O segredo do império britânico para as transições coloniais seguras traduziu-se historicamente numa simples fórmula: a hostilização de duas ou mais partes em confronto, de forma a que, abandonando a gestão das suas ex-colónias, os britânicos deixassem um rastilho imparável atrás de si. A fórmula traduziu-se invariavelmente em guerra civil. Foi assim na Irlanda, foi assim na Índia e no Paquistão. Foi assim lamentavelmente no Médio Oriente.
Passe a imagem, creio que esse é o legado deixado à medida que as sucessivas direcções-gerais cederam a gestão do território e/ou recursos a institutos criados de raiz para tal. O campo de batalha ficou de tal maneira minado que os diversos parceiros se tornaram beligerantes incorríveis. A meu ver, esse é o mal de que enferma por exemplo o antagonismo entre biólogos e geólogos, entre biólogos e arqueólogos ou entre arqueólogos e paleontólogos.
Absurdo? Procurem convencer um biólogo da importância da classificação geológica de "monumento natural" para um fenómeno que, à primeira vista, parece um conjunto de rochas partidas. Ou tentem persuadir um arqueólogo a não escavar uma jazida inserida num ecossistema protegido ou, no mínimo, a limitar o seu trabalho a horários menos agressivos. Ou peçam a um arqueólogo que se pronuncie sobre os métodos de trabalho, de investigação e escavação de um paleontólogo.
Cada área é ciosa do seu território, dos seus jargões e da sua tradição cultural. Defende-os de dentes cerrados, certa de que a sua razão é inabalável e de que os seus méritos pesam mais na balança do património.
Ora, na minha opinião, estas divergências derivam claramente da separação metodológica que caracteriza as várias áreas que destaquei. A aprendizagem é claramente separada, como rios independentes que raramente se cruzam. Um arqueólogo pouco estuda de biologia. Um biólogo dificilmente saberá o que quer que seja sobre a geologia do solo que defende. Um paleontólogo termina o curso praticamente sem uma aula prática que lhe permita desenvolver uma escavação metodologicamente correcta.
Há dias, Galopim de Carvalho, velho cruzado destas guerras, lamentava ao "Diário de Notícias": «Algumas pessoas da ciência não dão importância à geologia (...) Quando os ecologistas falam de ambiente, estão a pensar nas couves e nos morcegos, e não na rocha, nem no solo. Se não houvesse solo, não havia erva, nem borrego e não existindo tudo isso não haveria o ensopado de borrego!», brincou o professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A brincar, o antigo director do Museu Nacional de História Natural tocou na ferida das lacunas curriculares.
A licenciatura de Biologia perdeu disciplinas como a mineralogia, a geologia ou a paleontologia. Percebe-se que um currículo não é infinito e que a tendência aponta no sentido do "mono-perito", mas, na especialização constante a que obrigamos os futuros licenciados, importa que se reconheça que também se perdem oportunidades.
Que importância terá isso?, pergunta o leitor. A interdisciplinariedade é fundamental na acção de conservação, respondo. Os responsáveis pelo Parque Nacional Peneda-Gerês lidam com património biológico, mas também geológico e arqueológico. Nas serras de Aire e Candeeiros, há valores mineralógicos que se fundem com património paleontológico, faunístico e arqueológico. Sem respeito pelas áreas tangenciais, a conservação é incompleta e injusta porque não apreende o todo.
Mas, tal qual as velhas colónias britânicas, os senhores biólogos, arqueólogos, paleontólogos e geólogos entretêm-se em guerrilhas estéreis, lutando por recursos finitos e invejando a atenção que os colegas merecem. No dia em que houver coordenação e respeito entre estas vontades, talvez não se construam com tanta facilidade barragens no Sabor, nem se destruam jazidas impunemente ou se danifiquem irremediavelmente impressões na rocha que testemunham a longa história do planeta.
Escrevo este "post" quase como uma resposta a um desafio que me foi lançado na sequência da nota escrita sobre Foz Côa. É para mim inaceitável que, na presente batalha pela preservação do Sabor, se derrubem os méritos da preservação arqueológica no rio Côa. Não vale tudo nestas guerras!
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