quinta-feira, março 21, 2019

«É do 4-2937? Posso falar com Vasco Santana?»


Tenho nas mãos uma máquina do tempo. Não é uma cápsula nem ostenta equipamento extravagante, próprio dos filmes de Hollywoood, mas permite interpelar algumas das personalidades portuguesas do século XX. É directa e objectiva. Isola um momento no contínuo da história e permite-me mergulhar de cabeça, com a vantagem evidente de saber à partida o destino das almas que me proponho interrogar. É a Lista Telefónica n.º 57 da Anglo-Portuguese Telephone Company para a região da Grande Lisboa, publicada em 1 de Outubro de 1934.
A capa do volume fala sem requerer palavras. Gasta pelo tempo e pelo uso. Com anotações a caneta e anúncios de Vinho Velho do Porto à mistura com uma cooperativa de chauffeurs («Tem à disposição de V. Ex.ª desde o aristocrático Rolls Royce e o luxuoso Packard ao popularíssimo Palhinha.»)
      Comecemos pela política. Salazar, obviamente, não consta. Já vive na residência oficial e largou o velho apartamento onde se refugiara quando entrou para o governo, em 1928. Mas quer trocar impressões com Marcello Caetano? Ligue para o 4-5043 ou, melhor ainda, visite-o no 39, 1.º Dto da Av. Barbosa Bocage? Talvez o jovem especialista em Direito esteja a ultimar o seu volume sobre Direito Administrativo que publicará em 1937. Porventura ainda não pôs definitivamente de lado os amigos integralistas e o sonho de restaurar a monarquia.


Se Marcello ainda é apenas um jovem turco em 1934, um dos seus vizinhos já é um valor consagrado do Estado Novo. Duarte Pacheco reside na Rua Latino Coelho, n.º 19, 1.º Esq. (telf. 4-7844). Recebeu no ano anterior a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e esperam-no grandes realizações arquitectónicas. Usufrui da vida a cem à hora, mas essa velocidade terá custos terríveis…
       Algumas ruas ao lado, no n.º 6, 5.º dto da Rua Filipe Folque (telefone 4-5622), vive um jovem militar que já pegou em armas para defender o regime em 1927 e em 1931. Chama-se Humberto Delgado e ainda demorará duas décadas a virar o prego. Decerto não imagina o que o espera.
Quer saber o que pensam os ideólogos do salazarismo? É fácil. Na Calçada dos Caetanos, 6, 1.º (telf. 2-0867), vive António Ferro. Publicou no ano passado um livro de entrevistas com Salazar e acabou de inaugurar a sede do Secretariado Nacional da Propaganda. Vai cair em desgraça daqui a alguns anos, mas é melhor não lho dizer já.
O Reviralho também está na lista, bem entendido. No n.º 163, 2.º andar Esq. da Rua Gomes Freire (telf. 4-2097), vive João Lopes Soares. Tenho o palpite de que um catraio de quase dez anos que lá anda por casa, o Mário, dará que falar.
Acabadinho de chegar a Lisboa, aproveitando a amnistia do ano anterior, está Armando Cortesão, irmão do Jaime, ambos historiadores. Está prestes a partir para novo exílio em Madrid, onde acompanhará a experiência da república espanhola. Conhecerá certamente as últimas sobre os oposicionistas? Telf. 4-4943 ou Avenida da República, 97, 4.º.
Peço-lhe agora o favor de baixar o tom de voz. No n.º 27 do Largo Rafael Bordalo Pinheiro, vive o capitão Agostinho Lourenço, director da PVDE (Tlf. 2-2333). Também tem casa na Av. Duque de Ávila, 82, 1.º (Tlf. 4-6982). Parece que sabe tudo sobre todos em Lisboa.
Se fosse possível mudar o futuro, valeria a pena bater à porta da Rua Marquês da Fronteira, A.C. (Tlf. 4-7658) e convencer o senhor António Barbieri Cardoso de que o filho, Agostinho, será um estupor da pior espécie daqui a uns anos? Talvez já seja tarde.
Outro pai angustiado – mas por razões distintas – vive na Av. 5 de Outubro, n.º 27, 3.º (Tlf. 4-6229). É advogado e chama-se Avelino Cunhal. Diz-se que o filho Álvaro milita nas organizações comunistas. Será possível?


