sábado, setembro 13, 2014

Um galardão em Washington


No auditório Grosvenor, em Washington, sala nobre da National Geographic Society, cerca de duzentos congressistas espalham-se pelas cadeiras disponíveis. Há um rasto indesmentível de história naquele palco. Por ali têm passado os grandes cientistas do nosso tempo, pensadores consagrados, exploradores indomáveis.
Neste mesmo palco, vi há quase uma década a oceanógrafa Sylvia Earle comover-nos até às lágrimas, com uma palestra inesquecível durante a qual propôs que a sigla SOS deveria ganhar novo sentido e assumir o apelo “Save our Seas”. Ali vi também, em 2012, o especialista em demografia Andrew Zolli discutir com uma franqueza desarmante os problemas da Terra em 2050, se atingirmos o número populacional fatídico de 9.000 milhões de habitantes.
Michael Nichols; J. Michael Fay; Paul Nicklen; Enric Sala; Silvie Cousteau; Reza... A lista de palestrantes que ali transmitiu aos membros da National Geographic Society as suas descobertas empolgantes é quase interminável e, das poucas vezes em que ali subi para falar, nunca esqueci a responsabilidade esmagadora do palco e do anfiteatro.

Nesta semana – que coincidiu com mais um aniversário do 9/11 –, tive o privilégio de assistir a mais duas palestras apaixonantes, enquanto lá fora se montava uma réplica em tamanho real de um Spinosaurus descoberto pelo paleontólogo Nizar Ibrahim, também ele explorador-residente da NGS. O arqueólogo David Lordkipanize mostrou a evolução das campanhas em Dmanisi (Geórgia), de onde têm brotado fósseis de hominídeos desde o início do século. No final da palestra, com a humildade que só os grandes costumam ter, o explorador-residente da NGS abriu um sorriso quando soube que eu era português e gastou alguns minutos para me mostrar o projecto do novo Museu Nacional da Geórgia, que conta com assinatura de um novo talento da arquitectura portuguesa. Na véspera, um rapaz de 17 anos, Jack Andraka, explorador-emergente da NGS, deixara o auditório boquiaberto com a narrativa de como inventara, no seu quarto e depois num gabinete de investigação, um novo método para detectar precocemente e sem custo o cancro do pâncreas. Aos 15 anos! Como a minha colega dinamarquesa disse um dia depois, “depois de o ouvir, acordamos com a desagradável necessidade de perguntarmos a nós próprios o que fizemos para salvar o mundo”.

É neste auditório portanto, onde o peso da história se corta à faca, que serão anunciados os vencedores dos prémios anuais de criatividade jornalística da National Geographic Society. Em quase 14 anos de trabalho, levámos sempre trabalhos a concurso – uns melhores, outros piores. Recebemos menções honrosas e vimos consagradas verdadeiras obras-primas. Nunca ficámos com a sensação amarga de derrota, como as equipas portuguesas de futebol quando são espezinhadas nas competições internacionais. Distinguiram-se sempre, e sem excepção, trabalhos melhores do que os nossos.
Desta vez, estou razoavelmente confiante. Levámos a concurso três trabalhos que, com imodéstia (a modéstia em excesso é a vaidade dos tolos), direi que se contam entre alguns dos melhores que publicámos na edição portuguesa. Submetemos uma reportagem sobre a Amazónia, da autoria de uma jovem-prodígio, Madalena Boto, que nos apresentara um ano antes uma reportagem tremenda sobre um projecto de investigação na maior floresta do mundo; submetemos uma ilustração da Anyforms, baseada em investigação de Rui Castanhinha e Ricardo Araújo sobre um conjunto de ovos de dinossauro descobertos na Lourinhã; e, por fim, apostámos no mapa-suplemento da Rota do Românico para a rubrica de “Best Graphic”.

Categoria a categoria, os nomes são anunciados. O auditório vai emitindo ruídos de satisfação a cada trabalho exibido. Há verdadeiras gemas no ecrã da sala. Na categoria de “Best Simple Page”, os ovos de dinossauro são escolhidos para o painel final, mas não recolhem o prémio mais importante, atribuído à Polónia. Logo de seguida, anuncia-se o vencedor da categoria “Best Graphic”: Portugal, com o mapa da Rota do Românico.
Há projectos que nascem tortos e nunca se endireitam; outros, em contrapartida, são harmoniosos desde o dia em que foram concebidos. Este mapa foi, como os americanos costumam dizer, o perfect game, aquele dia raro em que o jogador de basebol consegue fazer os lançamentos perfeitos de modo a excluir toda a equipa adversária. Em Abril de 2013, fomos desafiados a conceber um projecto novo, capaz de representar as principais características do estilo românico no Norte de Portugal, sem nele figurar um monumento concreto. Poderia ter sido mais um mapa com pendor cartográfico, à imagem de outros que já fizemos, mas a directora da Rota sabia o que queria e não desistiu até chegarmos a uma solução inovadora.
Encontrámos no terreno uma equipa técnica espectacular, com sensibilidade e sentido prático, capaz de dar respostas em tempo útil e de dar feedback às vezes doloroso, mas sempre rigoroso.
Contámos com uma equipa de ilustração liderada pelo Luís Taklim, que cresceu a ver e a descodificar ilustrações da National Geographic, e que assinou uma ilustração prodigiosa.
Tivemos tempo (um bem raro) e recursos. O resultado foi este e está pendurado em muitas paredes por esse país fora. Escrevo, aliás, a olhar para um, afixado na redacção.
Foi o primeiro galardão anual de produção jornalística que a edição portuguesa da National Geographic conquistou na casa-mãe. Gosto de pensar que não desagradaria aos arquitectos do século XII ou XIII verificarem a durabilidade das suas obras na memória colectiva.

