A intervenção da Greenpeace e da Quercus, na semana passada, no porto de Matosinhos foi, na linguagem dos profissionais dos media, uma «bomba». Rasgou os tradicionais obstáculos colocados nas redacções, satisfez valores-notícia facilmente adivinháveis e foi por isso amplamente divulgada. Como resultado natural, o seu impacte (positivo ou negativo, consoante a lupa que o examina) foi bastante mais amplo do que o normal. A intervenção foi posteriormente objecto de discussão nos supermercados da nação, figura de estilo tradicional para simbolizar essa hidra de mil cabeças (nem sempre pensantes) que é a opinião pública.
Do muito que li e ouvi, e com o distanciamento favorável de alguns dias, afigura-se essencial separar a acção propriamente dita de um eventual resultado político que ela visaria. Não tenho grandes dúvidas de que, no seio das duas associações ambientalistas, esta acção, tal como a desenvolvida com o cargueiro Aegis em 2000, não visava uma mudança política imediata. Nem poderia visar. Um governo que cedesse a curto prazo e, perante um acto que, apesar das atenuantes, foi clandestino e fora da lei, assumisse a decisão de fiscalizar melhor todas as madeiras importadas estaria a cometer hara kiri.
Acções como esta caracterizam-se essencialmente por serem disruptivas da ordem pública, por serem breves e muito fechadas no tempo. Apelam ao valor-notícia "sensacional" e têm o condão de se revestirem de enorme simplicidade programática aos olhos de quem a julga: fazemos o acto X porque queremos impedir a ilegalidade Y! Em investigação recente, chamei a este tipo de eventos «acções dramáticas». A Greenpeace é famosa em parte pela sua mestria na sua condução. A Quercus tem periodicamente demonstrado notável capacidade de as organizar também.
Ora, pela natureza da sua concepção, a acção dramática é um grito de revolta. A divulgação do seu programa é o seu fim único. A amplificação do protesto é o único desejo dos seus promotores. Por outras palavras, a abordagem de Matosinhos cumpriu plenamente o seu objectivo a partir do momento em que as televisões iniciaram «directos» daquele porto nortenho e os jornais recuperaram o tema da importação ilegal de espécies protegidas.
Especulemos. Teria algum dirigente da Quercus ou da Greenpeace a ilusão de que o governo português se pronunciaria sobre o tema, prometendo mais intervenção ou rebatendo as acusações ambientalistas? Duvido. As duas associações (uma vez mais, a Quercus demonstrou que tem toda a capacidade para funcionar esporadicamente como base de apoio local da Greenpeace, circunstância que, em 1992, no caso Metalimex tinha ficado bem patente!) impuseram o tema na agenda, evocaram a sua importância e iniciaram um debate. É pouco para tanto aparato? Sendo assim, pergunta o leitor, porque não o fizeram pela via tradicional, com um comunicado e um anúncio de um estudo sobre importações de madeiras ilegais? Simplesmente, acredito eu, porque o acto mais difícil para uma ONG é precisamente impor um tema na agenda, no seu próprio timing , nos seus próprios termos e alicerçado num caso público da sua escolha. Consegue-o raramente. E, pela experiência, a forma mais acessível é a encenação de uma acção dramática tão ao gosto dos jornais.
Não julgo nenhuma das ONG com severidade pelo golpe temerário que prepararam. Louvo o empreendimento e a capacidade de empenho pela causa. Temo, no entanto, que o futuro se traduzirá em importações crescentes de madeira brasileira - sem controlo nem travão.
Portugal é um porto de entrada de madeira - legal ou ilegal - na União Europeia. Os serviços alfandegários e a guarda costeira nacionais lidam com gigantes madeireiros poderosos. Nem comparo a desproporção à lenda de David e Golias porque aparentemente David ainda tinha uma funda, logo uma hipótese em cem. Neste caso, não creio que, nos próximos anos, o porto de Matosinhos deixe de receber as inúmeras remessas de madeira de origem duvidosa. O investimento em fiscalização dilui-se perante a enormidade da tarefa. É difícil e moroso provar que uma árvore já abatida foi em tempos protegida (em 2000, no caso do Aegis, o ICN divulgou o resultado das suas análises quase 20 dias depois!). Por isso, compreendo e aplaudo o grito de revolta da semana passada em Matosinhos.
E não deixo de lembrar que é absolutamente desmotivante verificar que, desta vez, perante uma crítica tão objectiva como a que fizeram a Quercus e a Greenpeace, o Ministério do Ambiente não tenha sequer recolhido amostras em Matosinhos, como fizera há cinco anos. Pelos menos na altura fingiu que cuidava do problema.
1 comentário:
Defender as madeiras exoticas e o equilibrio da Amazónia e das florestas tropicais é fundamental.Mas não olhemos só para os troncos de madeira exótica que nos entram por mar e nos esqueçamos da nossa floresta mediterrânica/Atlântica de caracteristicas unicas e em risco de se tornar num deserto . Mesmo as manchas supostamente protegidas são paulatinamente arrazadas, e quando os cidadãos alertam as autarquias estes escudam-se falando em "actos de gestão florestal". É preciso actuar a nivel local e que as acções da GreenPeace sirvam de inspiração.
Enviar um comentário