CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
quarta-feira, dezembro 24, 2014
segunda-feira, dezembro 15, 2014
segunda-feira, dezembro 08, 2014
O sábio Peyradon/Peradon morreu na primeira página
CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
sexta-feira, novembro 21, 2014
Coragem e cobardia em versão real
A estupenda
reportagem que Ronaldo Ribeiro e Maurício de Paiva assinam na edição deste mês da NationalGeographic presta
tributo ao esforço e ousadia das autoridades e cientistas brasileiros que
decidiram submeter os restos mortais do rei Dom Pedro IV (Dom Pedro I do
Brasil) ao escrutínio forense. Da investigação, já resultou uma tese de
mestrado de Valdirene Ambiel, que estuda agora com mais profundidade os
resultados no âmbito do seu doutoramento. Como boa cientista que é, Valdirene
partiu para a investigação sem preconceitos nem ideias feitas. Os resultados
falariam por si, sem mitos nem carga ideológica. E a reportagem reflecte as
virtudes e defeitos do primeiro imperador do Brasil, sem que com isso os
alicerces da nação brasileira tenham baloiçado.
Uma das
(des)vantagens de trabalhar nesta revista há treze anos é a memória acumulada,
uma espécie de mochila que nunca sai das costas. Enquanto lia o relato do
Ronaldo sobre a investigação em São Paulo, a minha mente flutuou
momentaneamente até ao ano de 2006 e à cidade de Coimbra. Tínhamos então um
acordo com a mais extraordinária antropóloga forense da academia portuguesa, a
professora Eugénia Cunha. Após meses de diligências administrativas e de
negociações dolorosas para obter financiamento, Eugénia Cunha teve finalmente
autorização para abrir o túmulo de Dom Afonso Henriques, primeiro rei de
Portugal, e conduzir uma moderna investigação forense. O túmulo não era aberto
desde o reinado de Dom Miguel, no século XIX, e Eugénia Cunha, como Valdirene
Ambiel, não excluía nenhum cenário. Seria o rei alto como sugeriam as lendas ou
baixo para os padrões actuais? Poderiam a sua dentição e constituição óssea
revelar pistas sobre a sua alimentação e os seus hábitos de vida? Teria mesmo
sido ferido em combate e guardaria o seu esqueleto provas dessas lesões? Quais
seriam as marcas que 45 anos de reinado teriam deixado no corpo do velho
monarca? Mais importante do que qualquer outra questão: teríamos finalmente
provas de que as urnas da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz guardavam
efectivamente os esqueletos de Dom Afonso Henriques e de Dona Mafalda? É que
nem isso está garantido.
Muitas coisas
correram mal naquela semana de Julho de 2006. Montou-se um circo mediático
ávido de informação e que, numa nota muito pessoal, ameaçava romper a nossa
ideia de exclusivo. Um jornal de referência fez queixa ao presidente do IPPAR
de que era inaceitável conceder "acesso exclusivo a uma publicação
estrangeira" (palavra!) que, ainda por cima, só publicaria a reportagem
meses depois. O nosso repórter no local, o António Luís Campos, não se
atemorizou e recuou um passo para captar em filme a agitação mediática em torno
de um projecto forense. Todos os meios reunidos pela antropóloga estavam a
postos para a abertura do túmulo às 17 horas.
Entretanto, chegou
o balde de água fria. A tutela voltou atrás e proibiu a intervenção. O IPPAR
disse que nunca autorizara, mas nós vimos um documento formal de autorização. Sussurrava-se
que a ministra Isabel Pires de Lima ficara pessoalmente ofendida por não ter
sido convidada. Os argumentos foram tontos e precipitados. Os especialistas da
Universidade de Granada que tinham participado na abertura do "túmulo de
Colombo" nem queriam acreditar na carga ideológica daquele dia. A máquina
burocrática defendeu-se com burocracia e ficámos todos sem conhecer uma página
importante da nossa história.
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Imagem inédita de António Luís Campos. A antropóloga Eugénia Cunha desdobra-se em telefonemas depois de tomar conhecimento da recusa de abertura do túmulo. |
Nestes oito anos,
Eugénia Cunha já falou várias vezes com classe e elegância sobre a recusa.
Catalogou-a como um acto de medo, de receio pelas respostas que estejam
contidas na urna de Coimbra – receio até de que tenhamos prestado tributo a um
mito que, vistas bem as coisas, era tão humano como qualquer um de nós.
Cairia o regime se
se descobrisse que o primeiro rei de Portugal tinha a altura do Lionel Messi,
que coxeava ou que morrera de uma doença moralmente censurável? No Ministério
da Cultura, pensou-se que sim.
Portugal caminha
para o seu 900.º aniversário, mas ainda olha para páginas da sua história como
um adulto que censura a leitura de passagens de um livro aos seus cidadãos com
medo de que ele contenha cenas moralmente censuráveis. Enquanto não chega o
glorioso dia em que poderemos saber mais sobre o primeiro rei de Portugal,
deliciem-se com o que a ciência brasileira descobriu sobre o primeiro imperador
tropical!
sábado, novembro 08, 2014
Um crime nunca solucionado
![]() |
Rebelo Carvalheira, de camisola clara, em primeiro plano. Fotografia retirada daqui. |
Calhou passar esta semana na
Rua Carlos Mardel, no coração de Lisboa, a meia-dúzia de passos da Alameda Dom
Afonso Henriques, da Rua Guerra Junqueiro e das lojas sumptuosas onde o risco
de síncope aumenta à medida que nos informam dos preços em vigor. Nesta
transversal pacata, contudo, só há comércio tradicional. Pequenos cafés,
cabeleireiros, farmácias, uma resistente loja de ferragens – um espelho do
comércio repetitivo e sofrido de Lisboa. E, no entanto, as ruas guardam memórias
durante gerações. Sobretudo dos traumas.
