Acabo de escutar o noticiário e ouvi pela enésima vez o comentário mais irritante da longa lista de lugares comuns que o "cidadão de rua" usa para descrever cenários políticos. Não foi o "isto nunca esteve tão mal". Nem sequer "o que os políticos querem é poleiro". Dizia um transeunte, identificado sumariamente no rodapé da estação televisiva como "cidadão", que a "culpa (na circunstância, era do Caso Casa Pia) é só dos jornalistas". Pergunto-me de onde vem esta hostilidade, esta desconfiança. Terá algum destes "cidadãos de rua" noção dos constrangimentos inerentes a um dia de trabalho numa redacção?
Carvão para a fornalha - é o que fazemos diariamente. Não me ocorre melhor metáfora do que esta: um maquinista num velho comboio a vapor, alimentando a fornalha às pazadas de carvão, com a noção de que depois desta, seguir-se-á outra, sempre outra. A fornalha nunca descansa. Exige sempre mais carvão. E o maquinista não pode falhar. Um jornal alimenta-se de notícias. Custam mais, custam menos. A fornalha tem de arder e, no dia seguinte, parte-se do zero outra vez. Não é possível deixá-la meio cheia para o dia seguinte. Ela exige carvão fresco, porque esta matéria-prima é rapidamente perecível.
Terá este cidadão (e outros) a noção dos constrangimentos produtivos de um jornal? Terá ele a ideia da dispersão temática a que um jornal obriga alguns dos seus repórteres? De segunda a domingo, começa-se com alhos e termina-se com bugalhos. Parte-se do zero a cada manhã. Meia dúzia de horas para apreender um tema complexo, que porventura entretém o mesmo investigador (no caso das histórias de ciência) há décadas, e três mil caracteres para simplificar o que, por vezes, não tem simplificação possível.
E os constrangimentos relacionados com o tempo? O tempo é sempre escasso. Qualquer jornalista tem noção, como um velho cábula de liceu, de que se tivesse tido mais um dia para estudar a matéria, a notícia teria sido mais completa, mais abrangente, mais justa. Mas a fornalha precisa de carvão. Um número certo de pazadas por dia. Melhor ou pior alimentado, um jornal tem de ser publicado regularmente.
E as fontes que, sobretudo nos fechos, parecem nunca estar disponíveis? E as bibliotecas que encerram a horas criminosas? E a pressão dos pares, que vigiam o trabalho com uma minúcia de Sherlock Holmes, espreitando falhas, analisando textos fragmentados com recurso a uma lupa que tudo aumenta e tudo distorce.
Num jantar ocorrido esta semana, um velho amigo, trapaceiro como poucos mas justo e com uma capacidade de trabalho invulgar, barafustava com a classe jornalística. Há anos que ele mudou de trincheira e é hoje assessor institucional. Julga o esforço jornalístico com uma balança algo injusta, própria de quem sabe o que o trabalho de um repórter custa, mas ao mesmo tempo de quem sente que caminhamos para conteúdos muito standardizados de jornal para jornal. "Ninguém investiga, ninguém procura nada fora do ordinário. Ficam à espera das pastinhas de imprensa. E ainda fazem perguntas cujas respostas encontrariam se tivessem lido a segunda página do documento. Que geralmente não lêem". O rol de queixumes prolongou-se. Nem por um segundo foram encontradas atenuantes nos constrangimentos inerentes ao trabalho dos ex-colegas. Ao mudar de equipa, foi-se também a memória do que custa alimentar este monstro ingrato e sempre faminto, que é um jornal.
Cometem-se erros diariamente? Sem dúvida. Há jornais nos escaparates que nos envergonham? Há, sim senhor (basta atentar na história da "Grande Reportagem" de amanhã, sábado, para nos indignarmos com a administração do jornal "O Diabo"). Há profissionais incompetentes? Naturalmente. Mas serão estas faltas suficientes para julgar toda uma classe e todo um esforço colectivo? Na minha opinião, não.
Sempre que tenho um "post" preparado sobre este ou aquele jornal, esta ou aquela falha, lembro-me da forte imagem do maquinista, suando, colocando pazadas numa fornalha que nunca dorme. E que exige diariamente mais carvão. Com boa ou má matéria-prima, ela tem de ser alimentada. Lembrem-se disso.
1 comentário:
Obrigado pelo feed-back, Hugo. Não concordo, mas respeito. Gonçalo
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