quinta-feira, agosto 28, 2014

Os lobos e o João




Nos 13 anos e meio que a edição portuguesa da National Geographic já leva (num pouco mais de 160 edições), não escondo que tínhamos uma obsessão desde o primeiro número. Se a revista é identificada maioritariamente pela capacidade da sua fotografia de natureza, tínhamos “obrigação” de mostrar, um dia, o maior carnívoro da nossa fauna terrestre em imagens obtidas em ambiente selvagem. Algum dia teríamos de mostrar o lobo-ibérico em território nacional, sem recurso a imagens de cativeiro, sem engodos, domesticações forçadas ou outros truques. Só o lobo no ambiente nortenho ao qual, teimosamente, a espécie se arreiga. Esse dia foi hoje, com a publicação da revista de Setembro e eu não poderia estar mais contente.
A história desta reportagem, assinada pelo fotógrafo notável que é o João Cosme, encerra também um longo capítulo de tentativas que, apesar da boa vontade de outros nomes da fotografia portuguesa, nunca chegaram a bom porto. Um dia, há quase dez anos, apareceram-nos sem grandes explicações três/quatro imagens excelentes, mas desgarradas de qualquer história. Tinham o mesmo valor que um fóssil de dinossauro retirado do contexto paleontológico e vendido avulso no mercado: eram curiosidades com pouco valor intrínseco.
Noutras ocasiões, debatemos se valeria a pena recorrer a imagens de cativeiro para ilustrar ideias válidas e urgentes de reportagem, procurando sublinhar que os valores de conservação associados à espécie tinham mais urgência do que as necessidades jornalísticas. Debalde.
Pontualmente, chegava uma fotografia solta. E a proposta ingénua de que, com ela, “fizéssemos alguma coisa sobre o lobo”. Vou ganhando cabelos brancos (muitos, aliás) enquanto tento explicar que a construção de uma reportagem é mais complexa do que isso. Exige um guião, por norma desenhado antes da partida do terreno. Exige background científico. Exige planeamento. E, depois disso tudo, exige sorte e dinheiro.
Na Primavera deste ano, com simplicidade desarmante, como se anunciasse a previsão meteorológica, o João Cosme falou connosco. Explicou-nos que acompanhava uma equipa do CIBIO no terreno, no Alto Minho português, e que tinha captado fotografias... bonitas. Resumiu o projecto científico que acompanhava e a proximidade tremenda de que beneficiava face aos animais. Na voz, deixava transparecer a alegria de um contacto há muito desejado porque, na ocasião, não era o João Cosme jornalista que falava. Era o João Cosme naturalista.
Admito que não acreditei à primeira. Afinal, como na fábula, já se gritara em vão pelo "lobo" no passado. Depois, vi a galeria. E desfiz compromissos assumidos (desculpa, Gonçalo!) para publicar a reportagem na primeira ocasião disponível.
Cada jornalista é um caso e há personalidades para todos os gostos. Já vi galerias banais apresentadas como se se tratasse do espólio perdido de Cartier-Bresson. Já vi reportagens falhadas, “totalmente” ao lado do guião inicial, re-empacotadas como um êxito tremendo da perseverança. Já vi golpes de sorte, frutos esporádicos da deusa da fortuna, transformados em odes ao planeamento. E depois há casos como o do João, que quase pede desculpa por apresentar fotografias inéditas de lobo-ibérico.
Os leitores que nos acompanham nas redes sociais e no nosso site terão paciência, mas, à moda de Sophia, esta é a reportagem que eu esperava. E por isso, excepcionalmente, tê-la-ão de ler na revista, no formato nobre para o qual ela foi construída, porque tão cedo não a colocaremos em suporte digital gratuito.
Julgo que o trabalho incansável do João, e a tremenda perseverança da equipa científica do professor Francisco Álvares, da Helena Rio-Maior e demais especialistas que nos ajudaram neste empreendimento, merecem-no.

sexta-feira, agosto 22, 2014

O poder de uma imagem



Adoro esta composição de Robert Clark sobre o desperdício alimentar anual de uma família de quatro pessoas. A abundância que ela sugere resume toda a história. Faz lembrar uma fotografia que também publicámos há uma década sobre todos os produtos derivados do petróleo que temos em casa. Esta.