Colegas de jornais de outros
tempos contaram-me que nesta rua morreu um dos nossos. Alguns nunca mais
conseguiram passar por aqui, evitando-a discretamente, sem uma razão palpável.
Outros nunca evitaram uma olhadela para o número 117, para a fachada, agora
mais gasta, e para as janelas onde decerto vivem agora famílias mais felizes.
Foi aqui que morreu brutalmente, em Junho de 1983, Rebelo Carvalheira, o “Recas”
como a equipa de “A Bola” o conhecia. E isso ficou gravado na memória dos
jornalistas da época.
Nascido Em Angola em Nine, trabalhara no Banco Comercial de Angola antes de a seta do cupido jornalístico o viciar para sempre. Trabalhou em jornais angolanos – no “ABC” que revelara Roby Amorim, e no “Província de Angola”, onde chegou a chefe de redacção depois da Revolução de 1974. Foi correspondente em Luanda de “A Bola” e, um dia, foi convidado a fazer parte da equipa de Vítor Santos na Travessa da Queimada. De adjectivo reticente, era um jornalista tarimbado, daqueles que não falhavam serviços, que cumpriam sempre as missões. No Sporting, João Rocha respeitava-o e, normalmente, guardava para ele e para “A Bola” alguma informação exclusiva – a pequena notícia de que se fazem os jornais.
Na madrugada do dia 3 de
Junho, sexta-feira, Rebelo Carvalheira despediu-se dos colegas no jornal à uma
hora da madrugada. Carlos Alberto Alves, colega em “A Bola”, conta (aqui) que
estranhou o silêncio, atípico nele. «Achei-o muito esquisito no jornal,
pouco falava, ao invés do que era habitual.»
Carvalheira folgava no sábado,
dia 4, e, para domingo, tinha-lhe sido atribuída a reportagem de um jogo do Boavista com
o Salgueiros no Estádio do Bessa. Planeava seguir para Famalicão na manhã
seguinte, onde morava a mãe. Mas nunca lá chegaria.
No Bessa, o repórter Simões Lopes
foi o primeiro a notar a ausência do colega. Descansou o espírito, pensando que
talvez Carvalheira tivesse escolhido outro ponto do estádio para ver o jogo.
Debalde. O jogo começou e acabou e, do repórter, não havia sinal. Não era
habitual no Rebelo Carvalheira. Informou-se a chefia de redacção em Lisboa na
noite de domingo e Vítor Santos temeu o pior. Esperou ainda essa madrugada,
«sem conseguir pregar olho», como contou a Neves de Sousa do “Diário de
Lisboa”, mas, na manhã seguinte (segunda-feira, dia 6), face ao continuado
silêncio do colaborador, informou a polícia.
Acompanhada pelo marido da telefonista
de “A Bola”, velho amigo do jornalista, e por um sobrinho de Carvalheira, a
equipa policial arrombou a porta do apartamento e encontrou um quadro dantesco.
O jornalista jazia, sem vida, assassinado. Fora agredido com uma garrafa de
vidro no crânio e o resto do corpo mostrava sinais de agressões continuadas. A
perícia posterior apurou que o homicídio ocorrera provavelmente na própria
sexta-feira. Os salpicos de sangue indiciavam uma luta feroz pela
sobrevivência.
Férteis em boatos e
semi-verdades, as redacções exploraram várias hipóteses. O apartamento já fora
assaltado no passado. Teria Rebelo Carvalheira entrado à hora errada em casa? O
seu passado em Angola foi esmiuçado: sem pudor, houve quem associasse o crime
ao tráfico de diamantes e a informação que o jornalista guardaria desde os
tempos de Luanda. O seu estilo de vida solitário (o eufemismo da época), sem
companheira, foi também questionado, até porque o corpo fora encontrado seminu.
Na rua, entretanto, desaparecera o seu Honda Civic (de matrícula FR-64-04), bem
como alguns objectos pessoais.
Em 31 anos, nunca se descobriu
a identidade do assassino de Rebelo Carvalheira, morto aos 47 anos, numa rua
pacata de Lisboa.
sábado, outubro 25, 2014
Uma peça do "Tesouro de Vigo"
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Revista "Ilustração", 257, 1936 (a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
É um recorte singular.
Atípico mesmo. Não encontro nada parecido nas páginas da imprensa portuguesa do
início do século XX sobre a representação de naufrágios, do valor da sua carga
e da necessidade da sua conservação. Foi publicado no número 257 da revista
“Ilustração” [não confundir com a “Illustração Portugueza”, entretanto já
extinta], em 1936.
Fundada dez anos antes,
a “Ilustração” contou com alguns dos mais brilhantes intelectuais da sua época
– Brito Camacho, Ferreira de Castro, Eugénio de Castro, Jaime Cortesão ou
Aquilino Ribeiro escreveram ali; os jornalistas Norberto Araújo, Reinaldo
Ferreira e Mário Domingues assinaram também páginas memoráveis de crítica e
reportagem. Entre estes vultos, pontualmente, escreveu Joaquim Gomes Monteiro,
por norma sob o pseudónimo Sérgio de Montemor. Assim acontece neste artigo
sobre os lendários tesouros de Vigo, sepultados no mar duzentos anos antes e
desejados por gerações de caçadores de tesouro.
Há duas circunstâncias
que me agradam nestas páginas sobre a proto-arqueologia subaquática. A primeira
é uma gravura ingénua, mas representativa, de um homem com escafandro em
trabalhos de reparação naval, submerso e apoiado por uma embarcação à
superfície. Ainda não tinha visto uma representação gráfica desta natureza sobre
os notáveis escafandristas do início do século XX.
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Revista "Ilustração", 257, 1936 (a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
A segunda novidade é o
tom do artigo. Vive-se em 1936 ainda sob o estigma do tesouro, da recolha de
curiosidades, empilhadas em gabinetes ou museus, sem critério que não fosse o
gosto do coleccionador. Quando as campanhas arqueológicas são noticiadas na
imprensa de massas, produzem relatos ingénuos, ideológicos, que caracterizam os
achados em função do seu valor para a manutenção de mitos sobre a
nacionalidade, a nobreza das gentes portuguesas ou os episódios da grande
história. Joaquim Gomes Monteiro, em contrapartida, dedica o artigo à
condenação dos caça-tesouros.
