depois dos Jogos quase todas as infra-estruturas pré-fabricadas? Haverá mesmo espaço em Lisboa para esta loucura?
Quarta preocupação: a competitividade. Há cerca de uma década, Juan Samaranch, então presidente do Comité Olímpico Internacional, disse em Lisboa que é impensável uma cidade candidatar-se se não estiver em condições de lutar por 30 a 40 medalhas. Aconteceu em Barcelona, em Sydney e em Atenas. Ocorrerá em Pequim. Em Portugal, esta competitividade é uma miragem. E sem atletas capazes, o público desinteressa-se e foge aos espectáculos. Não se mobiliza e condena os Jogos ao anonimato.
Juntemos ainda uma amálgama de perguntas sem resposta: e tudo o que não se fará durante quinze anos porque a prioridade nacional passarão a ser os Jogos? E o aumento da área construída em Lisboa? E a imigração (legal ou ilegal) que se seguiria? E o que tem de se gastar em obras de apoio: aeroportos, ferrovias, estradas, hotéis? Tudo isto vale a pena?
E, por fim, como se acautelam mudanças políticas de humor, como a de terça-feira passada? Um projecto desta natureza tem de ser transversal e suprapartidário, de forma a que todos os partidos (no governo ou na oposição) sejam responsáveis pela boa organização dos Jogos. Sem boicotes ou retrocessos.
Creio que está dado o meu contributo ao edil Seara: estes motivos de preocupação chegam para repensar a iniciativa?

2 comentários:

Anónimo disse...

De todas estas preocupações (com as quais concordo) há uma da qual discordo totalmente: a preocupação com a imigração (legal e ilegal). Que mal faz a imigração? Ela só faz bem. Enriquece demograficamente o país, aumenta a vitalidade da economia, aumenta a competitição no mercado, cria procura e, finalmente, aumenta a diversidade cultural. Tudo coisas boas.

Esta preocupação com a imigração cheira-me, vagamente, a xenofobia, e eu para esse peditório não dou. Dou para o peditório oposto.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

De facto, concordo com o autor quando este afirma que o pouco entusiasmo dos portugueses pelos Jogos Olímpicos parece desaconselhar uma aventura deste género, sobretudo na quantidade de infra-estruturas que ficariam sem utilização posterior.

Não posso, no entanto, deixar de refutar os argumentos económicos apresentados.

Escreveram-se páginas e páginas sobre os resultados financeiros do Euro 2004 (como já se tinham escrito anteriormente sobre a Expo 98) com o objectivo de provar que o evento teve um resultado liquido negativo. No entanto, quando nos afastamos um pouco do evento estritamente definido e olhamos para o quadro global, os benefícios para o país são evidentes.

E se subsistirem dúvidas, basta olharmos para o relatório da OCDE recentemente publicado sobre as perspectivas económicas de Portugal!

Concluindo, existe uma série de argumentos que desaconselham o projecto, mas que ninguém tenha dúvidas que o retorno económico dos jogos seria positivo!

RR - Lisboa