quinta-feira, julho 16, 2015

O que viu José de Freitas da janela de um comboio chinês? – Parte 2


Não é comum, mas aconteceu desta vez. No ano passado, publiquei uma crónica sobre a viagem do jornalista do Diário Popular José de Freitas à China de Mao em 1964 [texto original aqui]. Para os camaradas de Freitas no jornal, as reportagens, mais tarde reunidas no livro A China Vence o Passado, ficaram muito marcadas pela observação de um fenómeno nos céus que Freitas pensou resultar de uma experiência atómica. Meses mais tarde, descobri que, no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros (antigo Ministério do Ultramar), existia uma pasta do mesmo ano, codificada apenas como “José de Freitas, do Diário Popular, visita à China Continental” e marcada como “Secreta”. Pedi acesso e esperei pela desclassificação dos documentos.
Aqui fica a adenda à história original recomeçando no ponto exacto onde deixei a narrativa anterior.

Terminada a visita chinesa, José de Freitas regressa a Macau, tradicional porta de entrada portuguesa no Império do Meio. Está apreensivo. Guarda um segredo e, em terras de Mao, nunca sentiu confiança em nenhum dos seus interlocutores para o partilhar. Estava igualmente fora de questão telefonar para Lisboa. No dia 23 de Abril, pede de imediato uma reunião com o governador da província de Macau, António Lopes dos Santos. É provável que sentisse uma ponta de orgulho pelo seu papel de correio diplomático.
Num relato simples e objectivo, Freitas confessa ao governador as gentilezas de que foi alvo em toda a viagem e o percurso gizado pelos chineses para dar a conhecer o seu país. As ambicionadas entrevistas exclusivas com Mao Tsé-Tung e Chu-En-Lai foram frustradas, «muito delicadamente», mas com firmeza. O seu propósito de enviar uma mensagem de boa vontade através da Rádio Pequim foi igualmente negado.
A China, explicou José de Freitas ao seu interlocutor, sentia-se pressionada, entre o seu apreço histórico pelo país que governava Macau e o seu apoio aos movimentos africanos de libertação. Um passo em falso poderia criar «embaraços ao governo de Pequim», embora o problema do Ultramar português nunca tivesse sido aflorado directamente com nenhum dos seus entrevistados. Excepto num jantar de gala. Era isso que Freitas tinha a comunicar.
Em certo jantar em honra do convidado português em data não esclarecida, uma senhora «brindou pela extinção do colonialismo». Freitas sentira-se na obrigação de ripostar, pedindo para rectificar o brinde em honra da «paz entre os povos». A proposta foi aceite, mas Freitas interpretou-a com «a impressão de que a China Continental estaria à espera de qualquer atitude por parte de Portugal». 
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Lopes dos Santos apressou-se a transmitir a informação a Lisboa, ao director-geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna. Seguiu-se depois a inevitável filigrana diplomática, com a missiva transmitida de gabinete para gabinete no ministério então tutelado por António Peixoto Correia. Chegou ao Gabinete de Negócios Políticos (GNP), que Pedro Feytor Pinto considerou, em Na Sombra do Poder, uma espécie de Ministério de Negócios Estrangeiros específico, dada a sua dependência directa do ministro. E aí o processo não evoluiu como José de Freitas sonhara.

O PUXÃO DE ORELHAS
Em carta longa, de sete páginas, Pereira Monteiro, funcionário do GNP, retirou qualquer utilidade a um esforço diplomático que pudesse aproximar o governo português da posição que a França já tomara, reconhecendo o governo chinês. «Mais ou menos veladamente», escreve a certo ponto, «a China já nos tem feito saber que apreciaria uma modificação da nossa atitude oficial para com ela. Houve uma diligência junto do Governo de Macau no sentido de uma aproximação por altura da viagem de Chu-En-Lai à África, e neste continente o líder chinês não enveredou pelo caminho dos ataques, pelo menos públicos, a Portugal, muito embora não tenha perdido a oportunidade de condenar o colonialismo.»
O governo português aceitava então a retórica da colonização, mas não do colonialismo, insistindo que, em África e na Ásia, praticava processos de integração nacional, «de carácter aculturador, conseguindo criar uma superestrutura comum de valores de patriotismo que assegura a unidade da nação». Passava-se assim à crítica impiedosa de José de Freitas que, «embora não represente o ponto de vista oficial português (…) também não foi recebido na China na qualidade de uma pessoa qualquer».
Se à frente do jornalista brindaram ao fim do colonialismo, pois que Freitas brindasse também, explicando «de seguida os motivos por que o fazia, já que a posição portuguesa não pode ser nunca imperialista, como é de fácil demonstração (…) Deveria igualmente ter explicado a fase em que se encontra a nossa política de integração e realçar (…) [que] o mesmo estatuto de direito político [se aplica] a todos os portugueses, em toda a parte do território nacional em que se encontrem».
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
 Terminando como um mestre-escola no final de um puxão de orelhas a um aluno demasiadamente impetuoso, Pereira Monteiro rematava: «Depois, que brindasse pela paz entre os povos porque é a paz que nós queremos como todos os demais, já que não se vê onde a extinção do colonialismo merecesse ser substituída pela frase que empregou.»
Por outras palavras, nada se faria sobre o recado informal que José de Freitas trouxera da China – apenas um puxão de orelhas ao repórter. Que certamente aprendeu que, em diplomacia como nas salas de aulas, às vezes, é melhor ficar calado do que intervir.

O Programa Literatura Aqui, da RTP2, de 20 de Outubro de 2015, dedicou atenção a esta viagem de José de Freitas, incluindo um depoimento meu. Ligação disponível aqui.

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