Logo a abrir as
hostilidades, regista que «a arte de roubar debaixo de água atingiu uma tal
perfeição que, para os mergulhadores piratas, assaltar um navio afundado e
sondar-lhe os mais ocultos escaninhos é tão fácil como arrombar os cofres de um
banco».
Mais à frente, prossegue
a condenação: «Assim como aparecem na terra ladrões e bandoleiros que levam a
efeito as mais atrevidas proezas, aparecem também no mar aventureiros do mais
elevado quilate que arriscam mil vezes a vida para a tornarem agradável ao
menos uma.»
O artigo é igualmente
curioso porque inventaria as sucessivas tentativas de recuperação de um espólio
alegadamente perdido por dez galeões de Felipe V provenientes do México e
afundados pela frota inglesa. Em 1936 – como hoje –, discutia-se o que
efectivamente estaria escondido sob a superfície e proliferavam teorias. O mito
do “tesouro de Vigo” manteve-se latente, alimentando páginas delirantes como as
de Robert Charroux (que garantia por exemplo a presença de astronautas precoces
no planeta!!!), entre outras loucuras. Um teatro radiofónico da Emissora Nacional em 1963, dedicado precisamente à história dos galeões afundados, sugere a durabilidade do mito na consciência colectiva (ver aqui) em Portugal e em Espanha.
Na verdade, talvez
tivesse valido a pena ler o parágrafo final de Joaquim Gomes Monteiro na
“Ilustração” de 1936: «E daí – quem sabe? – é possível também que qualquer
empresa se lembre de tentar a proeza, com todas as autorizações necessárias, e,
ao atingir a jazida do valioso braço afundado, dê apenas com o sítio onde o
tesouro deveria encontrar-se... Pelo que fica exposto, os ‘salteadores do
mundo’ são mais expeditos nestes serviços.»
Tudo indica que o foram.
Tudo indica que o foram.
sábado, outubro 11, 2014
Eduardo Gageiro
"Em 1967, o papa Paulo VI visitou Fátima. A Associated Press encomendou-me uma foto da visita, algo que mostrasse o milhão de fiéis interagindo com o papa. Como às vezes acontecia, a malta da imprensa embebedou-se na véspera. Cheguei a Fátima uma hora antes da visita e fiquei em pânico. Como diabo chegaria eu à tribuna?
Improvisei. Vi um amigo da RTP que estava num poste, sobre a multidão, com a câmara preparada para filmar a deslocação do carro. Ele não me queria lá. Compreensivelmente — aquilo só dava para um.
Tanto 'chorei' que ele me deixou subir, com o compromisso de que me baixaria à passagem do carro.
Vem o veículo e o papa não pára de olhar para o lado contrário ao que me interessa. Improvisei outra vez. Desatei aos gritos: "Paulo! Paulo!" Sem pensar, o papa virou o olhar à procura do maluco que tanto berrava.
Clic! Já está! Fez-se a foto."
Eduardo Gageiro, hoje, na exposição "Rapaz de Sacavém, Fotógrafo do Mundo".
sábado, setembro 13, 2014
Um galardão em Washington
No auditório Grosvenor, em Washington,
sala nobre da National Geographic Society, cerca de duzentos congressistas
espalham-se pelas cadeiras disponíveis. Há um rasto indesmentível de história
naquele palco. Por ali têm passado os grandes cientistas do nosso tempo,
pensadores consagrados, exploradores indomáveis.
Neste mesmo palco, vi há quase uma década
a oceanógrafa Sylvia Earle comover-nos até às lágrimas, com uma palestra
inesquecível durante a qual propôs que a sigla SOS deveria ganhar novo sentido
e assumir o apelo “Save our Seas”. Ali vi também, em 2012, o especialista em
demografia Andrew Zolli discutir com uma franqueza desarmante os problemas da
Terra em 2050, se atingirmos o número populacional fatídico de 9.000 milhões de
habitantes.
Michael Nichols; J. Michael Fay; Paul
Nicklen; Enric Sala; Silvie Cousteau; Reza... A lista de palestrantes que ali
transmitiu aos membros da National Geographic Society as suas descobertas
empolgantes é quase interminável e, das poucas vezes em que ali subi para falar,
nunca esqueci a responsabilidade esmagadora do palco e do anfiteatro.
Nesta semana – que coincidiu com mais um
aniversário do 9/11 –, tive o privilégio de assistir a mais duas palestras
apaixonantes, enquanto lá fora se montava uma réplica em tamanho real de um Spinosaurus descoberto pelo paleontólogo Nizar Ibrahim, também
ele explorador-residente da NGS. O arqueólogo David Lordkipanize mostrou a
evolução das campanhas em Dmanisi (Geórgia), de onde têm brotado fósseis de
hominídeos desde o início do século. No final da palestra, com a humildade que
só os grandes costumam ter, o explorador-residente da NGS abriu um sorriso
quando soube que eu era português e gastou alguns minutos para me mostrar o
projecto do novo Museu Nacional da Geórgia, que conta com assinatura de um novo
talento da arquitectura portuguesa. Na véspera, um rapaz de 17 anos, Jack
Andraka, explorador-emergente da NGS, deixara o auditório boquiaberto com a
narrativa de como inventara, no seu quarto e depois num gabinete de
investigação, um novo método para detectar precocemente e sem custo o cancro do
pâncreas. Aos 15 anos! Como a minha colega dinamarquesa disse um dia depois,
“depois de o ouvir, acordamos com a desagradável necessidade de perguntarmos a
nós próprios o que fizemos para salvar o mundo”.
