domingo, janeiro 22, 2023

Um bom malandro, um deputado e uma eliminação do Sporting


       De vez em quando, três bons malandros reúnem-se em Odivelas, em frente de um tacho bem servido, e contam histórias uns aos outros. É uma espécie de competição saudável pela melhor narrativa. Esta semana ganhou um rapaz de Bogas com esta história que prova a omnipresença de A Bola de Vítor Santos, o humor de Jorge Sampaio e a memória dos tempos em que as sessões parlamentares decorriam pela noite dentro.

       Estávamos em Março de 1988 e a Assembleia fazia horas extra para aprovar legislação. Trabalhava-se a mata-cavalos e a ausência de peões neste xadrez implicava a aprovação matemática da legislação dos rivais.
       O governo era então suportado por uma maioria sólida de deputados do PSD, o que tornava hercúlea a tarefa do líder da bancada socialista, o futuro PR Jorge Sampaio, tentando segurar o dique contra a força da corrente.
       Às duas da manhã do dia 17, Sampaio pede clemência, lembrando que, na maioria dos parlamentos do mundo, só estão presentes os deputados com interesse evidente por um tema enquanto os outros trabalham no edifício noutros dossiers. Correia Afonso, pelo PSD, riposta de imediato, dizendo que os 80 deputados do seu partido ficarão ali até ser preciso.
       Sampaio contesta então: “Tenho estado a reparar – e devo dizer que cheio de inveja – que um dos tais 80 srs. deputados do PSD, por quem tenho tanta consideração e que se encontra na última fila da bancada, tem estado a ler o trissemanário A Bola, que é um jornal que também gosto muito de ler. Ora, eu, que também hoje comprei esse jornal, mas que ainda não o consegui ler porque me encontro na primeira fila da bancada, estou cheio de pena e se estivesse nas mesmas condições daquele Sr. Deputado, que tem todo o direito de ler A Bola, mas que infelizmente não tem um gabinete… A verdade é que, com estes novos aparelhos que permitem ver o que se passa no plenário, esse sr. Deputado poderia ter esta faculdade admirável que é ler A Bola e ouvir o que se passa no plenário.”
       Das bancadas ecoa uma gargalhada. O ambiente desanuvia. Na última fila da bancada do PSD (“o Terceiro Anel do Estádio Nacional de São Bento”), caçado pelo circuito interno televisivo, o jovem deputado Jaime Mil-Homens ruboriza e tenta fechar apressadamente as páginas gigantescas do jornal. Balbucia uma justificação. Calhou-lhe a fava, pois o jornal já percorrera toda a última fila.
       Correia Afonso brinca também: “Ler A Bola é olhar para um problema de desenvolvimento tecnológico”
       Sampaio remata: “Pois é, Sr. Deputado. Eu também lá estive pelo meu clube ontem na bancada.” E sacando do jornal do bolso, acrescenta: “Eu só queria dizer que, enquanto muitos deputados do PSD já tiveram tempo de ler A Bola de ponta a ponta, eu só na cama, antes de dormir, poderei saber como é que ‘isto’ correu ontem.”
       “Isto” era o empate do Sporting com a Atalanta na segunda mão dos quartos-de-final da Taça das Taças que custara a eliminação dos leões (também lá estive na bancada e vi o “frango” do Vítor Damas). Sampaio ganhou esse “round”, mas naturalmente perdeu a votação.
       Para provar que o Daniel não mente, aqui fica a página do Diário Parlamentar e uma crónica do autor em A Bola (10 de Fevereiro de 1995). As votações parlamentares nocturnas, essas, já são uma memória distante.

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