Não é comum, mas aconteceu
desta vez. No ano passado, publiquei uma crónica sobre a viagem do jornalista
do Diário
Popular José de Freitas à China de Mao em
1964 [texto original aqui]. Para os camaradas de Freitas no jornal, as
reportagens, mais tarde reunidas no livro A China Vence o Passado, ficaram muito marcadas pela observação de
um fenómeno nos céus que Freitas pensou resultar de uma experiência atómica.
Meses mais tarde, descobri que, no Arquivo do Ministério dos Negócios
Estrangeiros (antigo Ministério do Ultramar), existia uma pasta do mesmo ano,
codificada apenas como “José de Freitas, do Diário Popular, visita à China
Continental” e marcada como “Secreta”. Pedi acesso e esperei pela
desclassificação dos documentos.
Aqui fica a adenda à história
original recomeçando no ponto exacto onde deixei a narrativa anterior.
Terminada a visita chinesa, José de Freitas regressa a Macau,
tradicional porta de entrada portuguesa no Império do Meio. Está apreensivo.
Guarda um segredo e, em terras de Mao, nunca sentiu confiança em nenhum dos
seus interlocutores para o partilhar. Estava igualmente fora de questão
telefonar para Lisboa. No dia 23 de Abril, pede de imediato uma reunião com o
governador da província de Macau, António Lopes dos Santos. É provável que
sentisse uma ponta de orgulho pelo seu papel de correio diplomático.
Num relato simples e objectivo, Freitas confessa ao
governador as gentilezas de que foi alvo em toda a viagem e o percurso gizado
pelos chineses para dar a conhecer o seu país. As ambicionadas entrevistas
exclusivas com Mao Tsé-Tung e Chu-En-Lai foram frustradas, «muito
delicadamente», mas com firmeza. O seu propósito de enviar uma mensagem de boa vontade através
da Rádio Pequim foi igualmente negado.
A China, explicou José de Freitas ao seu interlocutor,
sentia-se pressionada, entre o seu apreço histórico pelo país que governava
Macau e o seu apoio aos movimentos africanos de libertação. Um passo em falso
poderia criar «embaraços ao governo de Pequim», embora o problema do Ultramar
português nunca tivesse sido aflorado directamente com nenhum dos seus
entrevistados. Excepto num jantar de gala. Era isso que Freitas tinha a
comunicar.
Em certo jantar em honra do convidado português em data não
esclarecida, uma senhora «brindou pela extinção do colonialismo». Freitas
sentira-se na obrigação de ripostar, pedindo para rectificar o brinde em honra
da «paz entre os povos». A proposta foi aceite, mas Freitas interpretou-a com
«a impressão de que a China Continental estaria à espera de qualquer atitude
por parte de Portugal».
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros |
Lopes dos Santos apressou-se a transmitir a informação a
Lisboa, ao director-geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna.
Seguiu-se depois a inevitável filigrana diplomática, com a missiva transmitida
de gabinete para gabinete no ministério então tutelado por António Peixoto
Correia. Chegou ao Gabinete de Negócios Políticos (GNP), que Pedro Feytor Pinto
considerou, em Na Sombra do Poder, uma espécie de Ministério de Negócios Estrangeiros específico, dada a
sua dependência directa do ministro. E aí o processo não evoluiu como José de
Freitas sonhara.
O PUXÃO DE ORELHAS
Em carta longa, de sete páginas, Pereira Monteiro,
funcionário do GNP, retirou qualquer utilidade a um esforço diplomático que
pudesse aproximar o governo português da posição que a França já tomara,
reconhecendo o governo chinês. «Mais ou menos veladamente», escreve a certo
ponto, «a China já nos tem feito saber que apreciaria uma modificação da nossa
atitude oficial para com ela. Houve uma diligência junto do Governo de Macau no
sentido de uma aproximação por altura da viagem de Chu-En-Lai à África, e neste
continente o líder chinês não enveredou pelo caminho dos ataques, pelo menos
públicos, a Portugal, muito embora não tenha perdido a oportunidade de condenar
o colonialismo.»
O governo português aceitava então a retórica da colonização,
mas não do colonialismo, insistindo que, em África e na Ásia, praticava
processos de integração nacional, «de carácter aculturador, conseguindo criar
uma superestrutura comum de valores de patriotismo que assegura a unidade da
nação». Passava-se assim à crítica impiedosa de José de Freitas que, «embora não
represente o ponto de vista oficial português (…) também não foi recebido na
China na qualidade de uma pessoa qualquer».
Se à frente do jornalista brindaram ao fim do colonialismo,
pois que Freitas brindasse também, explicando «de seguida os motivos por que o
fazia, já que a posição portuguesa não pode ser nunca imperialista, como é de
fácil demonstração (…) Deveria igualmente ter explicado a fase em que se
encontra a nossa política de integração e realçar (…) [que] o mesmo estatuto de
direito político [se aplica] a todos os portugueses, em toda a parte do território
nacional em que se encontrem».
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros |
Terminando como um mestre-escola no final de um puxão de
orelhas a um aluno demasiadamente impetuoso, Pereira Monteiro rematava:
«Depois, que brindasse pela paz entre os povos porque é a paz que nós queremos
como todos os demais, já que não se vê onde a extinção do colonialismo
merecesse ser substituída pela frase que empregou.»
Por outras palavras, nada se faria sobre o recado informal
que José de Freitas trouxera da China – apenas um puxão de orelhas ao repórter.
Que certamente aprendeu que, em diplomacia como nas salas de aulas, às vezes, é
melhor ficar calado do que intervir.
O Programa Literatura Aqui, da RTP2, de 20 de Outubro de 2015, dedicou atenção a esta viagem de José de Freitas, incluindo um depoimento meu. Ligação disponível aqui.
O Programa Literatura Aqui, da RTP2, de 20 de Outubro de 2015, dedicou atenção a esta viagem de José de Freitas, incluindo um depoimento meu. Ligação disponível aqui.
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