sábado, outubro 25, 2014

Uma peça do "Tesouro de Vigo"


Revista "Ilustração", 257, 1936
(a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

É um recorte singular. Atípico mesmo. Não encontro nada parecido nas páginas da imprensa portuguesa do início do século XX sobre a representação de naufrágios, do valor da sua carga e da necessidade da sua conservação. Foi publicado no número 257 da revista “Ilustração” [não confundir com a “Illustração Portugueza”, entretanto já extinta], em 1936.
Fundada dez anos antes, a “Ilustração” contou com alguns dos mais brilhantes intelectuais da sua época – Brito Camacho, Ferreira de Castro, Eugénio de Castro, Jaime Cortesão ou Aquilino Ribeiro escreveram ali; os jornalistas Norberto Araújo, Reinaldo Ferreira e Mário Domingues assinaram também páginas memoráveis de crítica e reportagem. Entre estes vultos, pontualmente, escreveu Joaquim Gomes Monteiro, por norma sob o pseudónimo Sérgio de Montemor. Assim acontece neste artigo sobre os lendários tesouros de Vigo, sepultados no mar duzentos anos antes e desejados por gerações de caçadores de tesouro.
Há duas circunstâncias que me agradam nestas páginas sobre a proto-arqueologia subaquática. A primeira é uma gravura ingénua, mas representativa, de um homem com escafandro em trabalhos de reparação naval, submerso e apoiado por uma embarcação à superfície. Ainda não tinha visto uma representação gráfica desta natureza sobre os notáveis escafandristas do início do século XX.
Revista "Ilustração", 257, 1936
(a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)
A segunda novidade é o tom do artigo. Vive-se em 1936 ainda sob o estigma do tesouro, da recolha de curiosidades, empilhadas em gabinetes ou museus, sem critério que não fosse o gosto do coleccionador. Quando as campanhas arqueológicas são noticiadas na imprensa de massas, produzem relatos ingénuos, ideológicos, que caracterizam os achados em função do seu valor para a manutenção de mitos sobre a nacionalidade, a nobreza das gentes portuguesas ou os episódios da grande história. Joaquim Gomes Monteiro, em contrapartida, dedica o artigo à condenação dos caça-tesouros.
Logo a abrir as hostilidades, regista que «a arte de roubar debaixo de água atingiu uma tal perfeição que, para os mergulhadores piratas, assaltar um navio afundado e sondar-lhe os mais ocultos escaninhos é tão fácil como arrombar os cofres de um banco».
Mais à frente, prossegue a condenação: «Assim como aparecem na terra ladrões e bandoleiros que levam a efeito as mais atrevidas proezas, aparecem também no mar aventureiros do mais elevado quilate que arriscam mil vezes a vida para a tornarem agradável ao menos uma.»
O artigo é igualmente curioso porque inventaria as sucessivas tentativas de recuperação de um espólio alegadamente perdido por dez galeões de Felipe V provenientes do México e afundados pela frota inglesa. Em 1936 – como hoje –, discutia-se o que efectivamente estaria escondido sob a superfície e proliferavam teorias. O mito do “tesouro de Vigo” manteve-se latente, alimentando páginas delirantes como as de Robert Charroux (que garantia por exemplo a presença de astronautas precoces no planeta!!!), entre outras loucuras. Um teatro radiofónico da Emissora Nacional em 1963, dedicado precisamente à história dos galeões afundados, sugere a durabilidade do mito na consciência colectiva (ver aqui) em Portugal e em Espanha.
Na verdade, talvez tivesse valido a pena ler o parágrafo final de Joaquim Gomes Monteiro na “Ilustração” de 1936: «E daí – quem sabe? – é possível também que qualquer empresa se lembre de tentar a proeza, com todas as autorizações necessárias, e, ao atingir a jazida do valioso braço afundado, dê apenas com o sítio onde o tesouro deveria encontrar-se... Pelo que fica exposto, os ‘salteadores do mundo’ são mais expeditos nestes serviços.»
Tudo indica que o foram.

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