Caminho no interior de um parque natural
através de um trilho velho, mas transitável. Ali perto, a poucas centenas de
metros, as primeiras habitações do concelho de Palmela certificam que o Parque
Natural da Arrábida é uma das áreas protegidas portuguesas com maior densidade
populacional humana. Este mesmo trilho é amplamente percorrido por ciclistas e
caminhantes durante os fins-de-semana, mesmo que poucos saibam que a poucos
passos dali se esconde um sítio arqueológico de importância nacional. Já me
habituei ao lixo espalhado pela paisagem, semeado a eito... Embalagens, vidros,
papel, dejectos... Tudo serve para deitar no balde do lixo da natureza.
Aproximo-me do sítio arqueológico que vim
conhecer. Olho em redor, à procura de referências. Alguns muretes sugerem uma
ruína, mas não existe informação visível. Procuro com mais afinco. Tenho bem
presente na memória o amplo debate sobre as verbas que o Instituto da
Conservação da Natureza e das Florestas dedicou à comunicação, através da
revitalização e afixação de painéis informativos e sinalética. O Ministério do
Ambiente agrega estas despesas em rubricas mais complexas, o que impossibilita
o conhecimento do valor concreto gasto, mas uma fonte do ICNF não tem dúvidas
em confirmar que, na última vaga, foi investido mais de um milhão de euros.
Não há nada de pé, mas isso não significa
que o dinheiro se tenha esfumado. Na verdade, os painéis existiram. Neste caso,
o painel foi metodicamente pontapeado para fora da sua estrutura de madeira.
Uma vez removido dos suportes, foi partido em pedaços e depois exposto no solo,
em jeito de puzzle. Ficou ali como despojo de uma guerra surda entre as áreas
protegidas e os seus visitantes.
Deparo com o mesmo cenário em Ourém.
Semanas antes, tinha-o visto também no Paul do Boquílobo, num ponto do parque
natural que considerara ingenuamente demasiado remoto para ser notado.
Intriga-me a redundância. A violência contra a sinalética. O vandalismo
gratuito, que tanto se expressa na destruição de painéis como na profanação de
vegetação ou lajes com graffiti e outro lixo.
No Verão passado, a mesma discussão
atravessou os Estados Unidos de lés a lés. O “New York Times”
(aqui) detectou rabiscos pintados nos frágeis
saguaros que deram nome ao famoso Parque Nacional do oeste americano; trilhos
pintados; inscrições em desfiladeiros; pinturas rupestres grosseiramente
manipuladas. No total, o Serviço Nacional de Parques estimava que 9.000 sítios
de interesse histórico ou natural tinham sido deliberadamente danificados desde
2009, incluindo o icónico Memorial a Lincoln em Washington.
Os vigilantes da natureza escutados pelo
jornal deram um contributo para a discussão, lembrando que, na era anterior à
Internet, sempre existiram actos deste género, mas eles circunscreviam-se à
geografia do local. Só eram visíveis quando o visitante seguinte chegasse ao
local. E são tão antigos como a espécie humana. Numa investigação divulgada
pela National Geographic em Dezembro do ano passado,
detectou-se que alguns rabiscos nas paredes do Coliseu de Roma tinham dois mil
anos. Tal como John e Vanda professam hoje o seu amor gravando ali um coração,
também Iulius Maximus lá quis deixar uma inscrição no século I d.C.
Hoje, porém, com a proliferação das redes
sociais, o vandalismo ganha asas... geográficas. Um rabisco num saguaro remoto
torna-se a pena no chapéu dos vândalos de trazer por casa, que afixam a proeza
e recebem gratificação imediata. Poderá ser esse o factor que despoleta a
explosão destas manifestações?
Lapa de Santa Margarida. Fotografia de Paulo Rolão. |
Não existem dados suficientes para ligar
os dois fenómenos e manifestações tão amplas não costumam ter causas tão
redutoras. Num livro recente (“The Destruction of Art: Iconoclasm and Vandalism
Since the French Revolution”, 2013) Dario Gamboni lista dezenas de incidentes
gratuitos de destruição de expressões artísticas, desde o homem que destruiu a
martelo o famoso vaso Portland (já lembrado aqui), ao doente que atirou ácido contra o quadro de
Rembrandt ou ao turista que destruiu um dedo da estátua do David de Miguel
Ângelo em 1991. O historiador argumenta que a maior parte dos incidentes foi, à
época, construído como um acto lunático e demente, mas serviu diferentes
causas, desde o protesto contra determinada corrente artística à expressão de
raiva em público para chamar atenção para outras causas. E afinal a inscrição
de Iulius Maximus foi seguramente entendida no século I como um acto de
profanação e hoje constitui uma curiosidade histórica.
Gostava de ter respostas mais categóricas
para os “meus” painéis tombados. Tenho sérias dúvidas de que eles não sejam
muito diferentes dos rabiscos nos saguaros frágeis. Ou nas carruagens de metro
das cidades. Ou nas paredes do velho Coliseu. São manifestações de vaidade e
egoísmo, tiques de agentes sociais que precisam desesperadamente de sublinhar o
seu carácter especial face ao resto da multidão. De alguma forma, marcam uma
época – a nossa. Mas não com o cunho pretendido pelos seus autores.
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