É neste auditório portanto, onde o peso da
história se corta à faca, que serão anunciados os vencedores dos prémios anuais
de criatividade jornalística da National Geographic Society. Em quase 14 anos
de trabalho, levámos sempre trabalhos a concurso – uns melhores, outros piores.
Recebemos menções honrosas e vimos consagradas verdadeiras obras-primas. Nunca
ficámos com a sensação amarga de derrota, como as equipas portuguesas de
futebol quando são espezinhadas nas competições internacionais. Distinguiram-se
sempre, e sem excepção, trabalhos melhores do que os nossos.
Desta vez, estou razoavelmente confiante.
Levámos a concurso três trabalhos que, com imodéstia (a modéstia em excesso é a
vaidade dos tolos), direi que se contam entre alguns dos melhores que
publicámos na edição portuguesa. Submetemos uma reportagem sobre a Amazónia, da
autoria de uma jovem-prodígio, Madalena Boto, que nos apresentara um ano antes
uma reportagem tremenda sobre um projecto de investigação na maior floresta do
mundo; submetemos uma ilustração da Anyforms, baseada em investigação de Rui
Castanhinha e Ricardo Araújo sobre um conjunto de ovos de dinossauro
descobertos na Lourinhã; e, por fim, apostámos no mapa-suplemento da Rota do
Românico para a rubrica de “Best Graphic”.
Categoria a categoria, os nomes são
anunciados. O auditório vai emitindo ruídos de satisfação a cada trabalho
exibido. Há verdadeiras gemas no ecrã da sala. Na categoria de “Best Simple
Page”, os ovos de dinossauro são escolhidos para o painel final, mas não
recolhem o prémio mais importante, atribuído à Polónia. Logo de seguida,
anuncia-se o vencedor da categoria “Best Graphic”: Portugal, com o mapa da Rota
do Românico.
Há projectos que nascem tortos e nunca se
endireitam; outros, em contrapartida, são harmoniosos desde o dia em que foram
concebidos. Este mapa foi, como os americanos costumam dizer, o perfect game, aquele dia raro em que o jogador de basebol consegue
fazer os lançamentos perfeitos de modo a excluir toda a equipa adversária. Em
Abril de 2013, fomos desafiados a conceber um projecto novo, capaz de
representar as principais características do estilo românico no Norte de
Portugal, sem nele figurar um monumento concreto. Poderia ter sido mais um mapa
com pendor cartográfico, à imagem de outros que já fizemos, mas a directora da
Rota sabia o que queria e não desistiu até chegarmos a uma solução inovadora.
Encontrámos no terreno uma equipa técnica
espectacular, com sensibilidade e sentido prático, capaz de dar respostas em
tempo útil e de dar feedback às
vezes doloroso, mas sempre rigoroso.
Contámos com uma equipa de ilustração
liderada pelo Luís Taklim, que cresceu a ver e a descodificar ilustrações da
National Geographic, e que assinou uma ilustração prodigiosa.
Tivemos tempo (um bem raro) e recursos. O
resultado foi este e está pendurado em muitas paredes por esse país fora.
Escrevo, aliás, a olhar para um, afixado na redacção.
Foi o primeiro galardão anual de produção
jornalística que a edição portuguesa da National Geographic conquistou na casa-mãe.
Gosto de pensar que não desagradaria aos arquitectos do século XII ou XIII
verificarem a durabilidade das suas obras na memória colectiva.
quinta-feira, agosto 28, 2014
Os lobos e o João
Nos 13 anos e meio que a edição portuguesa
da National Geographic já leva (num pouco mais de 160 edições), não escondo que
tínhamos uma obsessão desde o primeiro número. Se a revista é identificada
maioritariamente pela capacidade da sua fotografia de natureza, tínhamos
“obrigação” de mostrar, um dia, o maior carnívoro da nossa fauna terrestre em
imagens obtidas em ambiente selvagem. Algum dia teríamos de mostrar o
lobo-ibérico em território nacional, sem recurso a imagens de cativeiro, sem
engodos, domesticações forçadas ou outros truques. Só o lobo no ambiente
nortenho ao qual, teimosamente, a espécie se arreiga. Esse dia foi hoje, com a
publicação da revista de Setembro e eu não poderia estar mais contente.
A história desta reportagem, assinada pelo
fotógrafo notável que é o João Cosme, encerra também um longo capítulo de
tentativas que, apesar da boa vontade de outros nomes da fotografia portuguesa,
nunca chegaram a bom porto. Um dia, há quase dez anos, apareceram-nos sem
grandes explicações três/quatro imagens excelentes, mas desgarradas de qualquer
história. Tinham o mesmo valor que um fóssil de dinossauro retirado do contexto
paleontológico e vendido avulso no mercado: eram curiosidades com pouco valor
intrínseco.
Noutras ocasiões, debatemos se valeria a
pena recorrer a imagens de cativeiro para ilustrar ideias válidas e urgentes de
reportagem, procurando sublinhar que os valores de conservação associados à
espécie tinham mais urgência do que as necessidades jornalísticas. Debalde.
Pontualmente, chegava uma fotografia solta.
E a proposta ingénua de que, com ela, “fizéssemos alguma coisa sobre o lobo”. Vou
ganhando cabelos brancos (muitos, aliás) enquanto tento explicar que a construção
de uma reportagem é mais complexa do que isso. Exige um guião, por norma
desenhado antes da partida do terreno. Exige background científico. Exige planeamento. E, depois disso tudo,
exige sorte e dinheiro.
Na Primavera deste ano, com simplicidade
desarmante, como se anunciasse a previsão meteorológica, o João Cosme falou
connosco. Explicou-nos que acompanhava uma equipa do CIBIO no terreno, no Alto
Minho português, e que tinha captado fotografias... bonitas. Resumiu o projecto
científico que acompanhava e a proximidade tremenda de que beneficiava face aos
animais. Na voz, deixava transparecer a alegria de um contacto há muito
desejado porque, na ocasião, não era o João Cosme jornalista que falava. Era o João Cosme naturalista.
