Por infeliz coincidência, li o volume Football Leaks (Planeta, 2019) na mesma
semana em que preparei a documentação para apresentar a declaração fiscal
anual. A sensação não foi muito diferente da do infeliz no restaurante que pega
no saleiro em vez do açucareiro e polvilha os morangos da sobremesa com o
condimento errado. Ainda pensei em pedir ajuda à Gestifute para tentar vender
também os meus direitos de imagem à Tollin nas Ilhas Virgens Britânicas, na
esperança de que a Tollin os cedesse depois à MIM na Irlanda, mas lembrei-me da
frase de Cristiano Ronaldo na sessão de tribunal que o condenou: «Jorge Mendes
ainda é mais burro do que eu» em assuntos fiscais. Talvez não valha a pena,
portanto.
Pode não parecer, mas Football Leaks é um livro
sobre jornalismo e presta contas sobre um dos trabalhos mais exaustivos e
sagazes desenvolvidos pela imprensa europeia desde 2016. Infelizmente, chegou
cá distorcido e distante da mensagem original, embrulhado em camadas de
hipocrisia (que melhor exemplo do que Lobo Xavier, advogado fiscal de CR7,
caracterizar Rui Pinto, o assumido denunciante, como ladrão de bancos e
arrumando simploriamente a discussão enquanto “comentador imparcial”?)
O livro é, acima de tudo, uma reparação das
falhas da cobertura noticiosa dos nossos media sobre este caso que juntou uma
coligação invulgar de empresas jornalísticas internacionais e implicou meses de
trabalho árduo. Por cá, infelizmente, o Football Leaks foi construído como «o
caso do hacker dos emails do Benfica»
e pouco mais. Temo que muitos não consigam sequer explicar o motivo alegado
pelas autoridades portuguesas para a prisão preventiva de Rui Pinto.
Há um século, o político republicano João
Chagas queixava-se, com razão, que os portugueses que se limitavam à leitura do
jornalzinho nacional viam o mundo por uma frincha, convencidos de que a frincha
era o mundo todo. Não era então e não é agora. No Der Spiegel, no The Guardian,
no El Mundo e, ocasionalmente, no Expresso, a história tornou-se muito
mais complexa, muito mais cinzenta e, em última instância, forçou o difícil
debate sobre o que vale mais num caso desta natureza – se o modo, porventura
ilícito, como os documentos foram encontrados ou se as implicações que estes
produzem superam esse desconforto.
Entendamo-nos. À excepção do negócio da
cocaína e dos empréstimos da Dona Branca, o futebol parece ser a única
actividade que permite decuplicar o investimento em menos de um ano. Não foi
por isso que qualquer um de nós se apaixonou pelo jogo, mas é certamente por
isso que gente pouco recomendável trouxe o seu dinheiro para a mesa verde do
casino da UEFA.
Entre 18,6 milhões de documentos publicados online ou cedidos ao consórcio de
investigação, o Football Leaks expôs dois ângulos do negócio do futebol – a
imoralidade e a ilegalidade. Com a primeira, convenhamos, cada um lidará como
entender, ora afastando-se do jogo, ora aceitando que o novo normal do mundo do
futebol é um avançado receber bónus por marcar golos (Vide Lukaku, pp 269-270), ser premiado por fidelidade num novo
contrato depois de romper unilateralmente o contrato anterior (Dembelé, pp.
263) ou – o meu favorito – receber um milhão de euros de bónus, como Ballotelli
(pp.84), se não for expulso mais de três vezes na mesma temporada.
Com a ilegalidade, porém, a história é
diferente. O Football Leaks expôs infracções flagrantes às regras de fair-play financeiro, aos regulamentos
que proíbem a posse tripartida de passes de jogadores ou o controlo de mais de
um clube pela mesma associação de malfeitores. E, sobretudo, para irritação de
muitos, os delatores expuseram os esquemas mirabolantes de jogadores,
treinadores e agentes para fugirem à tributação e colocarem dinheiro a salvo em
paraísos fiscais. Essa é, para mim, a justificação que legitima o denunciante, mas
também pode ser só a minha justificação para a frustração de não conseguir
declarar as facturas do veterinário do gato e das permanentes da avó como deduções
à colecta. Decidam os senhores.
Na página 159, um dos autores faz a
pergunta decisiva do livro. Sentado na tribuna de um estádio cheio durante o
Euro’16, o jornalista perguntava-se se as revelações sobre os negócios vorazes
do futebol, frequentemente corruptos e quase sempre hipócritas, afectariam os
adeptos. Se gerariam alguma repulsa.
Passaram meses sobre as grandes revelações
e sobre as confissões de várias estrelas (que “voluntariamente” devolveram às
autoridades tributárias milhões de euros em troca do não-cumprimento de penas
prisionais). O mundo da bola continua a girar. O principal denunciante está
preso em Portugal, acusado de ter ludibriado um fundo predador, representado
por um empresário ao qual – sejamos honestos – nenhum de nós compraria sequer
um carro em segunda mão. O Verão aproxima-se com a promessa de novos recordes
no mundo desgovernado das transferências e certamente novas cláusulas mirabolantes (talvez um subsídio por cada ocasião em que o craque saudar as claques ou um prémio ao guarda-redes que defender mais de um remate por jogo).
Aos deuses do estádio, sabemo-lo agora,
perdoa-se tudo.
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