domingo, novembro 07, 2004

Inovações, Reciclagens e Banha da Cobra

As resoluções do Plano Nacional de Alterações Climáticas tardaram, mas chegaram. Já lá vai o tempo em que os alertas de ambientalistas e os pareceres do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável caíam em saco roto. A prova disso é, convenhamos, a conversão do céptico Álvaro Barreto. Descrente inveterado no passado, Barreto fala hoje com descontracção do efeito de estufa, das energias renováveis, da dependência energética e, virtude das virtudes, dos malefícios do petróleo.
O recente programa de acção para reduzir a dependência portuguese face ao petróleo (cujo link para o texto integral deixei no último post) tem claramente medidas positivas, verdadeiramente inovadoras em Portugal. Tem igualmente medidas antigas com novas roupagens, determinações de outros governos que nunca chegaram a ser implementadas. Tem por fim medidas vendidas como banha da cobra, falsas ou vazias de resultados potenciais. Proponho uma interpretação do quadro proposto de regulamentações, de acordo com esta grelha.

Inovações:
- Afectação do Imposto sobre Produtos Petrolíferos aos biocombustíveis, permitindo que estes não sejam taxados e, como tal, que se tornem realmente competitivos para o utilizador.
- Dinamização de uma rede de postos de combustível alternativo, condição indispensável para que o primeiro tópico venha a ter continuidade.
- Apoio concreto à investigação e desenvolvimento do hidrogénio como fonte de energia.
- Estímulo indirecto ao recurso a transportes públicos, através da penalização dos veículos privados ligeiros: em novas multas de velocidade e em tarifas (portagens) de acesso ao perímetro urbano.

Reciclagens:
Há claramente um conjunto de normas que já foram tentadas e nunca produziram resultados palpáveis. Estas são as medidas que, pela minha leitura, deverão ser atentamente monitorizadas. Desta vez, virão para ficar?
- Facilidades ao licenciamento de centrais eólicas, bem como incentivos a maiores potências contratadas.
- Introdução de uma taxa de carbono (entendendo-a como um incentivo à redução do consumo de electricidade), que onere os electrodomésticos menos eficientes.
- Estabelecimento de contratos-programa, de forma a que os edifícios do Estado dêem o exemplo às empresas e aos particulares, recorrendo a estratégias de maior eficiência energética (painéis solares para aquecimento de água; eficiência de utilização eléctrica...). Os melhores resultados serão premiados.
- Liberalização do mercado de electricidade e do gás, facilitando a entrada de parceiros competitivos
- Subsidiação do abate aos veículos em fim de vida (já foi tentada, mas o parque automóvel ainda é antigo e carece de substituição. Veremos o alcance prático desta inovação).
- Aceleração do licenciamento de mini-hídricas e de estações de aproveitamento da energia das marés (onde estão elas até agora? Num post futuro, falarei sobre a péssima experiência instalada na ilha do Pico).

Banha da cobra: O programa é ambicioso, é inegável. Mas há claramente medidas que despertam um sorriso.
- Aplicação de toda e qualquer verba decorrente das taxas de circulação automóvel privada ao melhoramento dos transportes públicos (não foi este Governo que anunciou que se gasta demasiado nos transportes públicos de Lisboa? Não foi este governo que avançou com um túnel no Marquês de Pombal que irá impulsionar a entrada de mais alguns milhares de veículos na cidade? Não foi este governo que obrigou a CP a um funcionamento mais racional, abdicando de trajectos e horários pouco económicos? Não foi por fim este governo que lançou a Carris para a pior crise do seu historial? É difícil acreditar que será o mesmo governo que aplicará receitas na modernização e flexibilização dos transportes públicos.)
- Fomento dos parques eólicos (o modelo de aproveitamento de energia eólica continua a esbarrar na ausência de incentivos fiscais para os promotores. Fala-se em facilidade de licenciamento ou de contratação de potência, mas o documento é omisso quanto a benefícios fiscais da actividade. Estes, sim, são o motor de desenvolvimento.
- Estímulo à utilização de energias renováveis na indústria através do Programa de Incentivos à Economia (Prime). Há duas formas de abordar o problema, e esta é a incorrecta. A indústria portuguesa é, lamento reconhecê-lo, indolente e incumpridora. Exige sanções e não tanto estímulos. Por outras palavras, o PRIME poderá contribuir alguma coisa, mas nunca terá sucesso se não for complementado com um forte programa de sanções para quem polui e para quem demonstra desrespeito pela eficiência energética.
- Benefícios fiscais na aquisição de equipamentos para energias renováveis. Eles já existem, mas são escassos e continuarão a sê-lo de acordo com o OE de 2005 (limite máximo de cerca de 730 euros/anos). Pior: anacronicamente, existe legislação que impede o seu recurso a todos os agregados que tiverem contraído uma dívida por aquisição de habitação. Ora, como 75% das famílias portuguesas têm empréstimos de habitação em curso, a medida é vazia e falaciosa).
- Agravamento dos custos de aquisição aos veículos todo-terreno, claramente os mais poluidores. Cá estarei para ver a aplicação desta regulamentação! Sobretudo, no ano em que algumas marcas do sector anunciaram o melhor resultado comercial de sempre!...
- Dedutibilidade fiscal das verbas gastas em títulos de transporte público (é irónico, confesso, num ano em que as tarifas do metropolitano de Lisboa aumentaram três vezes e em que a Carris já ameaça com novo aumento que seja proposta esta medida. Quanto gastámos este ano a mais em transportes públicos? Duvido que compense o que podemos amortizar no IRS de 2005).

O programa é, todavia, extremamente positivo e até corajoso, na medida em que avança com reformas há muito esperadas. Monitorizarei a sua aplicação e marco desde já encontro para daqui a seis meses fazermos o balanço do seu sucesso concreto.

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