Com alguma discrição, a
Assírio & Alvim editou, no último quadrimestre de 2015, Almada, os
Painéis, a Geometria e Tudo, obra
organizada pelo jornalista António Valdemar, baseado nas entrevistas que
conduziu com o pintor modernista no início da década de 1960 e em profunda
recolha documental sobre aquilo que José de Bragança, némesis de Almada, chamou
no Diário Popular o «Problema dos
Painéis».
O livro revela um Almada
humanizado, procurando, na última década de vida, assegurar o seu lugar na história da
arte – com os seus defeitos e vícios, obsessões e irritações, mas
sobretudo sempre fiel ao programa artístico que apresentara aos portugueses em
1915 e que lhe valeu uma vida de pobreza, quando não escárnio, ao contrário de vários
dos seus contemporâneos, menos ciosos da identidade artística e mais aferrados
à cultura de massa. Como no poema de
Frost, Almada escolheu, de dois caminhos, o mais duro e árduo e isso fez toda a
diferença. Mas teve também um preço.
No prefácio, José
Manuel dos Santos diz, com muito acerto, que «este é um livro que desfaz a
nossa falta dele», formulação brilhante para explicar uma obra que recupera
quarenta anos de dedicação de Almada Negreiros aos painéis do Museu Nacional da
Arte Antiga e aos primórdios de uma escola portuguesa de pintura. Através de Valdemar, confidente e discípulo, Almada fala
dos «Painéis das Janelas Verdes como se os tivesse visto pintar.» Talvez até mais: «Como se ele, muito
antes dele, os tivesse pintado.»
Aqui figuram, para
memória histórica, as premissas do pensamento de Almada Negreiros. Entendendo
os painéis como expressão máxima de uma escola primitiva de pintura portuguesa
que nada deveria ao Gama navegador e ao Camões lírico, Almada recusa qualquer
outro documento de suporte. Os painéis são o único documento que lhe interessa,
início e meta da investigação. Das relações geométricas entre tábuas, extrai conclusões
controversas, mas nem por isso dispiciendas: é ele que encontra a ordem certa do
políptico como hoje o conhecemos, organizando os painéis em função dos ladrilhos do chão; é ele também
que sugere que os seis painéis fazem parte de um conjunto mais amplo de 15
tábuas, duas das quais perdidas e as restantes dispersas, que deveriam figurar
na Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha, destino histórico da obra.
Valdemar não esquece
que, por estas ousadias, Almada foi duramente vergastado pela crítica. Por
imperativo ético, figuram também no livro as controvérsias com José de Bragança,
cujo zénite redundou numa cena de pancadaria à porta da Brasileira. As crónicas
zombeteiras de Leitão de Barros, o Barros da moral sinuosa e consciência
artística volátil. As críticas mordazes de António Soares, talvez as mais
dolorosas e pessoais. A célebre votação na Junta de Educação Nacional, que
validou em 1940 a proposta de organização da obra-prima de acordo com a
premissa de Almada (mas com voto contra de João Couto), depois de 14 anos de lutas e conflitos insanáveis. As caricaturas de Valença sobre a polémica intelectual. E até o suicídio trágico de Henrique Loureiro, «ludibriado por um documento falso, introduzido num códice da Biblioteca Nacional».
O miolo do livro é
constituído pelas oito entrevistas que Almada concedeu a António Valdemar e ao
Diário de Notícias na Primavera/Verão de 1960 – esforço singular de divulgação
do «trabalho de uma vida», só publicado por inegável cumplicidade entre
entrevistador e entrevistado e benevolência da direcção do jornal (Augusto de
Castro) e da coordenadora do suplemento de Arte & Letras (Natércia Freire). Um nono trabalho, datado de 1963 e até aqui inédito, empresta valor acrescentado ao esforço compilativo.
Por vezes, em esforços
semelhantes, o biógrafo não evita o endeusamento do biografado. Não é o caso aqui.
Valdemar não esconde os deslizes de Almada, nem ignora o supremo acto de
derrota de 1966, quando Almada, o iconoclasta, Almada, o anti-Cristo, Almada, o
indefínivel, se ajoelhou perante a Academia Nacional das Belas-Artes e aceitou
o título de sócio honorário por aclamação e unanimidade. Como Pessoa zombou um
dia de Marinetti, o escritor italiano que zurzia na elite institucional até
aceitar a «ribalta da Cave Velha», também Almada se vergou ao tilintar do
metal da comenda.
Por cansaço, talvez. Mas vergou.
Valdemar, António. Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo. Lisboa, Assírio & Alvim: 2015. 222pp.
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