quinta-feira, fevereiro 14, 2013

O telegrama de Salazar


Passavam trinta minutos da meia-noite naquela madrugada de cinco para seis de Abril de 1955. Um homem, funcionário da Presidência do Conselho, entrou na única estação de correios aberta àquela hora. Levava na mão duas folhas manuscritas e foi atendido por António Esteves Borges, terceiro oficial de exploração nos CTT. Homem solitário, natural de Ervedal da Beira, Borges morava na Rua do Passadiço. Aos 36 anos, era solteiro. Preparava-se, sem o saber, para a noite mais estranha da sua vida.
De poucas palavras e modos solenes, o cliente apresentou-se ao postigo, mostrou as duas folhas manuscritas e explicou, em voz baixa, que se tratava de um telegrama oficial, a expedir com urgência. Poderia ser mais um serviço monótono numa madrugada em Lisboa, mas António Borges espreitou as folhas redigidas em português e o seu coração começou a bater com maior rapidez. Não era o texto que o enervara – eram os nomes do destinatário e do remetente.
Percebendo a estupefacção, o cliente confirmou-os no mesmo tom de voz solene: tratava-se de um telegrama de Sua Excelência, o Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, para Sua Excelência, o Senhor Winston Churchill, em Inglaterra.
Procurando manter a reserva profissional – afinal, um funcionário dos CTT vê milhares de situações invulgares ao longo da carreira – e fazendo notas mentais para fixar o texto que mais tarde repetiria aos amigos do bairro, António Borges colou diligentemente as folhas manuscritas no impresso apropriado e iniciou a contagem das palavras da mensagem, procedimento indispensável para calcular o custo do serviço.
Quase no fim do texto, parou a leitura. Não conseguia identificar duas palavras. Leu-as. Releu-as. Teimosamente, a caligrafia do chefe de Estado não fazia sentido. Borges recordou de memória o protocolo dos CTT e chamou o colega de turno, o terceiro oficial José Ramadas. Mas nem assim o novelo se desfiou. Apesar da sua vasta experiência na decifração de caligrafias alheias, os dois funcionários postais não conseguiam perceber duas palavras redigidas pelo punho de António de Oliveira Salazar. Já com o cliente também envolvido na descodificação, releram toda a frase na esperança de que fosse possível interpretar o texto por sequência do assunto. Nada...
Cada vez mais nervoso, António Borges perguntou ao interlocutor se seria possível telefonar a quem lhe entregara a mensagem ou a outro interlocutor na Presidência do Conselho que conhecesse o teor do texto. Talvez até Sua Excelência, o Senhor Presidente do Conselho, pudesse ajudar. Desta vez, foi o cliente, funcionário de baixa patente, a mostrar nervosismo. “Nem pensar!”, balbuciou. “Não se acorda o Senhor Professor à meia noite e meia para esclarecer dúvidas destas.”
Suando em bica e com o cérebro a trabalhar a cem à hora, António Borges sugeriu que talvez pudesse aceitar o telegrama sujeito a rectificações posteriores, mas, na verdade, depois de proceder à transmissão, não conseguia garantir que a mensagem não fosse logo entregue a Sua Excelência, o Senhor Churchill. “Quem sabe que inconvenientes ou aborrecimentos aconteceriam se eu interpretasse erroneamente duas palavras num diálogo entre chefes de Estado?” Borges imaginou o pior. Um escândalo internacional. O corte de relações diplomáticas. Uma declaração de guerra. Ah, o maldito azar que o colocara no turno da noite, logo hoje!
Lembrou-se entretanto de uma derradeira solução salvadora. Talvez, pela sua importância, o telegrama devesse ser expedido dos escritórios da Marconi, também em Lisboa. “Afinal, eles lidam com mensagens do senhor Presidente do Conselho e talvez estejam mais habituados à letra.”
Como a estação de correios estaria aberta toda a noite e sem saber verdadeiramente o que fazer, o cliente saiu para a rua, procurando a cabine telefónica mais próxima. Ligou para a Presidência do Conselho e pediu instruções. Dali, avisaram-no que o melhor seria voltar para trás, trazer o telegrama não expedido e aguardar que Sua Excelência acordasse na manhã seguinte.
No dia seguinte, 6 de Abril de 1955, António Esteves Borges foi mandado comparecer na primeira repartição dos Serviços de Exploração, onde lhe foi instaurado um processo disciplinar. Foi forçado a preencher um auto de declarações na presença de Jaime Furtado Fernandes, chefe de serviço de exploração de primeira classe, que depois o enviou para a Presidência do Conselho.
A mensagem de António Oliveira Salazar para Winston Churchill só foi transmitida na manhã seguinte, conforme indicação singela do Diário de Lisboa, que noticiou o envio. Churchill cumprira na véspera o seu último dia no governo, pedindo a demissão do seu derradeiro cargo público durante a tarde, por motivos de saúde. E Salazar perdeu a oportunidade de cumprimentá-lo ainda como primeiro-ministro.
Diário de Lisboa, 6 de Abril de 1955 (Arquivo da Fundação Mário Soares)


O PROCESSO
Todo o texto baseia-se no Auto de Declarações de 6 de Abril de 1955, tal como ele está disponível no Arquivo Oliveira Salazar da Torre do Tombo. Documento: “Não aceitação, pelos correios, de um telegrama do Prof. Doutor A. de Oliveira Salazar para Winston Churchill.” Cota: Arquivo Salazar, PC-42 cx. 624, pt. 9

1 comentário:

Anónimo disse...

Que história deliciosa!