terça-feira, agosto 19, 2014

Já lá estive


Em 1995, tive um episódio como o que ontem aconteceu ao Bruno Pires, do Diário de Notícias. Fonte bem colocada garantiu "pela minha saúde" que um jogador não mudava de clube, eu escrevi e, no próprio dia, vi-o entrar na sede do novo clube, agarrado à minha fonte. Por comodismo, preguiça ou excessiva dependência das fontes, cometem-se erros destes. O Bruno garantiu que o Nani "rejeitou o regresso" e viu-o chegar na própria noite ao aeroporto de Lisboa. Acontece. Como sei que o dia de hoje vai ser longo e que parecerá que a notícia foi lida por toda a população, aqui fica o meu abraço (ainda não li o DN de hoje, mas imagino que o jornal tenha pedido desculpa...)

quinta-feira, agosto 14, 2014

Rostos de uma equipa



Foi um trabalho de ourives, mas, modéstias à parte, julgo que este mapa da Arrábida (lados A e B) vai ficar como documento relevante de descrição e promoção da região.
É bem possível e legítimo que os leitores não tenham noção da quantidade e qualidade de contributos envolvidos num projecto desta envergadura, mas é obrigatório reconhecer que há aqui "dedo" de muita gente boa que merece uma palavra de apreço pelas horas dedicadas a esta pequena loucura.
Da Anyforms Design de Comunicação, que tem a extraordinária faculdade de construir o mundo em 3D e de o tornar palpável para todos; do Luis Quinta, que, 13 anos depois do primeiro boneco, continua a trazer-nos fotografias incríveis; do Francisco Rasteiro, que conhece os recantos mais improváveis da serra e, pior, enfia-se por eles adentro; do Paulo Rolão, que descreve o mundo como os naturalistas do século XIX (até porque nasceu nesse século!).
Tivemos também um dream team de consultores científicos. O professor José Carlos Kullberg partilhou horas da sua vida tentando ensinar-nos a geologia da serra e sublinhando o carácter único de muitos geomonumentos; o professor Carlos Tavares da Silva mantém o entusiasmo de sempre pelas descobertas arqueológicas da região; os botânicos Dalila Espírito-Santo e Pedro Arsénio, que nos obrigaram a olhar para o chão em vez de mirarmos sempre o céu; o biólogo Paulo Catry; o João Afonso; a Bárbara Horta e Costa e o Emanuel Gonçalves; o Alexandre Monteiro, especialista em arqueologia subaquática e, mais importante e raro, um especialista que nunca se nega a partilhar o saber.
Junte-se à equipa o Leitão Baptista e a Patrícia Albuquerque Boléo Tomé. E a Helena Abreu que manteve em harmonia toda esta rapaziada.
A todos, o meu agradecimento!

domingo, agosto 10, 2014

O que viu José de Freitas da janela de um comboio chinês?


Num comboio que liga a cidade de Han-Keu a Pequim, viajam dois passageiros invulgares. Nesta Primavera chinesa de 1964, Mao ganha balanço para começar a Revolução Cultural, que terá lugar dois anos mais tarde e deixará uma pegada sangrenta no legado do mentor da Longa Marcha.
O culto do líder já está presente em todas as cerimónias públicas, mas não atingiu ainda a obsessão que marcará a China da viragem de década. O regime foi finalmente reconhecido no Ocidente pela desalinhada França de De Gaulle, mas os estrangeiros são raros por estas paragens. Os vistos são cuidadosamente atribuídos e as visitas ao interior da China rural são limitadas. Muitos chineses nunca viram um rosto europeu. Hoje, porém, por circunstâncias acidentais, viajam dois passageiros especiais neste lento comboio, que resmunga a 50 km/h, revelando uma paisagem monótona, arada, amarelecida. «Tudo quanto a vista abarcava estava tratado, não havendo um pedaço de terra que não fosse cultivado», escreveu mais tarde um dos personagens da narrativa.
Os comboios chineses são um espelho involuntário de uma nação em mutação. Pelos altifalantes, ecoam mensagens polidas em mandarim, reflectindo os novos tempos: «A todos, boa-tarde e desejos de boa viagem», recomenda a dado ponto uma voz feminina. «Seremos, durante algum tempo, como uma família – e essa família terá de viver unida. Em cada carruagem, se o considerarem necessário, poderá ser eleito um representante dos interesses dos passageiros, que tratará directamente com o chefe do comboio (…) Aconselhamos, para melhor vencer o tempo, passeios de ida e volta pelos corredores de todas as carruagens do comboio. Isso só faz bem. Nas estações onde o comboio demore mais de vinte minutos, todos podem sair e passear, não se devendo esquecer a ginástica.»
Os dois passageiros não evitam o riso perante a obstinação da mensagem. Mas efectivamente, à primeira paragem, verificam, atónitos, como os seus companheiros de viagem abandonam as carruagens e iniciam movimentos gímnicos descoordenados no cais. Com notório exagero, o homem mais velho anota no seu caderno: «Lançou-se a propaganda da ginástica nos mesmos moldes da propaganda do combate à mosca. E simplesmente o povo obedeceu. (…) Creio que foi Mao que a aconselhou, (…) e Mao, com o seu imenso prestígio, tudo consegue do povo chinês. Ele, como Confúcio…»
O português tem pouco mais de 50 anos. Magro, decidido, quase calvo, está acompanhado por um oriental a quem vai pedindo para traduzir as palavras em mandarim ou cantonês. Rabisca tudo diligentemente  no seu bloco de notas. Chama-se José de Freitas, é enviado-especial do “Diário Popular” e está na China há mais de uma semana. Ali permanecerá entre 6 e 22 de Abril.
Fotografias de José de Freitas retiradas de "A China Vence o Passado"
Arquivo do autor
A inglesa é mais nova – terá menos de 30 anos, na estimativa de Freitas. Bonita, chama rapidamente a atenção de todos os passageiros na estação de Han-Keu, onde entra a bordo. Está pintada e isso, nesta China normalizada de Mao, onde homens e mulheres trajam roupa azul e de formatos indistintos, é uma novidade. Geram-se cochichos: mulheres com o rosto pintado estão agora reservadas ao teatro. A jovem (que Freitas não identifica) trabalha para a embaixada britânica em Pequim e acompanhara industriais do seu país numa visita a uma siderurgia. Tal como Freitas, não aprecia viagens de avião, pelo que preferiu o regresso por via férrea, mesmo que este lento comboio chinês demore cerca de 36 horas a ligar as duas cidades.
Em breve, porém, os dois europeus terão uma história incrível para contar.

