sexta-feira, fevereiro 22, 2013

A gravata da União Nacional


Era segunda-feira e isso talvez explicasse o mau humor matinal do senhor Renato. Funcionário de longa data da União Nacional, partido único do regime, chegara a pulso a chefe da secretaria da organização, cargo administrativo que recompensava, por fim, a sua dedicação ao Estado Novo. Mas, hoje, o dia não lhe corria bem. Na verdade, os dissabores tinham chegado com a eleição de António Júlio Castro Fernandes para novo mandato na presidência da Comissão Administrativa da União Nacional em Fevereiro deste ano de 1965.
Firme com os subordinados, aos quais exigia disciplina feroz, e seguidor à letra dos regulamentos, Castro Fernandes assustava toda a organização. Homens crescidos tremiam como varas verdes face às suas fúrias, fúrias essas que também já tinham tido o senhor Renato como alvo. 
O chefe da secretaria prometera a si mesmo que não passaria por nova humilhação.
Na agenda, neste dia 25 de Outubro de 1965, estavam compromissos previsivelmente enfadonhos. A manhã começara com uma sessão interminável no Palácio das Galveias para comemorar o 818.º aniversário da conquista da cidade de Lisboa aos mouros. A efeméride era absurda e pouco redonda, mas servia os interesses de propaganda do partido, uma vez que se aproximavam as eleições legislativas de 7 de Novembro. Não estava em risco a vitória da União Nacional (que aliás arrebatou os 120 lugares disponíveis), mas sim a unidade pública do regime. “Escusavam porém de ter entregue 125 medalhas de assiduidade e bons serviços a 125 funcionários da câmara”, pensou o senhor Renato com os seus botões. O aborrecimento era tão evidente que várias pessoas na audiência adormeceram e o senhor Renato deu por si a contar os veios de tinta na parede.
Pior foi o que se seguiu. Foi novamente descomposto pelo Dr. Castro Fernandes, como se fosse dele a culpa pela estopada que a Câmara servira aos presentes. Furioso consigo próprio, o senhor Renato saiu do Palácio desejoso de implicar com alguém. Lá fora, o motorista António Martins Gonçalves aguardava, sorridente, pela saída dos dignitários. Caminhando decidido na sua direcção, o senhor Renato vociferou:
- Senhor Gonçalves, não desconhece certamente que a farda da União Nacional implica uma gravata preta.
Trocista, o motorista retorquiu:
- Não, senhor. Não desconheço.
- Queira então explicar por que motivo enverga uma azul com pintas vermelhas.

Homem dos bairros populares, de humor corrosivo, o motorista voltou a responder:
- Se a União Nacional quer uma gravata preta, pois que a mande comprar e ma entregue, porque o dinheiro não chega para tudo.

Furioso, o senhor Renato encheu o peito de ar e atirou uma ordem dramática:
- Queira o senhor saber que uma gravata preta custa 15 escudos e não quero que se apresente hoje à noite em casa do senhor Conselheiro Albino dos Reis com a gravata de que é agora portador.

Voltou rapidamente as costas, sem dar espaço para a resposta, embora lhe parecesse ter ouvido uma frase murmurada:
- E se fosses bardamerda?

O dia continuou. Por motivos que o destino tece, o senhor Renato foi sendo descomposto regularmente pelo Dr. Castro Fernandes. À noite, havia comício no Teatro da Trindade para apresentação dos candidatos da União Nacional no círculo de Lisboa. A fina-flor do partido estava presente. Ali estavam o general Barbieri Cardoso, o comandante Garcia Teixeira, o Dr. Pinto de Meneses, o senhor Cazal-Ribeiro, o professor André Navarro.
Um carro oficial estacionou entretanto à porta. Transportava o conselheiro Albino dos Reis. Do interior, um motorista saiu rapidamente para abrir a porta ao dignitário. O senhor Renato esfregou os olhos para ter a certeza de que estava a ver bem.
- Aquela besta! – vociferou, arrependendo-se de imediato por ter falado em voz alta, não fosse alguém cuidar que se referia ao senhor Conselheiro.

Abrindo a porta triunfalmente e sorrindo olimpicamente para o senhor Renato, o motorista António Martins Gonçalves exibia a mesma gravata azul com pintas vermelhas.

No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, o senhor Renato chegou à secretaria e segurou uma folha timbrada da União Nacional. Releu mentalmente o lema do canto superior direito (“Nada contra a nação, tudo pela nação”), colocou-a na sua máquina de escrever e digitou furiosamente uma carta:
Exmo. Senhor Presidente da Comissão Administrativa,
Para os efeitos julgados convenientes, trago ao conhecimento de V. Exª o seguinte…
Narrou todos os incidentes, não se esquecendo de referir que o referido motorista tinha o vencimento de 2.400 escudos. Entregou a folha dactilografada à secretária do Dr. Castro Fernandes e esperou alguns minutos. Pouco depois, a folha foi-lhe devolvida, com um comentário manuscrito no canto superior esquerdo, como o presidente da Comissão Administrativa sempre fazia.
“Regista-se e lamenta-se a falta de disciplina do motorista. Aplique-se um castigo de 1 dia de suspensão sem vencimento com averbamento na respectiva folha. Previna-se que a repetição da falta pode originar a dispensa dos seus serviços.”
Finalmente feliz, o senhor Renato acariciou a sua gravata preta da União Nacional.

O PROCESSO
Todo o texto baseia-se no documento número 35, de 26 de Outubro de 1965, tal como ele está disponível no Arquivo da União Nacional da Torre do Tombo. Cota: Arquivo União Nacional, Caixa 957, Mç2, n.º 35.

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