Admito que não acreditei à primeira. Afinal, como na fábula, já se gritara em vão pelo "lobo" no passado. Depois, vi a galeria. E desfiz compromissos assumidos (desculpa, Gonçalo!) para publicar a
reportagem na primeira ocasião disponível.
Cada jornalista é um caso e há
personalidades para todos os gostos. Já vi galerias banais apresentadas como se
se tratasse do espólio perdido de Cartier-Bresson. Já vi reportagens falhadas,
“totalmente” ao lado do guião inicial, re-empacotadas como um êxito tremendo da
perseverança. Já vi golpes de sorte, frutos esporádicos da deusa da fortuna,
transformados em odes ao planeamento. E depois há casos como o do João, que quase
pede desculpa por apresentar fotografias inéditas de lobo-ibérico.
Os leitores que nos acompanham nas redes
sociais e no nosso site terão paciência, mas, à moda de Sophia, esta é a
reportagem que eu esperava. E por isso, excepcionalmente, tê-la-ão de ler na
revista, no formato nobre para o qual ela foi construída, porque tão cedo não a
colocaremos em suporte digital gratuito.
Julgo que o trabalho incansável do João, e
a tremenda perseverança da equipa científica do professor Francisco Álvares, da
Helena Rio-Maior e demais especialistas que nos ajudaram neste empreendimento,
merecem-no.
sexta-feira, agosto 22, 2014
O poder de uma imagem
Adoro esta composição de Robert Clark sobre o desperdício alimentar anual de uma família
de quatro pessoas. A abundância que ela sugere resume toda a história. Faz lembrar uma fotografia
que também publicámos há uma década sobre todos os produtos derivados do petróleo
que temos em casa. Esta.
terça-feira, agosto 19, 2014
Já lá estive
Em 1995, tive um episódio como o que ontem aconteceu
ao Bruno Pires, do Diário de Notícias. Fonte bem colocada garantiu "pela
minha saúde" que um jogador não mudava de clube, eu escrevi e, no próprio
dia, vi-o entrar na sede do novo clube, agarrado à minha fonte. Por comodismo,
preguiça ou excessiva dependência das fontes, cometem-se erros destes. O Bruno
garantiu que o Nani "rejeitou o regresso" e viu-o chegar na própria
noite ao aeroporto de Lisboa. Acontece. Como sei que o dia de hoje vai ser
longo e que parecerá que a notícia foi lida por toda a população, aqui fica o
meu abraço (ainda não li o DN de hoje, mas imagino que o jornal tenha pedido
desculpa...)
quinta-feira, agosto 14, 2014
Rostos de uma equipa
Foi um trabalho de ourives, mas, modéstias à parte, julgo que este mapa
da Arrábida (lados A e B) vai ficar como documento relevante de descrição e
promoção da região.
É bem possível e legítimo que os leitores não tenham noção da quantidade
e qualidade de contributos envolvidos num projecto desta envergadura, mas é
obrigatório reconhecer que há aqui "dedo" de muita gente boa que
merece uma palavra de apreço pelas horas dedicadas a esta pequena loucura.
Da Anyforms
Design de Comunicação, que tem a extraordinária
faculdade de construir o mundo em 3D e de o tornar palpável para todos; do Luis
Quinta, que, 13 anos depois do primeiro
boneco, continua a trazer-nos fotografias incríveis; do Francisco Rasteiro, que
conhece os recantos mais improváveis da serra e, pior, enfia-se por eles
adentro; do Paulo
Rolão, que descreve o mundo como os
naturalistas do século XIX (até porque nasceu nesse século!).
Tivemos também um dream team de consultores científicos. O professor José
Carlos Kullberg partilhou horas da sua vida tentando ensinar-nos a geologia da
serra e sublinhando o carácter único de muitos geomonumentos; o professor
Carlos Tavares da Silva mantém o entusiasmo de sempre pelas descobertas arqueológicas
da região; os botânicos Dalila Espírito-Santo e Pedro Arsénio, que nos
obrigaram a olhar para o chão em vez de mirarmos sempre o céu; o biólogo Paulo
Catry; o João Afonso; a Bárbara Horta e Costa e o Emanuel Gonçalves; o Alexandre
Monteiro, especialista em arqueologia subaquática
e, mais importante e raro, um especialista que nunca se nega a partilhar o
saber.
Junte-se à equipa o Leitão Baptista e a Patrícia
Albuquerque Boléo Tomé. E a Helena
Abreu que manteve em harmonia toda esta
rapaziada.
A todos, o meu agradecimento!
domingo, agosto 10, 2014
O que viu José de Freitas da janela de um comboio chinês?
Num comboio que liga a cidade de Han-Keu a
Pequim, viajam dois passageiros invulgares. Nesta Primavera chinesa de 1964,
Mao ganha balanço para começar a Revolução Cultural, que terá lugar dois anos mais
tarde e deixará uma pegada sangrenta no legado do mentor da Longa Marcha.
O culto do líder já está presente em todas
as cerimónias públicas, mas não atingiu ainda a obsessão que marcará a China da
viragem de década. O regime foi finalmente reconhecido no Ocidente pela
desalinhada França de De Gaulle, mas os estrangeiros são raros por estas
paragens. Os vistos são cuidadosamente atribuídos e as visitas ao interior da
China rural são limitadas. Muitos chineses nunca viram um rosto europeu. Hoje,
porém, por circunstâncias acidentais, viajam dois passageiros especiais neste
lento comboio, que resmunga a 50 km/h, revelando uma paisagem monótona, arada,
amarelecida. «Tudo quanto a vista abarcava estava tratado, não havendo um
pedaço de terra que não fosse cultivado», escreveu mais tarde um dos
personagens da narrativa.