NOTA DE RODAPÉ
Há duas maneiras de contar esta história, como aliás normalmente acontece com todas as outras histórias.
Moisés Fernandes, especialista reputado em história das relações diplomáticas entre Portugal e a China na segunda metade do século XX, descreveu-a singelamente em notas de rodapé de dois artigos recentes (aqui e aqui). Entre 6 e 22 de Abril de 1964, o jornalista José de Freitas, do “Diário Popular” (DP), viajou pela China e publicou «artigos laudatórios sobre o regime chinês». É verdade: Freitas era um apaixonado pela China e tinha notórias simpatias pelo socialismo chinês. Na divisão empírica de temas pelos redactores do jornal, cabiam-lhe normalmente as notícias e colunas de opinião sobre o Oriente. Conhecia Macau e já publicara em 1941 “A China Antiga e Moderna” na Biblioteca Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça. Era o mais sinólogo dos jornalistas portugueses da década de 1960.
Diz igualmente Moisés Fernandes que a viagem de José de Freitas, tal como a de Mário Rosa (também do DP) anos antes, integrou-se no esforço de «certas correntes do regime português [para tentar] persuadir Salazar a estabelecer relações diplomáticas com a China». A premissa parece igualmente válida, embora a viagem de Mário Rosa fosse muito mais politizada do que a de José de Freitas. De todo o modo, em Janeiro desse ano de 1964, o ministro Franco Nogueira informara o “New York Times”, em confidência, que o regime ponderava esse passo e havia certamente interesse em mostrar boa vontade ao regime de Mao. A rápida decisão de reutilização das crónicas jornalísticas de Freitas (publicadas em Maio) em livro, publicado em Julho com o título “A China Vence o Passado” [Edições Cosmos], suporta a tese da aproximação de simpatias entre Lisboa e Pequim.
Todavia, estas informações básicas – verdadeiras, sem dúvida, e irrelevantes no quadro das relações entre os dois países – não esgotam as excepcionais reportagens que José de Freitas assinou no país de Mao Tsé-Tung. E é essa narrativa que vale a pena recuperar na história de episódios do jornalismo português que ensaio neste espaço. Para isso, é fundamental voltar ao comboio que se arrasta pela planície de Hopei.

FILIAÇÕES, FOTOGRAFIAS E INTÉRPRETES
Iniciado em 1963, o  pedido de visto para a visita profissional de José de Freitas à China foi deferido um ano depois – para lá da inércia e desinteresse chineses por estas visitas, pesou seguramente o facto de os dois países não terem à data relações diplomáticas. De Pequim, chegaram pedidos de dezenas de fotografias do repórter e foi enviado um questionário com perguntas indiscretas como a filiação política (vigiado em Lisboa e em Pequim, Freitas respondeu simplesmente “republicano”). Recomendaram-lhe que nada fotografasse sem autorização, mas a proibição não foi levada a sério: «Nas fábricas, nas comunas, nas ruas e nas praças, nunca ninguém me impediu de fotografar quanto quis.»
Foi-lhe imposto um “acompanhante jornalista”, Choi Hong Seong, que serviu de intérprete e guia. José de Freitas não era ingénuo. Filho de uma das lendas do jornalismo republicano da primeira metade do século, Amadeu de Freitas, tinha noção do controlo a que estaria sujeito ao longo da reportagem. Em Cantão, por exemplo, o guia que colocaram à sua disposição anotava diligentemente… todas as perguntas que José de Freitas colocava aos interlocutores chineses. Mas, tanto quanto se apercebeu, «mostraram-me quanto quis e me foi possível ver», descartando «uma gigantesca combinação» que pudesse ter sido feita entre as várias dezenas de interlocutores que lidaram com ele. «Não tenho quaisquer razões que me permitam julgar que não eram sinceros.»
Primeira página do "Diário Popular" de 7 de Maio de 1964
(a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Aos leitores, garantiu: «Visitei a China como jornalista independente, alheio a quaisquer combinações, sem a subordinação dos convites, exclusivamente com dinheiro do meu jornal.» Bem documentadas, redigidas no tom pessoal e directo que fazia escola no “Diário Popular”, as suas crónicas expressam as interrogações de José de Freitas sobre o regime que o acolhia. Há passagens profundamente laudatórias do regime de Mao, tal como ficaram registadas várias recriminações. «Durante a minha estada na China», escreve a dado ponto, «deram-me sempre muito mais jantares do que notícias».
A recriminação tinha razão de ser. Sem dominar o mandarim, Freitas esteve sempre dependente das traduções de Choi. «Dependia de Choi para comunicar com o mundo que me rodeava», reconheceu. E José de Freitas preferia falar com o povo anónimo, espontâneo. Para isso, «não há como o comboio para se ver alguma coisa de um país, principalmente para quem viaja com a tarefa de o ver, de o compreender.» É por isso que o encontramos no comboio de Hopei, procurando descodificar o país emergente.

