Não quero transformar este blogue numa versão low-cost das recomendações do professor Marcelo, mas,
pontualmente, tenho a sorte de me passarem pelas mãos livros memoráveis. O mais
recente foi Crónicas das Minhas Teclas, as memórias de Henrique Antunes Ferreira, jornalista, editor e chefe
de redacção do Diário de Notícias, para
além de comentador da TSF e de A Bola, entre outras publicações. Não resisto a uma curta recensão crítica,
exercício perigoso num blogue que não recebe luvas (nunca ofereceram), não aceita convites (nunca os
remeteram) nem convive informalmente com escritores e autores (porque não os
conhece). Sairá portanto com a rispidez que faz parte do meu charme (é o que
diz a minha mãe, pelo menos!)
Começo como nas fábulas infantis. Houve um tempo, há muitos, muitos anos,
em que os jornais diários mandavam enviados-especiais aos principais
acontecimentos jornalísticos do globo. Parece inverosímil, bem sei, mas era
mesmo assim: cimeiras, guerras, conferências de imprensa eram quase tão
importantes como jogos de futebol da Liga Europa. E jornalistas como Henrique
Antunes Ferreira faziam o tirocínio por estes eventos, somando pontas soltas no
estrangeiro, sozinhos, contando apenas com a camaradagem dos companheiros na
redacção e dos jornalistas da concorrência, procurando um nexo de sentido
quando o novelo estava ainda enrolado. Ditando prosa por telefone. Negociando o
acesso a faxes por troca com garrafas de
vinho do Porto (episódio delicioso, esse). Desenrascando-se.
Usavam uma ferramenta que costuma aparecer nas capas dos livros de
memórias (conheço pelo menos três que fizeram uso desse recurso). Chamava-se
máquina de escrever e as teclas matraqueadas faziam um barulho infernal.
Conta-se aliás que foi o ruído da máquina de escrever que Álvaro Cunhal usava
noite adentro na zona rural do Luso em 1949 que o denunciou e que levou à sua
última detenção, em Março desse ano. Como se vê, a máquina de escrever é um
instrumento perigoso.
Henrique Antunes Ferreira escolheu 16 histórias que viveu nos quatro cantos do planeta.
Resisto à tentação de contar a que mais me impressionou e que bem merece um
tratamento mais amplo, se algum dia eu encontrar os respectivos recortes na
colecção do jornal da Biblioteca Nacional. Por estas páginas, desfilam o general
Eanes (numa inacreditável narrativa que envolve o carro roubado de Antunes
Ferreira e o staff do PR), a amada Goa
do Henrique e da esposa, Angola e a guerra colonial, a Polónia de Lech Walesa (descobri, através do Henrique, que se lê "Va-ue-sa") ou
encontros pitorescos com Dominique Strauss-Kahn (as meninas, sempre as
meninas).
O tom é divertido e ligeiro, em jeito de conversa entre amigos. E o
Henrique, fiel a si próprio, inclui aventuras e desventuras, episódios que
terminaram com a justa recompensa, e digressões que não surtiram o efeito
desejado, como a viagem à China de Xiaoping. É um livro honesto que não
pretende – como em tantas outras memórias (incluindo de repórteres que passaram
pelo mesmo jornal) – reescrever a história, nem ajustar contas. É um livro de
um contador de histórias.
E é por isso que vale a pena.
5 comentários:
Será mais uma pergunta: em Luanda o ANtunes Ferreira interrogou o Fernando Grade que estava no Hospital Militar. Essa história aparece?
Creio que não, José do Carmo. Não me parece. Mas o Henrique Antunes Ferreira escreveu um livro só sobre a guerra colonial (Morte na Picada). Talvez aí encontre....
Meu caro, não nos conhecemos nem da vida nem das lides jornalísticas mas quero dizer-lhe que tenho pena, teríamos muito sobre que conversar. É muito boa esta sua recensão sobre obras de jornalistas. Cheguei cá ao blogue porque andava à procura de informações sobre Maurício de Oliveira, um homem que me marcou muito profissionalmente: foi o meu primeiro chefe de Redacção quando entrei para ' A Capital ' em Julho de 1969. Figura notável, como jornalista e como pessoa. Já agora: o episódio do almoço de bife do Salazar quando estava na Cruz Vermelha, já arrumado, passou-se com ele. A ementa do almoço não foi publicada por um triz, graças à atenção do tipógrafo d' O Século ', onde' A Capital ' era impressa. É que a ementa era do almoço dele, Maurício, e não do Botas... Um abraço, camarada.
Meu caro Mário Cardoso. É uma honra. Terei muito gosto em conversar consigo. Como talvez saiba, procuro – na medida do possível – recolher as memórias orais dos jornalistas que exerceram a profissão antes e depois da revolução de Abril. Gostaria muito de trocar impressões consigo.
Um abraço fraterno,
Gonçalo
Como gostei de ler tudo isto acerca do Henrique!
Obrigada
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