«Toma, rapaz. É capaz de ter sido a melhor
prosa que me saiu» – disse o Daniel sem cerimónias enquanto me passava o volume
do mesmo modo que os corredores de estafetas costumam passar o testemunho.
Saído de outra boca, seria um comentário
corrente. Da boca do Daniel, é como se o livro agora oferecido ganhasse
encadernação de pele com ferros a ouro. Martelando incansavelmente o AZERTY das
máquinas de escrever e depois o QWERTY dos computadores, o Daniel escreveu
milhares de páginas de excelente prosa no Diário
de Lisboa, na Gazeta dos Desportos, no
Expresso e em tantos outros jornais efémeros. Foi mestre de muito boa
gente – uns reconhecem-no e outros deixaram cair essa pena do chapéu. É a vida, suponho.
Foi o autor do relato publicado na primeira
página do Diário de Lisboa no fim de
tarde de 25 de Abril de 1974. Estão lá, no texto não assinado, as duas marcas
de água do trabalho do Daniel – a informação directa e precisa e a «prosa com
gente lá dentro» (se o querem ver indignado, mostrem-lhe uma destas primeiras
páginas modernas de jornal repletas de comentários de fontes anónimas e «bem
colocadas»).
Durante mais de uma década, assinou no Expresso a reportagem parlamentar, como
Brito Aranha tinha feito no início do século XX – agregando o colorido das sessões à informação plural, doesse a quem doesse. Zurziu à esquerda e à direita. Transformou a reportagem do
Parlamento em prosa diferente – Adelino Cardoso e os velhos repórteres da
Assembleia Nacional tinham sido obrigados a agir como estenógrafos. Daniel foi
intérprete. «Acho que não fazia aquilo mal», diz, hoje, em declarações não
autorizadas a este repórter. É falso. Fazia-o como mais ninguém.
Quando me dão livros para a mão, costumo
lembrar-me de uma analogia que Manuel Poppe, escritor, diplomata e crítico
literário do Jornal de Notícias e do Diário Popular, já usou – a crítica
literária, quando feita por académicos, é como o bicho da madeira. Corrói,
esfuranca e retira harmonia ao livro. «Feliz e habitualmente, são intragáveis»,
escreveu Poppe. «Escrevem uns para os outros e hão-de morrer abraçadinhos.» Terei isso em conta. Conheço o porte (e a higiene) da maior parte dos críticos desta terra e passo bem sem os abraços.
Vamos ao livro. Escrito em co-autoria por Daniel Reis e Fernando Paulouro Neves (sobre quem também escreverei um dia destes), A Guerra da Mina e os Mineiros da
Panasqueira (Regra do Jogo, Lisboa, 1979) é, sem favores, a reportagem que
sustenta factualmente o que Aquilino Ribeiro quis contar com Volfrâmio: Romance (Lisboa, Bertrand, 1943). Aquilino pintou o
tecto da Capela Sistina; Daniel Reis e Fernando Paulouro confirmaram que o
romance se sustentou em gente real, numa mina que existia e matava, com capatazes cruéis, guardas surdos e até um cura que não deixava os feridos entrarem no automóvel para não lhe sujarem a viatura. Mais: como
nas películas da Technicolor, deram cor, mais de três décadas depois, aos
heróis aquilianos do preto-e-branco.
As memórias registadas no primeiro capítulo são a verdadeira
linha cronológica da obra. Cada história conta um período da vida da mina. Desde o
tempo do Volfrâmio em que os infelizes entravam no algar infernal sem luvas ou capacete, sem qualquer protecção contra a poeira
infernal, aos marcos dos pequenos melhoramentos – de salário, de equipamento, de condição
laboral. Sem meias palavras. Cada conquista resultou de uma tragédia, como se a
bandeira de Iwo Jima fosse desfraldada sobre o corpo do infeliz que permitiu a
tomada do monte. Em A Guerra da Mina, não há fugas redentoras, nem bravatas rebeldes de heróis isolados. Há homens que entram todos os dias pela mina – uns saem e outros não. Mas todos ficam lá.
Os sindicatos não são poupados. Os médicos
não são poupados. Os tribunais não são poupados (magnífica recolha documental
no Tribunal do Trabalho da Covilhã). E a empresa benemérita menos ainda.
Com quarenta anos de atraso, li o livro de um fôlego e fiquei sem fôlego. Não
sei se é a melhor prosa que o Daniel já escreveu. Sei que nunca mais olharei
para a Panasqueira com os mesmos olhos.
É só isso que se pede de uma
reportagem.
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