UMA EXPLOSÃO
São cerca de quatro horas da tarde do dia 12 de Abril. O comboio marcha para Pao-Ting-Fu [mantêm-se neste texto a toponímia tal como ela foi registada por José de Freitas]. Tentando recordar todos os pormenores deste dia, o jornalista contou que não conseguia precisar se o comboio já passara por Chekia-Tchuang, importante entroncamento ferroviário entre as províncias de Xantung, no litoral, e Xan-Si, no Oeste. Pela vidraça da janela do compartimento onde os dois europeus conversam, a planície «estendia-se até perder de vista, sem a mínima elevação. O céu era todo cinzento, uniformemente cinzento.» Num banco, o guia e intérprete de Freitas dormita, num processo digestivo moroso, depois de ter comido laranjas e um bolo de farinha branca, quase crua, com recheio de carne de porco. «Só em olhar para o tal bolo se me revolviam as tripas.»
De súbito, a jovem inglesa chama a atenção de Freitas para a paisagem. «Quase na linha do horizonte, não posso precisar a quantos quilómetros de distância, formara-se uma nuvem mais cinzenta do que o próprio céu cinzento, a destacar-se, com contornos nitidamente limitados, claramente definidos. Tinha a vaga forma de um cogumelo.»
Nuvem em forma de cogumelo na Sardenha, em Julho de 2014
Arquivo do Daily Mail
Desde 1963 que se comentava nos jornais internacionais que seria uma questão de tempo até a China desenvolver capacidade militar nuclear. O regime soviético apoiara largamente os esforços de Mao para dotar o país de armamento nuclear, lançando uma nova preocupação para o debate sobre a proliferação de armas nucleares. É, naturalmente, possível que a visibilidade pública do tema tivesse poder sugestivo sobre os dois passageiros do comboio de Hopei.
«Dentro da própria nuvem havia laivos negros», continuou Freitas. «Depois do cogumelo grosseiro, era uma cunha, como se fora um triângulo suspenso no céu, para mudar de tamanho e tomar o aspecto de uma bola achatada. Parecia que dentro da nuvem – no seio da própria nuvem – havia uma força inteligente que a domava e afastava ou aproximava de nós, a movia no espaço para um lado, para outro, dando-lhe sempre formas variadas e singulares.»
A rapariga inglesa verbalizou o que ambos pensavam:
– Que será aquilo? Que coisa estranha!
«Nem ela nem eu quisemos pronunciar as terríveis palavras que igualmente, estou certo, nos acudiram aos lábios. O estranho fenómeno, o cogumelo, o trágico cogumelo, estava agora cada vez mais negro, raiado de preto. Depois agitou-se num vaivém e desfez-se. O espectáculo singular demorara pouco mais de cinco minutos.»
Freitas ainda alvitrou que fosse uma tempestade, mas faltava-lhe convicção e ambos decidiram não partilhar a história com os companheiros chineses de viagem. «Longe de mim afirmar que assisti a uma explosão atómica nas longas planícies da província de Hopei. Mas se não era uma experiência nuclear – que seria aquilo?» Freitas guardou segredo do que viu até voltar a pisar a Macau, onde confidenciou o avistamento «a quem considerei que o devia fazer e a um amigo íntimo. O meu instinto, e nada mais, aconselhou-me a não fazer qualquer referência ao caso enquanto estivesse na China.»

