Diz o fisioterapeuta enquanto vai castigando a contractura com massagens vigorosas: "Sabe, isto dos incêndios é uma grande vigarice". O sotaque beirão não engana. O carinho pela floresta, a "mata" como lhe chama, também não. É homem que aprendeu a tirar da terra o que de melhor ela tem. Gosta de árvores e plantas não pelo prazer intrínseco de as observar, mas por saber que as pode utilizar sem estragar o ténue equilíbrio entre o homem e o meio envolvente.
"Há trinta anos, na região de Viseu, os incêndios atingiam cinco, dez hectares. Eram extintos, no máximo, ao fim de um dia. Não era esta barbaridade." Sorri o paciente, entre esgares de dor. Imagina-se no papel de Livingstone explicando o básico aos indígenas. "Também não havia esta desertificação, este êxodo de pessoas para o litoral". A guinada violenta da mão na zona lesionada trá-lo de volta à realidade.
"- E isso, que diferença faz?
- Sem pessoas para vigiar a floresta, os incêndios propagam-se sem detecção.
- Ai acha? E quem os ateia? O divino espírito santo?"
Martirizado na marquesa, o paciente introduz a estatística, argumento matemático infalível para toldar discussões e dar a entender que se domina a informação na ponta da língua. "O último relatório da Direcção-Geral de Florestas estima apenas em 13% a percentagem de fogos postos em Portugal. Como vê, há muitos outros factores que contribuem para os incêndios."
O fisioterapeuta demonstra algum fúria, sintoma preocupante para quem está a lidar com músculos e tendões alheios. "Acho esses números fascinantes. Para mim, só quer dizer que, em cada cinco incêndios registados, eles só conseguiram encontrar culpado num!"
"- Então e as causas naturais? E os descuidos – o cigarro, o fogareiro do pic-nic, as queimadas!…"
"Acontecem, amigo, acontecem. Mas raramente. Não são responsáveis por 90% dos incêndios em Portugal. Querem convencer-nos que o fogo em Portugal se explica pelo Sol a incidir no fundo de garrafas?"
"- Então, para si, os incêndios têm mão humana?", pergunta o doente, com alguma hesitação.
"Com certeza. E até lhe digo outra coisa: aumentam na proporção directa dos subsídios atribuídos a corporações de bombeiros e a empresas fornecedoras de serviços e materiais para combate a incêndios!"
"E as matas que não são limpas? E os caminhos que, sem cuidados, são obstruídos e dificultam o combate? E as monoculturas de resinosas, que se tornam autênticos barris de pólvora", insiste o doente, esquecendo por segundos a zona inflamada.
"Você conheceu o interior há trinta anos?", pergunta o fisioterapeuta, carregando anormalmente fundo na zona lesionada. "Só havia pinheiros. Os eucaliptos são recentes, mas os pinheiros têm séculos. E não ardiam mais por isso! Não, caro amigo, os incêndios aumentam na proporção directa da importância que lhes concedemos e do dinheiro que há para o combate."
"- Bela lógica, essa!", contrapõe, contrariado, o paciente.
"- Mas é verdadeira. Aliás, é bem conhecido que os problemas sociais aumentam na proporção directa do número de pessoas que existem para lidar com eles e do dinheiro direccionado para os combater. Com os incêndios, é exactamente assim. Há um número elevado de pessoas envolvidas no combate, de meios requisitados para lutar contra o fogo, de interesses de sectores associados ao flagelo dos incêndios. Sem incêndios, a sua existência perde justificação. Não me custa a acreditar que alguns, ou muitos, ateiem incêndios, os deixem deflagrar e só depois os combatam! É a economia a operar na nossa floresta!"
A sessão de tratamento termina. Menos certo das suas convicções, o paciente vai praguejando entre dentes. No gabinete de fisioterapia, acreditem, também se escutam lógicas relevantes. Entre a lesão ainda não tratada e a força dos argumentos contrários, saí de lá mais combalido do que entrei…
2 comentários:
É, sem dúvida, uma lógica perturbadora... pela ordem de ideias que ela encerra, os recentes incêndios até poderiam ser encarados como uma forma de pressionar os novos governantes, fazendo-os distribuir verbas antes da chegada do Verão.
Nem mais...
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