quarta-feira, janeiro 12, 2005

Em frente, caramba, em frente

"O vício do tabaco gera cem milhões de francos anuais para a economia. Proibo-o no dia em que me revelarem a virtude que trouxer os mesmos rendimentos." – Napoleão III

Em situações de constrangimento e de forte pressão da oposição, os governos dividem-se consoante a resposta que articulam: há governos que cortam a eito, propondo o que sentem ser correcto, alheios à maré de críticas e norteados pela determinação de legislar de acordo com um programa; outros executivos recuam e avançam, sentem cada crítica como uma ferroada de alcance inimaginável e, no momento da verdade, comprometem os diplomas a legislar, trocando a verticalidade por compromissos menos honrosos. Dispenso-me de qualificar os executivos que nos têm governado nas últimas décadas. Mas esta distinção não me sai da memória à medida que vamos conhecendo mais pormenores do diploma que o Ministério da Saúde prepara(ou) para combater os efeitos do tabagismo.
Para clarificação dos leitores, aviso desde já que sou movido por preconceitos nesta matéria. Sou verdadeiramente um taliban do fumo e desejo ver todo e qualquer espaço público vedado aos fumadores. Hospitais, escolas, gabinetes, escritórios, museus e estádios de futebol: tudo. Que uma imensa zona de interdição se abata sobre as cidades portuguesas, remetendo o fumador para a exclusão social! – é um dos meus desejos para o ano que ora começa.
Naturalmente, assumindo estes preconceitos, adivinharão a minha alegria quando escutei, em Novembro, os primeiros ecos de um diploma preparado no Ministério da Saúde e que equipararia a nossa legislação ao (bom) exemplo norueguês. À boa maneira nacional, o diploma foi para a frente e para trás, foi emendado e rasurado, copiado e exagerado. A Itália, um dos três países europeus com mais fumadores por quilómetro quadrado, já legislou entretanto e nós nada.
Hoje, porém, o "Diário de Notícias" antecipa o futuro diploma que, em primeiro lugar, não é… bem um diploma legal. É um conjunto de artigos propostos para acrescentar à lei 22/82, já que o governo de gestão está impedido de legislar de raiz. Recordo que na proposta antecipada em Novembro, ficavam mais explícitas algumas regulamentações já existentes: nomeadamente a proibição de fumar em todos os transportes públicos, a extensão da interdição aos estabelecimentos de restauração, mesmo os que possuam salas de dança (lá vão as discotecas!), e aos locais de trabalho fechado. Nos estabelecimentos de ensino e de saúde, as excepções acabariam e não haveria corredores ou salinhas escondidas que valessem aos fumadores inveterados. O fumo tornar-se-ia uma actividade de ar livre ou privada, reservada ao remanso do lar.
Dizia eu então que o DN antecipou (aliás num belíssimo trabalho jornalístico) o diploma que foi sendo cozinhado no Ministério. E chegaram as surpresas.
Primeiro balde de água fria: escudando-se na definição de governo de gestão, o executivo lamenta não poder ser mais incisivo. Mesmo assim, receia que o Presidente da República (PR) não promulgue a nova/velha lei e que argumente que se trata de política de fundo. Não acredito que o PR o fizesse, nem subscrevo a tese de que se trata de um diploma de pendor ideológico. É uma lei de saúde pública, que não choca com as diferentes interpretações partidárias para a área da saúde. Aliás, seria curioso verificar se algum partido político terá coragem de se mostrar publicamente contrário a esta ou qualquer outra lei anti-tabagista.
Segundo balde, este bem mais gelado: as tabaqueiras foram chamados ao processo e naturalmente colocaram reservas. Não deixa de ser irónico que sejam elas a invocar o direito inalienável do indivíduo à liberdade. Entendamo-nos: não estamos a falar de uma grave repressão dos direitos civis quando o Estado explica ao cidadão que não deve fumar em público porque o seu cigarro está a matar lentamente o vizinho. Tenham paciência!
As tabaqueiras propõem a separação de espaços, sobretudo nos locais de restauração: áreas para fumadores e áreas de não fumadores. Da minha parte, não teria especiais reservas com essa distinção se me garantissem que a divisão entre os sectores é estanque. Mas ela não é. Uma rede de pizzarias chega ao cúmulo de separar os fumadores dos não fumadores através de um estante de madeira, de 1 metro de altura! Como se o fumo chegasse àquela barreira e voltasse para trás.
Terceiro balde: afinal, a proposta ventilada em Novembro terá sido alterada. O governo deixa à consideração dos proprietários de restaurantes, discotecas e afins a interdição, ou não, dos cigarros. E se se confirmar este infeliz artigo, a lei perde grande parte do seu impacte. É certo que estipula (pelo menos, por enquanto. Daqui a quinze dias, se calhar nem isso!) que, nos locais de trabalho, as zonas de fumo só são autorizadas se forem hermeticamente fechadas. E o fumo fica interdito em locais de visita obrigatória (hospitais, repartições, escolas, transportes, prisões – neste último caso, confio, os leitores do Ecosfera não deverão ter nada a temer!).
Em Novembro, Morais Sarmento (citado no artigo do DN) já deixara um aviso: não é preciso saltar mais do que as pernas. Queria o ministro dizer que uma lei preventiva, mas não muito severa, já bastava. E esta, ao contrário da lei italiana, nem sequer prevê a vigilância, pelo que tudo indica que o panorama não se vai alterar por aí além.
Tenho para mim que a moralidade só pode ser apreciada na íntegra: uma coisa é moralmente errada ou não é. Não pode ser ligeiramente imoral. Se todos admitimos que o fumo passivo provoca mal-estar e provavelmente sequelas físicas, não estaria na altura de avançar em frente e em força?
Um último dado para o ministro Morais Sarmento em jeito de remoque à noção do salto e do tamanho das pernas: de Novembro a Janeiro, nestes dois meses em que o Ministério da Saúde analisou e debateu a lei, morreram mais 2500 portugueses com doenças relacionadas com o consumo do tabaco (dados da OMS, 2003). Para estes dois milhares e meio, o salto já foi curto…

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente poste. Um abraço e bom fim de semana. OLima (ondas.blogs.sapo.pt)

Gonçalo Pereira disse...

Obrigado pelo feed-back e pelas palavras elogiosas. Um abraço

Anónimo disse...

Bom dia,Gostaria de pedir-lhes que divulguem quanto possivel o site no-smokezone.planetaclix.ptEste indica estabelecimentos em Portugal onde existem lugares para não-fumadores (restaurantes, hoteis, etc). tem um concurso, estatisticas, noticias e os estabelecimentos que tenham lugares para não fumadores podem anunciar aqui gratuitamente.obrigado pela atenção,saudaçoes cordiais,Artur Correiahttp://no-smokezone.planetaclix.pt

Gonçalo Pereira disse...

Está feito, Artur.