EPÍLOGO
José de Freitas nunca soube ao certo o que vira da janela do seu comboio em Hopei. Hoje, sabemos que as nuvens em forma de cogumelo não se formam apenas na sequência de explosões atómicas. Elas podem ser também resultado de erupções vulcânicas (não foi listada nenhuma para aquela região chinesa em 1964), de colisões de meteoros com a Terra (não se encontra nenhuma com estas características nas bases de dados internacionais), de explosões industriais, na sequência de grandes incêndios florestais ou… em tempestades muito particulares. Há poucos dias, o “Daily Mail” publicou a história de como um relâmpago e uma tempestade violenta geraram um fenómeno deste tipo na Sardenha (aqui), alarmando a população local com uma nuvem em forma de cogumelo.
As quinze crónicas sobre a viagem à China foram redigidas já em Lisboa e o “Diário Popular” começou a publicá-las, sempre com destaque de primeira página, a partir do dia 7 de Maio e até ao dia 26. Ao anunciar a série, o jornal dirigido por Martinho Nobre de Melo garantia que teria sido muito fácil comprar na imprensa estrangeira uma série de artigos sobre a nova China, mas que devia aos leitores uma perspectiva portuguesa sobre o país de Mao e assumia o compromisso de oferecer nas suas páginas reportagens de qualidade.
Martinho Nobre de Melo, em caricatura do Sempre Fixe, 1932
(a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)
Num típico sinal dos tempos, Freitas não hierarquizou o avistamento de Hopei na sua série de impressões sobre a China. Apesar de não manter no relato uma ordem cronológica face aos locais visitados, optou por guardar Hopei para o 12.º artigo, publicado no dia 21 de Maio. O título, pouco claro e atípico num jornal que se vangloriava do seu jeito para “manchetes” simples e claras, informava: “UMA EXPLOSÃO ATÓMICA PARECIA O ESPECTÁCULO A QUE ASSISTI NA IMENSA PLANÍCIE CHINESA DE HOPEI.” É provável que o próprio José de Freitas hesitasse em qualificar o que avistara. A peça foi aprovada sem cortes pela Censura, tanto na versão jornalística, como no capítulo do livro.
Primeira página do "Diário Popular" de 21 de Maio de 1964
(a partir do arquivo da Biblioteca Nacional)
Curiosamente, apesar de tudo apontar para um fenómeno meteorológico, os olhares dos serviços de espionagem ocidentais estavam de facto focados na China. Um memorando secreto da Special National Intelligence Estimate, datado de 26 de Agosto de 1964, informa mesmo que a China estava prestes a ganhar a corrida nuclear, tornando-se a quinta potência com acesso à bomba. A suportá-lo, estavam as fotografias aéreas de dois sítios de testes (relatório desclassificado aqui)
Meses depois, em Outubro, o mundo ficou de facto a saber que a China realizara finalmente os primeiros ensaios nucleares. Foi em Lop Nur, na distante Mongólia, que o regime de Mao testou, pela primeira vez, a poderosa invenção de Oppenheimer. O “Diário Popular” optou por não contextualizar nessa altura o avistamento de José de Freitas e só viria a referir-se ao caso três anos depois, na edição do seu 35.º aniversário, em Setembro de 1967. Num texto elogioso de Mário Ventura Henriques, José de Freitas foi apresentado como o jornalista sagaz que tão habilmente escapou das bombas em Gaza em 1956 (em episódio que espero contar aqui mais tarde) como teve a sorte de estar no lugar certo em 1964, assistindo a experiências atómicas chinesas!
Com o tempo, o potencial “furo” jornalístico foi esquecido e nunca galgou as fronteiras portuguesas. Até hoje, desconhece-se que fenómeno terão José de Freitas e a funcionária da embaixada britânica em Pequim presenciado na planície de Hopei, a partir da janela de um comboio. E esse mistério não explicado dá um sabor especial à saga de José de Freitas no Império do Meio.
Ler também a Parte 2.

quarta-feira, julho 16, 2014

Adelino Cardoso (1934-2014), uma homenagem

"Diário Popular", 22/09/1967
(a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
O jornalista Adelino Cardoso morreu esta semana. Não há melhor homenagem a um jornalista recto, creio, do que recordar uma das suas peças. Descrito frequentemente como literatura apressada, o jornalismo consome textos como a locomotiva ingere carvão – processa-os; publica-os; esquece-os porque a máquina infernal precisa constantemente de mais alimentação e não guarda lembrança do carvão já queimado.
Durante a semana, Adelino Cardoso foi recordado pela sua conduta irrepreensível no acompanhamento da actividade parlamentar nas décadas de 1970 e 1980. Não duvido do que se escreveu. Mas há um texto dele que me marcou mais. Foi escrito em Setembro de 1967 para o número do 25.º aniversário do "Diário Popular".
Após oito anos de carreira noutros jornais, frustrado pela prática que «o amodorrava à banca de jornais, onde pouco mais era possível que amortalhar-me nas águas paradas do 'não vale a pena'», Adelino Cardoso decidiu recomeçar do zero. Soube de um concurso para admissão de jornalistas do Diário Popular e participou. «Há coisas que não se agradecem, mas se há alguma coisa a que devo estar reconhecido é ao facto de o jornal ter aceite esse pecúlio [uma experiência tarimbeira de oito anos sem encostos e sem referências que não fossem as dos camaradas de ofício] como o único que de facto interessava colocar na balança das minhas probabilidades», escreveu mais tarde.
Este texto intitula-se "Um desafio a mim próprio" e é uma das mais pungentes homenagens ao jornalismo da década de 1960 e às suas rotinas. 
A fornalha do “Diário Popular” apagou-se há muito. Adelino Cardoso foi um dos operários que melhor a alimentou. É essa a homenagem que lhe faço.