Os comboios chineses são um espelho
involuntário de uma nação em mutação. Pelos altifalantes, ecoam mensagens
polidas em mandarim, reflectindo os novos tempos: «A todos, boa-tarde e desejos
de boa viagem», recomenda a dado ponto uma voz feminina. «Seremos, durante algum
tempo, como uma família – e essa família terá de viver unida. Em cada
carruagem, se o considerarem necessário, poderá ser eleito um representante dos
interesses dos passageiros, que tratará directamente com o chefe do comboio (…)
Aconselhamos, para melhor vencer o tempo, passeios de ida e volta pelos
corredores de todas as carruagens do comboio. Isso só faz bem. Nas estações
onde o comboio demore mais de vinte minutos, todos podem sair e passear, não se
devendo esquecer a ginástica.»
Os dois passageiros não evitam o riso
perante a obstinação da mensagem. Mas efectivamente, à primeira paragem,
verificam, atónitos, como os seus companheiros de viagem abandonam as
carruagens e iniciam movimentos gímnicos descoordenados no cais. Com notório
exagero, o homem mais velho anota no seu caderno: «Lançou-se a propaganda da
ginástica nos mesmos moldes da propaganda do combate à mosca. E simplesmente o
povo obedeceu. (…) Creio que foi Mao que a aconselhou, (…) e Mao, com o seu
imenso prestígio, tudo consegue do povo chinês. Ele, como Confúcio…»
O português tem pouco mais de 50 anos.
Magro, decidido, quase calvo, está acompanhado por um oriental a quem vai
pedindo para traduzir as palavras em mandarim ou cantonês. Rabisca tudo
diligentemente no seu bloco de
notas. Chama-se José de Freitas, é enviado-especial do “Diário Popular” e está
na China há mais de uma semana. Ali permanecerá entre 6 e 22 de Abril.
Fotografias de José de Freitas retiradas de "A China Vence o Passado" Arquivo do autor |
A inglesa é mais nova – terá menos de 30
anos, na estimativa de Freitas. Bonita, chama rapidamente a atenção de todos os
passageiros na estação de Han-Keu, onde entra a bordo. Está pintada e isso,
nesta China normalizada de Mao, onde homens e mulheres trajam roupa azul e de
formatos indistintos, é uma novidade. Geram-se cochichos: mulheres com o rosto
pintado estão agora reservadas ao teatro. A jovem (que Freitas não identifica)
trabalha para a embaixada britânica em Pequim e acompanhara industriais do seu
país numa visita a uma siderurgia. Tal como Freitas, não aprecia viagens de
avião, pelo que preferiu o regresso por via férrea, mesmo que este lento
comboio chinês demore cerca de 36 horas a ligar as duas cidades.
Em breve, porém, os dois europeus terão
uma história incrível para contar.
NOTA DE RODAPÉ
Há duas maneiras de contar esta história,
como aliás normalmente acontece com todas as outras histórias.
Moisés Fernandes, especialista reputado em
história das relações diplomáticas entre Portugal e a China na segunda metade
do século XX, descreveu-a singelamente em notas de rodapé de dois artigos
recentes (aqui e aqui). Entre 6 e 22 de Abril de 1964, o jornalista José de Freitas, do
“Diário Popular” (DP), viajou pela China e publicou «artigos laudatórios sobre
o regime chinês». É verdade: Freitas era um apaixonado pela China e tinha
notórias simpatias pelo socialismo chinês. Na divisão empírica de temas pelos
redactores do jornal, cabiam-lhe normalmente as notícias e colunas de opinião
sobre o Oriente. Conhecia Macau e já publicara em 1941 “A China Antiga e Moderna”
na Biblioteca Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça. Era o mais sinólogo
dos jornalistas portugueses da década de 1960.
Diz igualmente Moisés Fernandes que a
viagem de José de Freitas, tal como a de Mário Rosa (também do DP) anos antes,
integrou-se no esforço de «certas correntes do regime português [para tentar]
persuadir Salazar a estabelecer relações diplomáticas com a China». A premissa
parece igualmente válida, embora a viagem de Mário Rosa fosse muito mais politizada do que a de José de Freitas. De todo o modo, em Janeiro desse ano de 1964, o
ministro Franco Nogueira informara o “New York Times”, em confidência, que o
regime ponderava esse passo e havia certamente interesse em mostrar boa vontade ao regime de Mao. A rápida decisão de reutilização das crónicas
jornalísticas de Freitas (publicadas em Maio) em livro, publicado em Julho com
o título “A China Vence o Passado” [Edições Cosmos], suporta a tese da
aproximação de simpatias entre Lisboa e Pequim.
Todavia, estas informações básicas –
verdadeiras, sem dúvida, e irrelevantes no quadro das relações entre os dois
países – não esgotam as excepcionais reportagens que José de Freitas assinou no
país de Mao Tsé-Tung. E é essa narrativa que vale a pena recuperar na história
de episódios do jornalismo português que ensaio neste espaço. Para isso, é
fundamental voltar ao comboio que se arrasta pela planície de Hopei.
FILIAÇÕES, FOTOGRAFIAS E INTÉRPRETES
Iniciado em 1963, o pedido de visto para a visita
profissional de José de Freitas à China foi deferido um ano depois – para lá da
inércia e desinteresse chineses por estas visitas, pesou seguramente o facto de
os dois países não terem à data relações diplomáticas. De Pequim, chegaram
pedidos de dezenas de fotografias do repórter e foi enviado um questionário com
perguntas indiscretas como a filiação política (vigiado em Lisboa e em Pequim,
Freitas respondeu simplesmente “republicano”). Recomendaram-lhe que nada
fotografasse sem autorização, mas a proibição não foi levada a sério: «Nas
fábricas, nas comunas, nas ruas e nas praças, nunca ninguém me impediu de
fotografar quanto quis.»