Deixemos a política. Infelizmente, Fernando Pessoa não viverá mais um ano para lá desta lista. O seu nome não consta aqui. O poeta viverá em casa do cunhado Caetano Dias, mas nem esse número foi listado. Da geração do Orpheu, temos ainda representantes vivos, apesar da rapidez com que a Ceifeira levou muitos do mundo dos vivos. O poeta Alfredo Guisado é um dos sobreviventes: reside no Largo da Graça, 15, 1.º (Tlf. 2-5964). É só esperar que ele regresse do jornal República onde assegura a página literária. E, claro, há sempre Almada: de casamento fresco com Sarah Afonso, José de Almada Negreiros vive na Rua das Fábricas das Sedas, n.º 9, 2.ºdto (Tlf. 4-4106).
O teatro está representado por Eduardo Schwalbach, na Calçada da Estrela, 183, 2.º (Tlf. 2-3100). Enquanto Augusto de Castro brilha nas embaixadas do estrangeiro, Schwalbach vai governando o seu Diário de Notícias e tratando da vidinha.
Também há jornalistas na lista, claro está. Na Rua Vítor Bastos, 17, 3.º (Tlf. 4-4787), vive um dos maiores – Norberto Araújo, olisipógrafo e alma do Diário de Lisboa. Anos antes, andou pendurado num porta-aviões inglês só para entrevistar o irmão aviador de Franco.
A lista não menciona Reinaldo Ferreira, que já estará a sucumbir lentamente no Porto ao peso da morfina e outras drogas, mas contém a outra metade do Repórter X. Mário Domingues, detective e jornalista, vive na enigmática Rua Particular J.R., 1.º Esq. à Morais Soares. Talvez seja melhor telefonar: 4-2339.
       Para apanhar Norberto Lopes ao telefone, é necessária alguma criatividade. O director-adjunto do Diário de Lisboa está casado com Dona Maria Emília Vieira, actriz e astróloga. Se lhe telefonar (4-3624) ou se passar pelo n.º 33 s/l da Rua do Passadiço, não se esqueça de pedir à esposa do grande jornalista o mapa astral da semana. Diz-se que até Salazar recorre à Sibila. 
Quem anda eufórico é Félix Correia, também do Diário de Lisboa. Já tem autorização do Terceiro Reich para visitar Berlim em Janeiro de 1935. Ali vai conhecer o seu amado Führer e entrevistá-lo. Diga-lhe para moderar os entusiasmos na Travessa da Oliveira à Estrela, 19, 2.º dto. (Tlf. 2-5436). Ainda se arrepende.
E por falar em entusiasmos – diz-se que vai haver festa em breve na Rua de Sant’Ana à Lapa, n.º 5 (Tlf. 2-1664). O jovem empresário da Covilhã Henrique Pinto Balsemão, proprietário da perfumaria Balsemão na Baixa (segundo confidência de um bom amigo), vai ter um filho. Será que se chamará Francisco, como o tio?
Precisa de um médico? É fácil. Francisco Gentil disponibiliza o contacto da casa de campo, na Quinta da Margarida, na Arrábida. O cirurgião tem uma grande honra. Foi o 26.º assinante telefónico de Azeitão.
       Reynaldo dos Santos também consta. O grande cirurgião vascular reside no n.º 27, 2.º andar da Praça dos Restauradores. Está à distância de um telefonema (Tlf.: 2-4904) que, segundo a tabela de custos publicada na mesma lista, custa apenas 50 centavos por cada impulso de três minutos dentro da cidade de Lisboa. Não é caro para falar com a autoridade nacional em aortografias.
Um arquitecto? Cotinelli Telmo mora na Rua Saraiva de Carvalho, n.º 88, 1.º dto (Tlf. 4-5500). Acabou de ser nomeado por Duarte Pacheco para a Comissão de Construções Prisionais, mas a loucura dele é o cinema. Realizou A Canção de Lisboa no ano passado.
       Um advogado? Fácil. José de Azeredo Perdigão reside na Travessa do Abarracamento de Peniche, n.º 14 (2-2720). Não estranhe a vizinhança. Daqui a oito anos, o jovem causídico vai travar amizade com um empresário arménio e mudará a história do país.
Um arqueólogo? Manuel Heleno, com certeza. Já é director do Museu Nacional de Arqueologia. Caminha todos os dias para lá a partir da Avenida Miguel Bombarda, 116, 3.º (Tlf. 4-7013). Vai repetir o trajecto por mais trinta anos.
       Um cientista? Há várias opções, mas aproveite bem o tempo passado com o matemático Bento de Jesus Caraça (Rua de Buenos Aires, n.º 57, 3.º – Tlf.: 2-1617). Daqui a uns anos, ele terá de deixar a matemática para segundo plano e será infectado pelo vírus da política.
Actores há vários – pelo menos aqueles que já podem pagar uma casa. Para além de Vasco Santana, na Rua Rodrigues Sampaio, 31, 4.º Esq. (Tlf. 4-2937), valeria a pena telefonar a Chaby Pinheiro (Tlf. 2-7009, Rua da Vinha, 44, 2.º), não fosse dar-se o caso de o velho actor ter entretanto falecido e, certamente por descuido, a família ainda deixou que o seu número constasse na lista.
Não esqueçamos o desporto, por favor. Salazar Carreira, atleta polivalente do Sporting, vive na Avenida da República, 3, 2.º (Tlf. 4-4254), mas, se a inclinação clubística pender para o outro lado, não faça a coisa por menos. Cosme Damião, o fundador do Benfica, ainda vive na Quinta do Mirante, Costa do Pó, em… Cintra (Tlf. 56 da linha de Sintra).


À despedida, justifica-se deixar dois recados para dar alento aos próprios. A vida não lhes corre bem de momento, mas em breve o seu destino será diferente. Na Rua Nova da Alfarrobeira, em Cascaes (Tlf. 121 da Linha de Cascais), vive um economista que lidera a comunidade israelita de Lisboa. Está apavorado com as notícias que chegam da Alemanha sobre perseguição aos judeus. Moisés Amzalak tenta convencer os amigos na cúpula do Estado Novo a permitirem que Portugal venha a ser um porto de abrigo caso o pior aconteça. Terá sucesso nos próximos anos.
Na Avenida Luís Bivar, E.M. (Tlf. 4-7089), vive entretanto um médico que já andou aos tiros durante a Implantação da República. Acalmou entretanto e faz experiências extravagantes no hospital. Daqui a quinze anos, vão atribuir o Prémio Nobel da Medicina ao Dr. Egas Moniz, verão.
A lista encerra muitas mais curiosidades históricas. De gente já consagrada em 1934 ou que talvez não sonhasse com o que destino reservava. Ali, em duas linhas de texto, estavam à distância de um telefonema ou de uma visita pessoal, como qualquer outro mortal. Eram palpáveis.

Manda a honestidade dizer que este texto bebeu inspiração de um exercício similar feito pelo escritor brasileiro Ruy Castro, na Folha de São Paulo. Numa lista telefónica do Rio de Janeiro do ano de 1956, Castro encontrou os ases da Bossa Nova e do Samba, da política e da literatura brasileira. Os que já o eram e os que vieram a ser. 

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