sexta-feira, julho 11, 2014

EMEPC, 2014




Escrevo este mês na “Espiral do Tempo” sobre a missão de extensão da Plataforma Continental portuguesa.
 «Nas salas de aula do Estado Novo, afixava-se um cartaz peculiar. Sobre a superfície continental da Europa, sobrepunha-se a área ocupada pelas províncias ultramarinas portuguesas, procurando sublinhar que, juntas, a metrópole e as colónias representavam mais de dois milhões de quilómetros quadrados e uma área equivalente a boa parte da Europa Ocidental. O título garantia que, contra as evidências, «Portugal não é um país pequeno».»
Artigo completo (mediante registo gratuito) aqui.

sexta-feira, junho 20, 2014

Surf e mini-saias na paisagem urbana



Portugal, em 1967, apreciado pelo Diário Popular. Nas boutiques, aparecem, como cogumelos, as novas mini-saias; na água, uma nova modalidade emerge, o surf, protagonizada por pioneiros como Vasco Pinto Basto.

quinta-feira, junho 19, 2014

Vândalos à vista. Redes sociais, o Coliseu de Roma e os parques naturais


 Caminho no interior de um parque natural através de um trilho velho, mas transitável. Ali perto, a poucas centenas de metros, as primeiras habitações do concelho de Palmela certificam que o Parque Natural da Arrábida é uma das áreas protegidas portuguesas com maior densidade populacional humana. Este mesmo trilho é amplamente percorrido por ciclistas e caminhantes durante os fins-de-semana, mesmo que poucos saibam que a poucos passos dali se esconde um sítio arqueológico de importância nacional. Já me habituei ao lixo espalhado pela paisagem, semeado a eito... Embalagens, vidros, papel, dejectos... Tudo serve para deitar no balde do lixo da natureza.
Aproximo-me do sítio arqueológico que vim conhecer. Olho em redor, à procura de referências. Alguns muretes sugerem uma ruína, mas não existe informação visível. Procuro com mais afinco. Tenho bem presente na memória o amplo debate sobre as verbas que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas dedicou à comunicação, através da revitalização e afixação de painéis informativos e sinalética. O Ministério do Ambiente agrega estas despesas em rubricas mais complexas, o que impossibilita o conhecimento do valor concreto gasto, mas uma fonte do ICNF não tem dúvidas em confirmar que, na última vaga, foi investido mais de um milhão de euros.
Não há nada de pé, mas isso não significa que o dinheiro se tenha esfumado. Na verdade, os painéis existiram. Neste caso, o painel foi metodicamente pontapeado para fora da sua estrutura de madeira. Uma vez removido dos suportes, foi partido em pedaços e depois exposto no solo, em jeito de puzzle. Ficou ali como despojo de uma guerra surda entre as áreas protegidas e os seus visitantes.
 Deparo com o mesmo cenário em Ourém. Semanas antes, tinha-o visto também no Paul do Boquílobo, num ponto do parque natural que considerara ingenuamente demasiado remoto para ser notado. Intriga-me a redundância. A violência contra a sinalética. O vandalismo gratuito, que tanto se expressa na destruição de painéis como na profanação de vegetação ou lajes com graffiti e outro lixo.
No Verão passado, a mesma discussão atravessou os Estados Unidos de lés a lés. O “New York Times” (aquidetectou rabiscos pintados nos frágeis saguaros que deram nome ao famoso Parque Nacional do oeste americano; trilhos pintados; inscrições em desfiladeiros; pinturas rupestres grosseiramente manipuladas. No total, o Serviço Nacional de Parques estimava que 9.000 sítios de interesse histórico ou natural tinham sido deliberadamente danificados desde 2009, incluindo o icónico Memorial a Lincoln em Washington.
Os vigilantes da natureza escutados pelo jornal deram um contributo para a discussão, lembrando que, na era anterior à Internet, sempre existiram actos deste género, mas eles circunscreviam-se à geografia do local. Só eram visíveis quando o visitante seguinte chegasse ao local. E são tão antigos como a espécie humana. Numa investigação divulgada pela National Geographic em Dezembro do ano passado, detectou-se que alguns rabiscos nas paredes do Coliseu de Roma tinham dois mil anos. Tal como John e Vanda professam hoje o seu amor gravando ali um coração, também Iulius Maximus lá quis deixar uma inscrição no século I d.C.
Hoje, porém, com a proliferação das redes sociais, o vandalismo ganha asas... geográficas. Um rabisco num saguaro remoto torna-se a pena no chapéu dos vândalos de trazer por casa, que afixam a proeza e recebem gratificação imediata. Poderá ser esse o factor que despoleta a explosão destas manifestações?

Lapa de Santa Margarida. Fotografia de Paulo Rolão.
Não existem dados suficientes para ligar os dois fenómenos e manifestações tão amplas não costumam ter causas tão redutoras. Num livro recente (“The Destruction of Art: Iconoclasm and Vandalism Since the French Revolution”, 2013) Dario Gamboni lista dezenas de incidentes gratuitos de destruição de expressões artísticas, desde o homem que destruiu a martelo o famoso vaso Portland (já lembrado aqui), ao doente que atirou ácido contra o quadro de Rembrandt ou ao turista que destruiu um dedo da estátua do David de Miguel Ângelo em 1991. O historiador argumenta que a maior parte dos incidentes foi, à época, construído como um acto lunático e demente, mas serviu diferentes causas, desde o protesto contra determinada corrente artística à expressão de raiva em público para chamar atenção para outras causas. E afinal a inscrição de Iulius Maximus foi seguramente entendida no século I como um acto de profanação e hoje constitui uma curiosidade histórica.
Gostava de ter respostas mais categóricas para os “meus” painéis tombados. Tenho sérias dúvidas de que eles não sejam muito diferentes dos rabiscos nos saguaros frágeis. Ou nas carruagens de metro das cidades. Ou nas paredes do velho Coliseu. São manifestações de vaidade e egoísmo, tiques de agentes sociais que precisam desesperadamente de sublinhar o seu carácter especial face ao resto da multidão. De alguma forma, marcam uma época – a nossa. Mas não com o cunho pretendido pelos seus autores. 