Foi-lhe imposto um “acompanhante
jornalista”, Choi Hong Seong, que serviu de intérprete e guia. José de Freitas
não era ingénuo. Filho de uma das lendas do jornalismo republicano da primeira
metade do século, Amadeu de Freitas, tinha noção do controlo a que estaria
sujeito ao longo da reportagem. Em Cantão, por exemplo, o guia que colocaram à
sua disposição anotava diligentemente… todas as perguntas que José de Freitas
colocava aos interlocutores chineses. Mas, tanto quanto se apercebeu,
«mostraram-me quanto quis e me foi possível ver», descartando «uma gigantesca
combinação» que pudesse ter sido feita entre as várias dezenas de
interlocutores que lidaram com ele. «Não tenho quaisquer razões que me permitam
julgar que não eram sinceros.»
Primeira página do "Diário Popular" de 7 de Maio de 1964 (a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Aos leitores, garantiu: «Visitei a China
como jornalista independente, alheio a quaisquer combinações, sem a
subordinação dos convites, exclusivamente com dinheiro do meu jornal.» Bem
documentadas, redigidas no tom pessoal e directo que fazia escola no “Diário
Popular”, as suas crónicas expressam as interrogações de José de Freitas sobre
o regime que o acolhia. Há passagens profundamente laudatórias do regime de
Mao, tal como ficaram registadas várias recriminações. «Durante a minha estada
na China», escreve a dado ponto, «deram-me sempre muito mais jantares do que
notícias».
A recriminação tinha razão de ser. Sem
dominar o mandarim, Freitas esteve sempre dependente das traduções de Choi.
«Dependia de Choi para comunicar com o mundo que me rodeava», reconheceu. E
José de Freitas preferia falar com o povo anónimo, espontâneo. Para isso, «não
há como o comboio para se ver alguma coisa de um país, principalmente para quem
viaja com a tarefa de o ver, de o compreender.» É por isso que o encontramos no
comboio de Hopei, procurando descodificar o país emergente.
UMA EXPLOSÃO
São cerca de quatro horas da tarde do dia
12 de Abril. O comboio marcha para Pao-Ting-Fu [mantêm-se neste texto a
toponímia tal como ela foi registada por José de Freitas]. Tentando recordar
todos os pormenores deste dia, o jornalista contou que não conseguia precisar
se o comboio já passara por Chekia-Tchuang, importante entroncamento
ferroviário entre as províncias de Xantung, no litoral, e Xan-Si, no Oeste.
Pela vidraça da janela do compartimento onde os dois europeus conversam, a
planície «estendia-se até perder de vista, sem a mínima elevação. O céu era
todo cinzento, uniformemente cinzento.» Num banco, o guia e intérprete de
Freitas dormita, num processo digestivo moroso, depois de ter comido laranjas e
um bolo de farinha branca, quase crua, com recheio de carne de porco. «Só em olhar
para o tal bolo se me revolviam as tripas.»
De súbito, a jovem inglesa chama a atenção
de Freitas para a paisagem. «Quase na linha do horizonte, não posso precisar a
quantos quilómetros de distância, formara-se uma nuvem mais cinzenta do que o
próprio céu cinzento, a destacar-se, com contornos nitidamente limitados,
claramente definidos. Tinha a vaga forma de um cogumelo.»
![]() |
Nuvem em forma de cogumelo na Sardenha, em Julho de 2014 Arquivo do Daily Mail |
Desde 1963 que se comentava nos jornais
internacionais que seria uma questão de tempo até a China desenvolver
capacidade militar nuclear. O regime soviético apoiara largamente os esforços
de Mao para dotar o país de armamento nuclear, lançando uma nova preocupação
para o debate sobre a proliferação de armas nucleares. É, naturalmente, possível que a
visibilidade pública do tema tivesse poder sugestivo sobre os dois passageiros
do comboio de Hopei.
«Dentro da própria nuvem havia laivos
negros», continuou Freitas. «Depois do cogumelo grosseiro, era uma cunha, como
se fora um triângulo suspenso no céu, para mudar de tamanho e tomar o aspecto
de uma bola achatada. Parecia que dentro da nuvem – no seio da própria nuvem –
havia uma força inteligente que a domava e afastava ou aproximava de nós, a
movia no espaço para um lado, para outro, dando-lhe sempre formas variadas e
singulares.»
A rapariga inglesa verbalizou o que ambos
pensavam:
– Que será aquilo? Que coisa estranha!
«Nem ela nem eu quisemos pronunciar as
terríveis palavras que igualmente, estou certo, nos acudiram aos lábios. O
estranho fenómeno, o cogumelo, o trágico cogumelo, estava agora cada vez mais
negro, raiado de preto. Depois agitou-se num vaivém e desfez-se. O espectáculo
singular demorara pouco mais de cinco minutos.»
Freitas ainda alvitrou que fosse uma
tempestade, mas faltava-lhe convicção e ambos decidiram não partilhar a
história com os companheiros chineses de viagem. «Longe de mim afirmar que
assisti a uma explosão atómica nas longas planícies da província de Hopei. Mas
se não era uma experiência nuclear – que seria aquilo?» Freitas guardou segredo
do que viu até voltar a pisar a Macau, onde confidenciou o avistamento «a quem
considerei que o devia fazer e a um amigo íntimo. O meu instinto, e nada mais,
aconselhou-me a não fazer qualquer referência ao caso enquanto estivesse na
China.»
EPÍLOGO
José de Freitas nunca soube ao certo o que
vira da janela do seu comboio em Hopei. Hoje, sabemos que as nuvens em forma de
cogumelo não se formam apenas na sequência de explosões atómicas. Elas podem
ser também resultado de erupções vulcânicas (não foi listada nenhuma para
aquela região chinesa em 1964), de colisões de meteoros com a Terra (não se
encontra nenhuma com estas características nas bases de dados internacionais),
de explosões industriais, na sequência de grandes incêndios florestais ou… em
tempestades muito particulares. Há poucos dias, o “Daily Mail” publicou a
história de como um relâmpago e uma tempestade violenta geraram um fenómeno
deste tipo na Sardenha (aqui),
alarmando a população local com uma nuvem em forma de cogumelo.
