Revista "Ilustração", 257, 1936 (a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
É um recorte singular.
Atípico mesmo. Não encontro nada parecido nas páginas da imprensa portuguesa do
início do século XX sobre a representação de naufrágios, do valor da sua carga
e da necessidade da sua conservação. Foi publicado no número 257 da revista
“Ilustração” [não confundir com a “Illustração Portugueza”, entretanto já
extinta], em 1936.
Fundada dez anos antes,
a “Ilustração” contou com alguns dos mais brilhantes intelectuais da sua época
– Brito Camacho, Ferreira de Castro, Eugénio de Castro, Jaime Cortesão ou
Aquilino Ribeiro escreveram ali; os jornalistas Norberto Araújo, Reinaldo
Ferreira e Mário Domingues assinaram também páginas memoráveis de crítica e
reportagem. Entre estes vultos, pontualmente, escreveu Joaquim Gomes Monteiro,
por norma sob o pseudónimo Sérgio de Montemor. Assim acontece neste artigo
sobre os lendários tesouros de Vigo, sepultados no mar duzentos anos antes e
desejados por gerações de caçadores de tesouro.
Há duas circunstâncias
que me agradam nestas páginas sobre a proto-arqueologia subaquática. A primeira
é uma gravura ingénua, mas representativa, de um homem com escafandro em
trabalhos de reparação naval, submerso e apoiado por uma embarcação à
superfície. Ainda não tinha visto uma representação gráfica desta natureza sobre
os notáveis escafandristas do início do século XX.
Revista "Ilustração", 257, 1936 (a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
A segunda novidade é o
tom do artigo. Vive-se em 1936 ainda sob o estigma do tesouro, da recolha de
curiosidades, empilhadas em gabinetes ou museus, sem critério que não fosse o
gosto do coleccionador. Quando as campanhas arqueológicas são noticiadas na
imprensa de massas, produzem relatos ingénuos, ideológicos, que caracterizam os
achados em função do seu valor para a manutenção de mitos sobre a
nacionalidade, a nobreza das gentes portuguesas ou os episódios da grande
história. Joaquim Gomes Monteiro, em contrapartida, dedica o artigo à
condenação dos caça-tesouros.
Logo a abrir as
hostilidades, regista que «a arte de roubar debaixo de água atingiu uma tal
perfeição que, para os mergulhadores piratas, assaltar um navio afundado e
sondar-lhe os mais ocultos escaninhos é tão fácil como arrombar os cofres de um
banco».
Mais à frente, prossegue
a condenação: «Assim como aparecem na terra ladrões e bandoleiros que levam a
efeito as mais atrevidas proezas, aparecem também no mar aventureiros do mais
elevado quilate que arriscam mil vezes a vida para a tornarem agradável ao
menos uma.»
O artigo é igualmente
curioso porque inventaria as sucessivas tentativas de recuperação de um espólio
alegadamente perdido por dez galeões de Felipe V provenientes do México e
afundados pela frota inglesa. Em 1936 – como hoje –, discutia-se o que
efectivamente estaria escondido sob a superfície e proliferavam teorias. O mito
do “tesouro de Vigo” manteve-se latente, alimentando páginas delirantes como as
de Robert Charroux (que garantia por exemplo a presença de astronautas precoces
no planeta!!!), entre outras loucuras. Um teatro radiofónico da Emissora Nacional em 1963, dedicado precisamente à história dos galeões afundados, sugere a durabilidade do mito na consciência colectiva (ver aqui) em Portugal e em Espanha.
Na verdade, talvez
tivesse valido a pena ler o parágrafo final de Joaquim Gomes Monteiro na
“Ilustração” de 1936: «E daí – quem sabe? – é possível também que qualquer
empresa se lembre de tentar a proeza, com todas as autorizações necessárias, e,
ao atingir a jazida do valioso braço afundado, dê apenas com o sítio onde o
tesouro deveria encontrar-se... Pelo que fica exposto, os ‘salteadores do
mundo’ são mais expeditos nestes serviços.»
Tudo indica que o foram.
Tudo indica que o foram.
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