quarta-feira, março 27, 2019

A Guerra da Mina


«Toma, rapaz. É capaz de ter sido a melhor prosa que me saiu» – disse o Daniel sem cerimónias enquanto me passava o volume do mesmo modo que os corredores de estafetas costumam passar o testemunho.
Saído de outra boca, seria um comentário corrente. Da boca do Daniel, é como se o livro agora oferecido ganhasse encadernação de pele com ferros a ouro. Martelando incansavelmente o AZERTY das máquinas de escrever e depois o QWERTY dos computadores, o Daniel escreveu milhares de páginas de excelente prosa no Diário de Lisboa, na Gazeta dos Desportos, no Expresso e em tantos outros jornais efémeros. Foi mestre de muito boa gente – uns reconhecem-no e outros deixaram cair essa pena do chapéu. É a vida, suponho.
Foi o autor do relato publicado na primeira página do Diário de Lisboa no fim de tarde de 25 de Abril de 1974. Estão lá, no texto não assinado, as duas marcas de água do trabalho do Daniel – a informação directa e precisa e a «prosa com gente lá dentro» (se o querem ver indignado, mostrem-lhe uma destas primeiras páginas modernas de jornal repletas de comentários de fontes anónimas e «bem colocadas»).
Durante mais de uma década, assinou no Expresso a reportagem parlamentar, como Brito Aranha tinha feito no início do século XX – agregando o colorido das sessões à informação plural, doesse a quem doesse. Zurziu à esquerda e à direita. Transformou a reportagem do Parlamento em prosa diferente – Adelino Cardoso e os velhos repórteres da Assembleia Nacional tinham sido obrigados a agir como estenógrafos. Daniel foi intérprete. «Acho que não fazia aquilo mal», diz, hoje, em declarações não autorizadas a este repórter. É falso. Fazia-o como mais ninguém.
Quando me dão livros para a mão, costumo lembrar-me de uma analogia que Manuel Poppe, escritor, diplomata e crítico literário do Jornal de Notícias e do Diário Popular, já usou – a crítica literária, quando feita por académicos, é como o bicho da madeira. Corrói, esfuranca e retira harmonia ao livro. «Feliz e habitualmente, são intragáveis», escreveu Poppe. «Escrevem uns para os outros e hão-de morrer abraçadinhos.» Terei isso em conta. Conheço o porte (e a higiene) da maior parte dos críticos desta terra e passo bem sem os abraços.
Vamos ao livro. Escrito em co-autoria por Daniel Reis e Fernando Paulouro Neves (sobre quem também escreverei um dia destes), A Guerra da Mina e os Mineiros da Panasqueira (Regra do Jogo, Lisboa, 1979) é, sem favores, a reportagem que sustenta factualmente o que Aquilino Ribeiro quis contar com Volfrâmio: Romance (Lisboa, Bertrand, 1943). Aquilino pintou o tecto da Capela Sistina; Daniel Reis e Fernando Paulouro confirmaram que o romance se sustentou em gente real, numa mina que existia e matava, com capatazes cruéis, guardas surdos e até um cura que não deixava os feridos entrarem no automóvel para não lhe sujarem a viatura. Mais: como nas películas da Technicolor, deram cor, mais de três décadas depois, aos heróis aquilianos do preto-e-branco.
As memórias registadas no primeiro capítulo são a verdadeira linha cronológica da obra. Cada história conta um período da vida da mina. Desde o tempo do Volfrâmio em que os infelizes entravam no algar infernal sem luvas ou capacete, sem qualquer protecção contra a poeira infernal, aos marcos dos pequenos melhoramentos – de salário, de equipamento, de condição laboral. Sem meias palavras. Cada conquista resultou de uma tragédia, como se a bandeira de Iwo Jima fosse desfraldada sobre o corpo do infeliz que permitiu a tomada do monte. Em A Guerra da Mina, não há fugas redentoras, nem bravatas rebeldes de heróis isolados. Há homens que entram todos os dias pela mina – uns saem e outros não. Mas todos ficam lá.
Os sindicatos não são poupados. Os médicos não são poupados. Os tribunais não são poupados (magnífica recolha documental no Tribunal do Trabalho da Covilhã). E a empresa benemérita menos ainda.
Com quarenta anos de atraso, li o livro de um fôlego e fiquei sem fôlego. Não sei se é a melhor prosa que o Daniel já escreveu. Sei que nunca mais olharei para a Panasqueira com os mesmos olhos. 
É só isso que se pede de uma reportagem. 

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