sexta-feira, novembro 02, 2012

Quando a derrota não é órfã


Conta-se que, aos 96 anos, o senhor John Rockefeller recebia um exemplar único do “New York Times”. Era uma edição composta apenas por notícias agradáveis para não assustarem o fraco coração do ancião, que vivia assim a doce sensação de ignorância enquanto o resto do mundo colapsava. Os mortais comuns, como o leitor e eu, não têm essa sorte: somos forçados a viver no mundo real, onde a natureza, pontualmente, faz sentir a sua fúria. Em 2009, isso voltou a suceder na cidade de Áquila (Itália), numa região sismicamente tão activa como o Japão, a Indonésia ou a Califórnia, mas tristemente esquecida da sua condição (lembra-lhe outra grande cidade europeia? Pois...).
No mês de Outubro, seis especialistas da Comissão Nacional para a Previsão dos Grandes Riscos e um funcionário público receberam pesadas penas de prisão pela sua actuação durante a crise sísmica de 2009. O tribunal considerou-os culpados de “homicídio múltiplo”, responsabilizando-os pela negligência que provocou a morte de 309 pessoas.
Como tantas vezes sucede nas ondas noticiosas, levantou-se um coro internacional de protestos, que assinou petições e pediu a revogação da sentença, acusando o tribunal italiano de ter punido os sete réus porque estes falharam a previsão do sismo, uma proeza por enquanto impossível para a ciência (ver por exemplo esta e esta notícias) Outros argumentaram que os cientistas eram os principais especialistas italianos no tema, como se a reputação isentasse alguém da responsabilidade.
Note-se, porém, que não foram essas as falhas que o tribunal condenou. Como bem notou o Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores em comunicado recente, a decisão do tribunal não puniu a ciência – puniu, sim, a comunicação pública da ciência. Os sete réus foram considerados culpados porque, apesar de possuírem dados científicos que apontavam para a possibilidade de um evento sísmico de grande intensidade, optaram por manter o silêncio. Falharam na sua missão de preparar convenientemente a população e de a alertar para os comportamentos adequados.
Todo o caso de Áquila foi irrepetível, mas reveste-se de amplos motivos para reflexão. Os próprios media deverão assumir parte da responsabilidade, particularmente porque concederam durante semanas tempo de antena a um “louco” local, um indivíduo sem conhecimento ou perícia científica, que fazia previsões após cada evento sísmico. A sua acção gerou pânico e obrigou à famigerada reunião da Comissão Nacional para a Previsão dos Grandes Riscos, na qual o gabinete teve de montar uma estratégia para acalmar a população e responder aos apelos públicos que exigiam tranquilidade.
O que se seguiu foi trágico. A Comissão explicou aos jornalistas que existia apenas uma probabilidade inferior a 2% de o enxame de pequenos sismos que se registava desde Outubro de 2008 produzir um sismo de intensidade mais elevada. Sem controlo sobre a sessão de perguntas e respostas, como um barco à deriva, a Comissão deixou os meios de comunicação liderarem o rumo do debate. Por fim, quando foi perguntado se os habitantes de Áquila poderiam beber tranquilamente um copo de vinho em suas casas, um dos peritos respondeu apenas: “Absolutamente”
Seis dias depois, um sismo de magnitude 6,3 destruiu a cidade.
O que falhou em Áquila – e que foi alvo da dura sentença – foi a obrigação de os especialistas comunicarem abertamente os riscos à sociedade, embora seja argumentável que no banco dos réus haveria espaço também para os responsáveis políticos do governo italiano. A excessiva passividade dos sete réus foi um triste serviço à ciência e esteve, em última instância, ligada ao desfecho.
No dia 24/10, o "Público" perguntava: “Que relação terão os cientistas com a sociedade depois do sismo de Áquila?” A resposta, espero, será uma relação mais responsável face aos riscos, uma comunicação mais aberta de todos os cenários possíveis em situação de alarme público, tendo em conta que o silêncio e a omissão passaram a ser responsabilizáveis, na sequência da importante sentença do caso Áquila.
Termino como comecei. Itália deu um bom exemplo de um processo de responsabilização até às últimas consequências na sequência de uma catástrofe natural. Se é verdade que as catástrofes são, por definição, actos da natureza, não é menos verdade que a história nos lembra que há sempre actos humanos que potenciam os riscos e aumentam as baixas.
Um nobre italiano, o conde Galeazzo, ministro dos Negócios Estrangeiros, queixou-se um dia: "Como sempre, a vitória é recebida por cem pais; já a derrota é sempre órfã!" 
Em Áquila, por uma vez, a derrota não foi órfã!

Post Scriptum: Na semana passada, um reputado especialista português e um bom amigo, foi questionado pela imprensa sobre o caso de Áquila. Perguntaram-lhe se achava justa a sentença para os sete? A resposta saiu pronta: "Não. Faltavam mais quatro políticos!"

Sem comentários: