A seca, já se sabe, desperta os instintos mais primários nos desesperados filhos da nação. Há cerca de um mês, sorrimos todos perante a evocação de algumas missas rezadas aos céus a troca das sonhadas gotas de água, fórmula medieval bem útil para tempos de crise. O raciocínio envolvido nesta troca celestial de missas por chuva foi o mesmo da Idade Média: não cai chuva, não compreendemos por que motivo não cai chuva, pelo que, pelo sim pelo não, mais vale pedir clemência aos deuses. O resultado, porém, não foi diferente dos meses anteriores: nem uma gota. E os campos agrícolas cada vez mais áridos!... E a área de pasto cada vez mais estéril!... E os animais cada vez mais cadavéricos. Uma tragédia.
Warren Burkett, pedagogo e jornalista científico norte-americano, colocou sempre a ênfase das suas intervenções na necessidade de separar a ciência do mito, a racionalidade da fé. Tivesse ele assistido ao carnaval da última semana em Portugal e soltaria urros de protesto. Em causa, um projecto das Universidades Lusófona e de Évora baseado no "bombardeamento das nuvens" para forçar um aumento dos níveis de precipitação.
Começo por dizer que nada me move em particular contra o projecto. É uma experiência-piloto, ao que julgo já testada em 1999 e que assenta no princípio segundo o qual, se há nuvens, pode haver chuva. Basta «inseminá-las» (sic no artigo do "Diário de Notícias").
Não duvido da cientificidade da experiência, aliás já desenvolvida noutras paragens. Partículas de iodeto de prata e de cloreto de cálcio são projectadas para as nuvens, acelerando e tornando mais densa a formação de cristais. Mais pesados, estes tendem a cair, formando chuva (este ano, lançou-se apenas iodeto de prata). Não contesto, dizia eu, a validade do projecto, mas assisti de fora, divertido, ao aparato com que os meios de comunicação narraram a epopeia.
É certo que a ideia cativa o mais primário dos nossos instintos: controlar a atmosfera, provocar chuva, gerir a fúria dos céus. Desde tempos imemoriais que o homem quer manipular os elementos.
Ao mesmo tempo, os elementos químicos mágicos (e ainda por cima inócuos para pessoas e solos) reportam-nos para as artes da alquimia e da combinação química que tudo resolve. Iodeto de prata? O repórter não sabe o que é, mas soa-lhe bem. Cloreto de cálcio tem também a sua magia, mas parece menos potente ao ouvido!...
Ora, tudo isto, apesar de apelativo para a lupa jornalística, não pode ser pretexto para tornar leviana a notícia de um projecto académico.
Entendamo-nos: a experiência foi apenas isso - um teste. Deveria ter sido narrada com distanciamento e não com a honra que normalmente se dedica aos grandes avanços da tecnologia. Por vários motivos:
1) O custo absurdo da missão (que envolveu um avião C-130 Hércules e 240 cartuchos de iodeto de prata) torna-a impraticável.
2) A necessidade de cooperação com o Instituto de Meteorologia (IM), que teoricamente fornece informação sobre o tipo de nuvens mais adequado, torna a aplicação destes processos absolutamente inviável. Só quem nunca teve de colaborar com o anacrónico IM, pode esperar garbosamente que a instituição ceda o que quer que seja em tempo útil e de bom grado.
3) A escala de aplicação desta tecnologia é lamentavelmente mínima. Obtêm-se, de facto, níveis elevados de pluviosidade temporária, mas em micro-regiões insignificantes e, pior do que isso, durante períodos muito curtos.
4) A imprevisibilidade associada ao voo desmente a eficácia do processo. O avião quer seguir para Condeixa e passa no Cartaxo; o plano de voo diz Proença-a-Nova e a rota verdadeira transporta aviadores e fazedores de chuva para a Sertã.
Neste universo de informação de lantejoulas, como alguém definiu com propriedade os noticiários televisivos portugueses, o projecto cumpriu vários valores-notícia e foi por isso noticiado com destaque. Mas o mero enquadramento que lhe foi atribuído, invariavelmente relacionado com a vantagem tecnológica de fazer chover, é pernicioso para a percepção que o público retira. Este projecto não faz parte da equação para resolver o grave problema da seca em Portugal. Não tem a mínima hipótese de aplicação a grande escala. Não deveria ter sido enquadrado como «possível solução para mitigar a seca», como um locutor televisivo definiu.
Dir-me-á o leitor avisado que esse risco é mínimo e que o público distingue o folclore da notícia. Tenho sérias dúvidas. Se tivesse de arriscar, diria que a esmagadora maioria de leitores e ouvintes da notícia reteve a informação de que, a partir de agora, pode-se «bombardear» nuvens, «fazer-lhes inseminação artificial» (resta conhecer a posição da Igreja sobre esta prática genética!?!), obrigando-as a «deitar chuva» graças a «produtos químicos que não arruinam os solos». O problema da seca é agora portanto mais «fácil de resolver».
Da parte que me toca, perante tanta barbaridade, arrisco-me a dizer que teria sido mais barato patrocinar a vinda de dez índios cherookees americanos para fazer a dança da chuva. O folclore televisivo seria idêntico e, se calhar, o valor de precipitação seria mais concentrado. Bem dizia o Eça que Portugal é a França... em calão!
3 comentários:
Parabens pela excelente posta. Abraço. Octávio Lima (ondas2.blogs.sapo.pt)
Tens toda a razão e realmente trata-se de uma "fantochada"!!
O q está a causar isto é realmente os problemas ambientais e os politicos devem abandonar a demagogia e o populismo.
Um abraço
Deixo aqui as FAQS sobre cloud seeding do North American Weather Consultants
What does cloud seeding cost?
The cost of cloud seeding varies greatly, depending on a large number of factors, such as which seeding methods and materials are appropriate to a specific application, the frequency of seedable conditions, the size of the intended area of effect and the duration of the project. Most cloud seeding projects carry favorable benefit/cost ratios, ranging over 20:1 in some cases. Cost questions are best addressed via direct discussion with a well qualified cloud seeding company/consultant.
http://www.nawcinc.com/wmfaq.html
Obrigado, Octávio e João, pelo inestimável feed-back. Um abraço para vocês.
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