sábado, fevereiro 21, 2015

Crónicas das Minhas Teclas



Não quero transformar este blogue numa versão low-cost das recomendações do professor Marcelo, mas, pontualmente, tenho a sorte de me passarem pelas mãos livros memoráveis. O mais recente foi Crónicas das Minhas Teclas, as memórias de Henrique Antunes Ferreira, jornalista, editor e chefe de redacção do Diário de Notícias, para além de comentador da TSF e de A Bola, entre outras publicações. Não resisto a uma curta recensão crítica, exercício perigoso num blogue que não recebe luvas (nunca ofereceram), não aceita convites (nunca os remeteram) nem convive informalmente com escritores e autores (porque não os conhece). Sairá portanto com a rispidez que faz parte do meu charme (é o que diz a minha mãe, pelo menos!)
Começo como nas fábulas infantis. Houve um tempo, há muitos, muitos anos, em que os jornais diários mandavam enviados-especiais aos principais acontecimentos jornalísticos do globo. Parece inverosímil, bem sei, mas era mesmo assim: cimeiras, guerras, conferências de imprensa eram quase tão importantes como jogos de futebol da Liga Europa. E jornalistas como Henrique Antunes Ferreira faziam o tirocínio por estes eventos, somando pontas soltas no estrangeiro, sozinhos, contando apenas com a camaradagem dos companheiros na redacção e dos jornalistas da concorrência, procurando um nexo de sentido quando o novelo estava ainda enrolado. Ditando prosa por telefone. Negociando o acesso a faxes por troca com garrafas de vinho do Porto (episódio delicioso, esse). Desenrascando-se.
Usavam uma ferramenta que costuma aparecer nas capas dos livros de memórias (conheço pelo menos três que fizeram uso desse recurso). Chamava-se máquina de escrever e as teclas matraqueadas faziam um barulho infernal. Conta-se aliás que foi o ruído da máquina de escrever que Álvaro Cunhal usava noite adentro na zona rural do Luso em 1949 que o denunciou e que levou à sua última detenção, em Março desse ano. Como se vê, a máquina de escrever é um instrumento perigoso.
Henrique Antunes Ferreira escolheu 16 histórias que viveu nos quatro cantos do planeta. Resisto à tentação de contar a que mais me impressionou e que bem merece um tratamento mais amplo, se algum dia eu encontrar os respectivos recortes na colecção do jornal da Biblioteca Nacional. Por estas páginas, desfilam o general Eanes (numa inacreditável narrativa que envolve o carro roubado de Antunes Ferreira e o staff do PR), a amada Goa do Henrique e da esposa, Angola e a guerra colonial, a Polónia de Lech Walesa (descobri, através do Henrique, que se lê "Va-ue-sa") ou encontros pitorescos com Dominique Strauss-Kahn (as meninas, sempre as meninas).
O tom é divertido e ligeiro, em jeito de conversa entre amigos. E o Henrique, fiel a si próprio, inclui aventuras e desventuras, episódios que terminaram com a justa recompensa, e digressões que não surtiram o efeito desejado, como a viagem à China de Xiaoping. É um livro honesto que não pretende – como em tantas outras memórias (incluindo de repórteres que passaram pelo mesmo jornal) – reescrever a história, nem ajustar contas. É um livro de um contador de histórias.
E é por isso que vale a pena.

5 comentários:

jose carmo francisco disse...

Será mais uma pergunta: em Luanda o ANtunes Ferreira interrogou o Fernando Grade que estava no Hospital Militar. Essa história aparece?

Gonçalo Pereira disse...

Creio que não, José do Carmo. Não me parece. Mas o Henrique Antunes Ferreira escreveu um livro só sobre a guerra colonial (Morte na Picada). Talvez aí encontre....

Mário Cardoso disse...


Meu caro, não nos conhecemos nem da vida nem das lides jornalísticas mas quero dizer-lhe que tenho pena, teríamos muito sobre que conversar. É muito boa esta sua recensão sobre obras de jornalistas. Cheguei cá ao blogue porque andava à procura de informações sobre Maurício de Oliveira, um homem que me marcou muito profissionalmente: foi o meu primeiro chefe de Redacção quando entrei para ' A Capital ' em Julho de 1969. Figura notável, como jornalista e como pessoa. Já agora: o episódio do almoço de bife do Salazar quando estava na Cruz Vermelha, já arrumado, passou-se com ele. A ementa do almoço não foi publicada por um triz, graças à atenção do tipógrafo d' O Século ', onde' A Capital ' era impressa. É que a ementa era do almoço dele, Maurício, e não do Botas... Um abraço, camarada.

Gonçalo Pereira disse...

Meu caro Mário Cardoso. É uma honra. Terei muito gosto em conversar consigo. Como talvez saiba, procuro – na medida do possível – recolher as memórias orais dos jornalistas que exerceram a profissão antes e depois da revolução de Abril. Gostaria muito de trocar impressões consigo.

Um abraço fraterno,
Gonçalo

Hermínia Nadais disse...

Como gostei de ler tudo isto acerca do Henrique!
Obrigada