sexta-feira, dezembro 31, 2004

Dos jornalistas e cientistas – parte 2

No último "Post", falei das dificuldades de acompanhamento do jargão científico e de alguma relutância dos cientistas para lidar com esse elemento invasor que é o jornalista. Hoje, creio que vale a pena abordar o outro pilar em que assenta a desconfiança científica: a triagem dos temas ou o agendamento.
Como se processa a escolha dos materiais a noticiar numa redacção? Tenho escutado dois tipos de críticas: por um lado, alegam os mais extremistas, o processo é aleatório; por outro, afiançam que a escolha de notícias é norteada pelas relações pessoais cultivadas entre jornalistas e cientistas.
Por estranho que possa parecer, estas duas leituras não estão totalmente incorrectas.
O processo de triagem noticiosa pode ser arbitrário, na medida em que o jornalista pode esbarrar com uma ideia ou com um projecto de forma totalmente acidental. Ou porque seguia uma pista que o levou para outro território; ou porque acidentalmente falou com um perito, que o colocou no trilho para outra história; ou ainda porque, se for diligente e fizer contactos exploratórios, esbarrou com um tema inédito e prometedor. Este fio de investigação é, admito, irritante para o observador científico. Tudo o que nele é ordem e método eriça-se com esta teoria da desordem e do caos. Mas algumas das melhores histórias nascem assim, sem qualquer indução propositada por parte de uma fonte. Não é comum, mas acontece.
Falemos de relações pessoais. É do senso comum que um jornalista voltará a falar com uma fonte que foi rápida, prestável e confiável. Mesmo que pretenda manter um leque amplo de contactos, o repórter tenderá a socorrer-se daqueles que lhe mereceram mais confiança no passado. E é naturalmente com eles que abordará as novidades do sector: quem publicou, quem se "estampou" no último projecto, o que se deve esperar da administração pública. Nas várias áreas em que a minha agenda de contactos se divide, tenho um número razoável de fontes em quem confio e que me fornecem informação oficiosa, mas razoavelmente segura. Muitas vezes, nascem notícias destas conversas oficiosas. É um processo normal e habitual em todas as secções de um jornal.
Terá um investigador desconhecido as mesmas hipóteses de acesso aos media do que um cientista que já seja conhecido do jornalista? Creio que não. Da mesma forma que nos restantes campos de actividade jornalística, há relações pessoais que abrem portas e que tornam mais provável o sucesso de comunicação de X e não de Y. Mas sublinho que isso não deve ser confundido com favoritismo ou clientelismo. O mero acesso ao repórter não garante publicação. Garante porventura a oportunidade de explicar a sua tese, mas não torna um projecto ou um investigador livre de qualquer escrutínio. Essa mensagem, creio, custa a passar. Para alguns investigadores, a cumplicidade entre alguns cientistas e a comunidade jornalística torna-os menos "sérios". «Dedicam tempo a mais à propaganda e tempo a menos à investigação», dizia-me há semanas um respeitável decano da investigação científica. Espero que gradualmente esta renitência em falar com e para leigos se esbata. Mas é certamente uma condicionante para quem opera nesta arena tão específica.
É inquestionável, porém, que o caudal principal de notícias científicas produzidas num jornal não tem origem nestes dois processos. É gerado, pelo contrário, pela torrente de eventos preparados, de relatórios publicados, de prémios atribuídos, de comunicados difundidos ou de obras anunciadas. Por outras palavras, abrimos as secções de ciência e grande parte das notícias resulta de informações pouco espontâneas e provavelmente partilhadas entre os vários órgãos de comunicação.
Um colóquio ou conferência gera inevitavelmente um fluxo de abordagens noticiosas comuns aos vários jornais; uma tomada de posição de uma fonte oficial ou não oficial (mas com razoável acesso ao campo mediático), se bem preparada pela legião de assessores que povoa hoje as instituições, tem boas probabilidades de ser noticiada uniformemente.
É preocupante que, nos tempos que correm, cada vez mais espaço noticioso é dedicado aos mesmos temas ou, por outras palavras, cada vez mais eventos são elaborados para os media. O processo rouba tempo e espaço à investigação jornalística. E priva os leitores de diversidade.
Para os repórteres, é cómodo dispor de estas ferramentas que tornam o trabalho mais simples e garantem, perante os editores, uma defesa. Cobri este tema, os meus rivais fizeram o mesmo. Pelo que este tema era forçosamente o mais importante da agenda do dia. Quod erat demonstrandum. A lógica é torcida, mas válida.
Em que ponto ficamos então nesta discussão já longa sobre jornalistas e cientistas? Teria razão o meu interlocutor da semana passada, que afiançava que os jornalistas são preguiçosos, parciais e imprevisíveis? Acredito que há um meio termo e que esta apreciação é injusta, até porque tende a colocar todos no mesmo saco. As secções de Ciência e Ambiente são relativamente jovens nos vários jornais generalistas. Lutam ainda por afirmação e raramente merecem honras de destaque. Acreditemos que, à medida que se ganhar espaço e notoriedade, ganhar-se-á também diversidade.
Votos de um bom 2005 aos leitores do Ecosfera.

1 comentário:

L.G. disse...

A diversidade existe e as secções de ambiente não são assim tão recentes (assumidas ou não). Lembro-me de vários nomes: Humberto Vasconcelos (DN), Luísa Schmidt (Expresso), Pedro Vieira (Expresso e DN), Filomena Naves (DN), Rute Peixinho (Lusa), Ana Fernandes e Ricardo Garcia (PÚBLICO). E também os há nas rádios e nas televisões...
Bom 2005! (http://blog-19.blogspot.com/ + http://indios.blogspot.com/)