As quinze crónicas sobre a viagem à China
foram redigidas já em Lisboa e o “Diário Popular” começou a publicá-las, sempre
com destaque de primeira página, a partir do dia 7 de Maio e até ao dia 26. Ao
anunciar a série, o jornal dirigido por Martinho Nobre de Melo garantia que teria
sido muito fácil comprar na imprensa estrangeira uma série de artigos sobre a
nova China, mas que devia aos leitores uma perspectiva portuguesa sobre o país
de Mao e assumia o compromisso de oferecer nas suas páginas reportagens de
qualidade.
Num típico sinal dos tempos, Freitas não
hierarquizou o avistamento de Hopei na sua série de impressões sobre a China.
Apesar de não manter no relato uma ordem cronológica face aos locais visitados,
optou por guardar Hopei para o 12.º artigo, publicado no dia 21 de Maio. O
título, pouco claro e atípico num jornal que se vangloriava do seu jeito para
“manchetes” simples e claras, informava: “UMA EXPLOSÃO ATÓMICA PARECIA O
ESPECTÁCULO A QUE ASSISTI NA IMENSA PLANÍCIE CHINESA DE HOPEI.” É provável que
o próprio José de Freitas hesitasse em qualificar o que avistara. A peça foi
aprovada sem cortes pela Censura, tanto na versão jornalística, como no
capítulo do livro.
![]() |
Martinho Nobre de Melo, em caricatura do Sempre Fixe, 1932 (a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
Primeira página do "Diário Popular" de 21 de Maio de 1964 (a partir do arquivo da Biblioteca Nacional) |
Curiosamente, apesar de tudo apontar para
um fenómeno meteorológico, os olhares dos serviços de espionagem ocidentais
estavam de facto focados na China. Um memorando secreto da Special National
Intelligence Estimate, datado de 26 de Agosto de 1964, informa mesmo que a China
estava prestes a ganhar a corrida nuclear, tornando-se a quinta potência com
acesso à bomba. A suportá-lo, estavam as fotografias aéreas de dois sítios de
testes (relatório desclassificado aqui)
Meses depois, em Outubro, o mundo ficou de
facto a saber que a China realizara finalmente os primeiros ensaios nucleares.
Foi em Lop Nur, na distante Mongólia, que o regime de Mao testou, pela primeira
vez, a poderosa invenção de Oppenheimer. O “Diário Popular” optou por não
contextualizar nessa altura o avistamento de José de Freitas e só viria a
referir-se ao caso três anos depois, na edição do seu 35.º aniversário, em
Setembro de 1967. Num texto elogioso de Mário Ventura Henriques, José de
Freitas foi apresentado como o jornalista sagaz que tão habilmente escapou das
bombas em Gaza em 1956 (em episódio que espero contar aqui mais tarde) como
teve a sorte de estar no lugar certo em 1964, assistindo a experiências atómicas
chinesas!
Com o tempo, o potencial “furo”
jornalístico foi esquecido e nunca galgou as fronteiras portuguesas. Até hoje,
desconhece-se que fenómeno terão José de Freitas e a funcionária da embaixada
britânica em Pequim presenciado na planície de Hopei, a partir da janela de um
comboio. E esse mistério não explicado dá um sabor especial à saga de José de
Freitas no Império do Meio.
Ler também a Parte 2.
Ler também a Parte 2.
quarta-feira, julho 16, 2014
Adelino Cardoso (1934-2014), uma homenagem
![]() |
"Diário Popular", 22/09/1967 (a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
O jornalista Adelino Cardoso morreu
esta semana. Não há melhor homenagem a um jornalista recto, creio, do que
recordar uma das suas peças. Descrito frequentemente como literatura apressada,
o jornalismo consome textos como a locomotiva ingere carvão – processa-os;
publica-os; esquece-os porque a máquina infernal precisa constantemente de mais
alimentação e não guarda lembrança do carvão já queimado.
Durante a semana, Adelino Cardoso foi
recordado pela sua conduta irrepreensível no acompanhamento da actividade
parlamentar nas décadas de 1970 e 1980. Não duvido do que se escreveu. Mas há
um texto dele que me marcou mais. Foi escrito em Setembro de 1967 para o número
do 25.º aniversário do "Diário Popular".
Após oito anos de carreira noutros jornais, frustrado
pela prática que «o amodorrava à banca de jornais, onde pouco mais era possível
que amortalhar-me nas águas paradas do 'não vale a pena'», Adelino Cardoso
decidiu recomeçar do zero. Soube de um concurso para admissão de jornalistas do
Diário Popular e participou. «Há coisas que não se agradecem, mas se há alguma
coisa a que devo estar reconhecido é ao facto de o jornal ter aceite esse
pecúlio [uma experiência tarimbeira de oito anos sem encostos e sem referências
que não fossem as dos camaradas de ofício] como o único que de facto
interessava colocar na balança das minhas probabilidades», escreveu mais tarde.
Este texto intitula-se "Um
desafio a mim próprio" e é uma das mais pungentes homenagens ao jornalismo
da década de 1960 e às suas rotinas.
A fornalha do “Diário Popular” apagou-se
há muito. Adelino Cardoso foi um dos operários que melhor a alimentou. É essa a homenagem que lhe faço.
sexta-feira, julho 11, 2014
EMEPC, 2014
Escrevo este mês na “Espiral do Tempo” sobre a missão
de extensão da Plataforma Continental portuguesa.
«Nas salas de aula do Estado Novo, afixava-se um
cartaz peculiar. Sobre a superfície continental da Europa, sobrepunha-se a área
ocupada pelas províncias ultramarinas portuguesas, procurando sublinhar que,
juntas, a metrópole e as colónias representavam mais de dois milhões de
quilómetros quadrados e uma área equivalente a boa parte da Europa Ocidental. O
título garantia que, contra as evidências, «Portugal não é um país pequeno».»
Artigo completo (mediante registo gratuito) aqui.
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