Um provérbio polaco aconselha que nunca se deve mergulhar duas vezes no mesmo rio. Diz a sabedoria eslava que, sabendo de antemão as desvantagens de uma experiência negativa, não faz sentido repeti-la. Seria curioso testar a sensibilidade polaca no caso das gravuras paleolíticas de Foz Côa.
O processo que levou à qualificação das gravuras rupestres e suspensão da barragem hidroeléctrica projectada pela EDP é sinuoso e ainda hoje polémico. Compromete transversalmente dois executivos – o último de Cavaco Silva e o primeiro de António Guterres. Têm ambos culpas no cartório e é a eles que devem ser assacadas responsabilidades pelo descontentamento crescente da população de Vila Nova de Foz Côa.
Este mês, cumprem-se dez anos sobre a validação científica do achado e a natural reivindicação de que as obras da barragem cessassem. Entre o final de 1994 e o ano de 1995, desenrolou-se em Portugal uma trama curiosa, que serviu inclusivamente de tubo de ensaio para uma obra sociológica notável de Maria Eduarda Gonçalves ("O Caso de Foz Côa", edições 70).
Errou primeiro o executivo de Cavaco Silva. E que erro! Demonstrou arrogância e falta de sensibilidade para o património cultural. Preferiu colocar em causa gratuitamente a credibilidade de peritos e deu a entender que se sentiria satisfeito se a datação das gravuras não correspondesse ao Paleolítico. Quando um membro do governo se referiu aos "rabiscos na parede", sintetizou na perfeição o que pensava o executivo daquele pequeno grão de areia na engrenagem. Nas rochas de xisto do vale do Côa, ficou gravada a imperícia ministerial para lidar com o património arqueológico.
Seguiu-se António Guterres, que herdara o conflito pelo lado mais confortável. Ele, Guterres, era o defensor da herança cultural contra a bárbara EDP e o governo composto por filisteus. Até tinha razão, mas ninguém pode contornar impunemente a lei básica da hermenêutica: és prisioneiro da palavra que proferires! E Guterres ficou refém das promessas irrealistas que deixou na Beira Alta. Prometeu um turismo cultural de 200 mil pessoas/ano. Prometeu três centenas de projectos de investimento privado, ao abrigo do programa Procôa, que melhorariam infra-estruturas e trariam sangue novo à região. Prometeu auto-estradas e hotéis. As expectativas geradas na região, que facilmente se constavam em 1996 e 1997, foram elevadíssimas. Nas margens do Côa, estava a galinha dos ovos de ouro.
Os anos passaram, e os projectos ficaram na gaveta. Segundo o "Jornal de Notícias", em dez anos apenas surgiram quatro candidaturas ao programa de modernização do comércio local. O número de visitantes do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) cifra-se em 20 mil/ano. As estradas e os hotéis ficaram em projecto e diz-se hoje, à boca cheia na vila, que melhor seria que a água do rio tivesse coberto as rochas.
Há cerca de um ano, escrevi uma notícia que dava conta do desconforto local com a previsível perda de fundos estruturais para construir o famoso museu do Côa. Se as obras não arrancassem até final de 2004, o financiamento teria de ser exclusivamente fornecido pelo governo português. Ou seja, o museu seria adiado para as calendas gregas.
Noto hoje com alguma ironia que as obras vão avançar no próximo mês, a escassos dias do fim do prazo. O Museu de Arte e Arqueologia estará pronto em 2007 e custará 15 milhões de euros, provenientes em grande parte do III Quadro Comunitário de Apoio. Aleluia!
O que devemos extrair da gestão deste caso para a sociedade portuguesa? Espero, em primeira instância, que prevaleça a conclusão sadia de que o turismo cultural de excelência não se cria com pós de perlimpimpim, num passe de mágica. Pelo contrário. A dinamização de projectos culturais é lenta e progressiva e exige investimento contínuo.
Quer se queira quer não, o caso do Côa fez também jurisprudência, marcou o desfecho de casos futuros. Daqui para a frente, haverá sempre opositores ferozes da protecção de sítios arqueológicos, que lembrarão o que não se fez em Foz Côa; e haverá sempre árduos defensores do património, que evocarão o que foi possível fazer graças à mobilização cívica e à valorização da herança cultural.
Rebato no entanto a ideia de que Vila Nova de Foz Côa só perdeu com o caso das gravuras:
- O emprego na barragem era limitado aos quatro anos de construção. O PAVC gerou emprego permanente na região. Escasso mas certo.
- As gravuras colocaram Foz Côa e a Beira Alta no mapa. Vinte mil visitantes/ano numa zona de interior profundo são uma conquista louvável.
- A investigação arqueológica ganhou adeptos e institucionalizou-se, ganhando acesso mais regular ao espectro mediático, graças a este caso.
- O curso do rio Côa não foi adulterado, mantendo alguma relação com o seu percurso prístino.
- E não esqueçamos o principal apesar da tristeza que invade esta vila beirã: preservámos o que não tem preço.
Uma coisa, porém, o caso do Côa não fez: não gerou a publicitada riqueza "Ovomaltine", tão abundante como instantânea. E o mais trágico é que todos embarcámos nessa falácia.
2 comentários:
A decisão sobre Foz Côa foi perturbada por uma transição política e uma crise económica. O país estava farto de Cavaco SIlva. A política do betão por este levada a cabo estava a ser objeto de muitas críticas.
Tomou-se então uma decisão apressada e irresponsável, que jamais fôra tomada em qualquer outro país do mundo.
Já na altura alguns ambientalistas diziam, à boca pequena, que a decisão era errada.
Hoje temos o Sabor pela frente. Uma batalha perdida, após a decisão errada de Foz Côa.
O facto é que a natureza do vale do Sabor não sabe nadar, nem nunca saberá. As gravuras de Foz Côa, pelo contrário, poderiam muito bem ter sido postas a salvo.
Agradeço o comentário, embora não concorde com o ponto de vista. Não contesto a protecção do achado e a fundação do primeiro parque arqueológico português. Foram dois passos fundamentais, que permitiram a consolidação do trabalho arqueológico. Admito porém que a barragem no Sabor carece de fundamentação. Mas esse tópico dá pano para mangas (prometo um post dentro em breve sobre o Sabor). Um abraço
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