terça-feira, junho 10, 2014

A edição ingrata e o talento do António



Há reportagens assim.
Por vezes, baralhamos mil vezes a galeria de fotografias disponíveis na esperança de que, à décima passagem, algo tenha escapado – a imagem improvável que vai salvar a reportagem, vai manter a reputação da revista, vai atrair o leitor para as nossas páginas e motivá-lo a recordar-se da reportagem para sempre. No processo, amaldiçoamos silenciosamente os homens do campo, os fulanos que saem para a rua de máquina na mão para congelar o tema da reportagem num instantâneo revelador. “Porque não deu um passo mais para a frente?”; “Porque não recuou?”; “Porque não tentou outra posição, outra lente, outra iluminação?”. No conforto da redacção, longe dos imponderáveis do campo, todas as fotografias mágicas parecem possíveis.
Pontualmente, porém, sucede o contrário. À primeira passagem da galeria de imagens, emergem possibilidades fantásticas de ilustração. Uma, duas, três fotografias captam tudo o que queríamos contar. Dispensam legendas e explicações. São metonímias perfeitas da história que decidimos relatar no momento já distante em que a ideia original brotou. Lembro-me sempre nestes momentos do que escreveu a controversa escritora Anaïs Nin que, para mal dos seus pecados, herdou um nome próprio infeliz e uma tendência incontrolável para redigir diários íntimos. «Tudo nasce do excesso. A grande arte nasceu do grande terror, das grandes inibições, das grandes instabilidades – forma com eles o equilíbrio indispensável.» [cito de memória]· É, pois, de excesso, de abundância que falamos agora.
Há alguns meses, o António Luís Campos propôs-nos uma história formidável. Graças à extraordinária cooperação de António Candeias, do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, e dos conservadores-restauradores Miguel Mateus e Teresa Reis, tínhamos acesso ao trabalho de investigação desta equipa em torno das representações pintadas de Afonso de Albuquerque, segundo vice-rei português na Índia. Não quero estragar a leitura a ninguém [disponível aqui, já agora], mas a obra foi socialmente construída e reconstruída sucessivamente desde o século XVI, ao sabor da ideologia de cada época e dos preconceitos dos seus agentes. No léxico de um editor, a história tinha todos os ingredientes: uma figura histórica, um mistério, ciência de ponta, espiões, uma invasão e um quadro que ora tinha barbas brancas, ora as perdia por soberba de um político.
Como sempre acontece nesta casa, debatemos intensamente as possibilidades visuais. As reportagens de laboratório são terríveis. No ambiente descontaminado das pipetas e bicos de bunsen, das paredes brancas e microscópios, todas as fotografias parecem iguais. Com a malícia que lhe é característica, o António assegurou que traria fotografias diferentes. E, na verdade, mostrou-se fiel à palavra dada.
Voltamos aos excessos da Anaïs Nin. Logo à primeira passagem da galeria de imagens disponíveis, saltaram à vista estas duas extraordinárias representações de tudo o que queríamos dizer. Em duas composições, o António mostrava o quadro que chegara a Lisboa em 1953 já repintado por Gomes da Costa na Índia com amplas liberdades criativas, o quadro que a equipa de João Couto descobrira com exames radiológicos no MNAA e indícios da pintura original que lhes estava subjacente.
Tivemos de optar – espero que bem. Ficou na maqueta a imagem enigmática com todas as representações conhecidas penduradas numa parede de luz, enquanto Miguel Mateus anotava diligentemente os contratempos sofridos pela obra; ficou pelo caminho a imagem tecnológica, captada com um iPad, expressando igualmente as diferentes fases do desenho de Afonso de Albuquerque (que até pode não ser o próprio, pois essa averiguação deverá agora ter lugar na Galeria dos Vice-Reis em Goa).
Por sobreposição de compromissos, não vou poder participar na palestra do António Luís Campos no Porto, no próximo dia 12, na Reitoria da Universidade. Celebram-se ali dez anos (quase 11) de colaboração do António com a edição portuguesa da National Geographic, o que vale por dizer que são dez anos de dilemas como este. De escolhas entre o bom e o óptimo. De materiais estupendos por vezes excluídos somente para evitar redundâncias no nosso processo de story-telling.
Tem-se falado muito em selecções nacionais durante estes dias de antecipação do Mundial. O António estará seguramente na minha selecção nacional dos melhores.
Era isto que eu diria na 5.ª feira, na Reitoria da Universidade do Porto, se tivesse oportunidade.