sexta-feira, novembro 05, 2004

Sinais de fumo

Ao reconhecimento público de que a situação financeira do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) é de tal forma grave que os serviços telefónicos já foram suspensos pela Portugal Telecom, o ministro do Ambiente reagiu e proferiu esta extraordinária declaração: "É possível fazer mais com menos dinheiro." Nobre Guedes propõe no fundo a transposição da lide doméstica para a gestão de uma instituição pública.
Admitindo que a frase deve ser levada à letra e não foi um desabafo jocoso, Nobre Guedes reconhece que o dinheiro atribuído na dotação ambiental é suficiente e que o problema resume-se apenas à distribuição dessa verba pelas áreas de intervenção. Pensamento curioso, este, que revela provavelmente que o ministro ainda não deve ter franqueado a porta da instituição que tutela.
Mas como o exercício crítico deve ter um carácter pedagógico, proponho uma série de medidas de poupança. Porque, de facto, o ministro convenceu-me. Assim, eis os dez novos mandamentos que deverão ser aplicados brevemente na gestão futura do ICN:

1) Com 1,2 milhões de euros a menos para despesas correntes em 2005, o orçamento esgotar-se-á em Setembro/Outubro só com o pagamento de salários. É portanto lógico abater uma talhada nos salários dos funcionários. Que cada funcionário perca 20% do seu ordenado. Chamemos-lhe o imposto ecológico!
2) Um orçamento é, acima de tudo, um jogo de rácios entre verbas disponíveis e sectores a financiar. Ora se existem 11 parques naturais, 1 parque nacional , 12 reservas naturais, 6 monumentos naturais e 2 paisagens protegidas e se a dotação orçamental não chega para todos, que se extingam imediatamente três áreas protegidas. Aleatoriamente, sem critério. O dinheiro passará a sobejar e haverá três novas áreas em Portugal prontas a urbanizar.
3) Utilizando este mesmo princípio inovador, rapidamente chegamos à conclusão de que há espécies protegidas a mais em Portugal. Onde já se viu um país com a nossa grandeza possuir tanta fauna terrestre e marinha? Que se retire o estatuto de protecção a cinco espécies e melhoraremos o rácio orçamento/espécies. Em 2005, o ICN fará saber que já não protege a savelha, o roaz-corvineiro, o grifo, o cágado-de-carapaça-estriada e, não esquecendo o mundo vegetal, a Armeria berlengensis. A lista pode mudar para o ano, de forma a criar dinamismo na gestão de espécies protegidas.
4) Uma das pedras lançadas injustamente pela oposição é o facto de os telefones do ICN já estarem cortados há algumas semanas. Dentro da política de contenção previamente utilizada, propõe-se que as áreas protegidas passem a comunicar com os seus vigilantes e investigadores através de sinais de fumo. Cada funcionário passará a transportar uma pedra de sílex (para criar faúlha) e dois pequenos ramos de azinheira. Admite-se uma pequena excepção para a comunicação da administração central do ICN com as suas delegações. Que a esta, e excepcionalmente a esta, sejam atribuídos papel de escrita, envelopes e uma caneta. Os selos serão objecto de nova reflexão.
5) E os transportes, senhores, e os transportes? As direcções das áreas protegidas queixam-se sempre de que não há dinheiro para o combustíveis. Pois que se ande a pé, que é mais ecológico. Todos os vigilantes e investigadores deverão calcorrear os seus parques a trote ou a passo. Serão sorteados no início do ano dez vales de saúde para check-ups cardíacos. E nos formulários de contratação de novos funcionários deverão constar os resultados de cada um nos testes de Cooper e nos 110 metros barreiras. Claro está que esta medida ficará dependente do ano em que o ICN conseguir contratar mais alguém. Fonte do Ministério das Finanças assegura que esse desiderato deverá ser concluído antes da comemoração do centenário da implantação da República.
6) Uma das maiores queixas das nobres autarquias do país prende-se com as inspecções regularmente realizadas pelo ICN em busca de violações urbanas nas áreas protegidas. Pois que se passem imediatamente as inspecções para a esfera das autarquias, tão ciosas que elas estão de controlo sobre os apetitosos nacos de terreno protegido. E mais: chamemos a esta inovadora medida "O Plano Fernando Ruas", em homenagem ao presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
7) Todos os anos, chegado o mês de Setembro, os investigadores do ICN que ainda desejam participar em congressos começam a custear viagens e alojamento do seu próprio bolso. Pois que se aplique o passe social a esta classe desprotegida. Daqui para a frente, quem desejar assistir ou participar em congressos científicos terá desconto na compra do bilhete de autocarro ou furgoneta. Ficam naturalmente vedadas as participações em congressos que distem mais de 30 quilómetros da sede de cada área protegida.
8) Estamos na era do marketing, senhores, e o que faz o ICN? Não vende, não rentabiliza os seus activos. Propõe-se um conceito de fun park. Que o Parque Nacional da Peneda-Gerês se transforme num parque de diversões, onde o visitante poderá montar o dorso de um lobo, fazer festas numa águia-real ou gravar o seu nome numa das árvores seculares da mata do Ramiscal. Piqueniques debaixo dos monumentos megalíticos. Gincanas nos mantos de carvalhos. Há dinheiro para ganhar com os ecoparques.
9) Sob o mesmo conceito, há um punhado de investigadores que só se dedicam, de forma egoísta, ao estudo de uma espécie. Que miopia! Propõe-se que cada investigador inclua uma actividade extracurricular e lucrativa no seu plano de actividade. Que o responsável pela conservação do lince passe as quartas-feiras a vender cautelas no centro de Belmonte; que o investigador da víbora-cornuda do Gerês dedique as terças ao ofício de encantador de serpentes no mercado do Lindoso; que os biólogos do Parque Marinho da Arrábida dediquem os dias ímpares à pesca de robalo e dourada para vender na lota de Sesimbra. Com medidas com esta (que ainda ninguém na Europa teve visão de promover), os biólogos gerarão cash-flow suficiente para manter o ICN por muitos e bons anos.
10) Por fim, e a título excepcional, o Ministério do Ambiente deverá investir na aquisição de algumas centenas de tigelas de vime para distribuir por cada funcionário do ICN. Pede-se que todos se façam acompanhar deste novo equipamento e que promovam colectas em todos os locais que visitarem - em trabalho e em lazer. Que se organize uma colecta no metropolitano. Outra na repartição de finanças. Outra na feira do cavalo lusitano da Golegã! Que o contribuinte pague a crise. Quem danificar a tigela terá naturalmente de custear a sua substituição.

E assim concluo o inovador plano de medidas que, seguindo a metodologia de Nobre Guedes, conseguirá fazer mais com menos dinheiro! Não perca o próximo post: abordaremos o tema "Como Produzir Energia Eólica Através do Vento que Circula na Cabeça de Alguns Ministros"

Desculpem o sarcasmo do post, aliás pouco habitual nas minhas intervenções, mas há coisas que, de facto, chateiam. Esta declaração entra claramente para esse lote.

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