Os
livros velhos têm vida própria. Melhor: têm vidas, várias, correspondentes aos seus
múltiplos proprietários. Gente que os leu (ou não leu), que os possuiu, que os arrumou
em estantes. Uns mantêm roupagens impolutas – a capa sem fracturas, as páginas
imaculadas. Gosto mais dos outros. Dos que manifestamente foram lidos. Marcados.
Sublinhados, às vezes. Manchados pela avidez de seguir de página em página, com
pouco respeito por quem os lerá de seguida.
Às
vezes, no solitário mundo dos alfarrabistas, descobrem-se pequenos tesouros, quase
saídos de um conto de Borges. São pequenos testemunhos de apreço. Uma dedicatória
a gente que já partiu; um comentário anotado à margem; um vestígio do proprietário
transitório que já se esfumou.
Aconteceu-me
hoje. Na Livraria Pó dos Livros, última esperança dos lisboetas que
pretendem encontrar obras caídas em desuso, comprei o apetecido “Os Fragmentos” de
Ferreira de Castro, edição da Guimarães & C., com capa magnífica de João Abel
Manta. No interior, sem motivo aparente, alguém guardou um recorte de jornal,
do “Diário Popular”, também ele já uma recordação distante. Foi geometricamente dobrado
em oito. Conan Doyle veria nisso um indício de uma personalidade meticulosa. Na página amarelecida, lê-se uma reportagem de Daniel Rodrigues, de 11 de Julho
de 1987, sobre a Casa-Museu Ferreira de Castro. No verso, há anúncios a marcas
que já não existem e a produtos risíveis que já não usamos.
Não
tenho qualquer pista sobre o dono, ou antigos donos, deste volume. Não sei quem foram,
nem de onde eram. Percebo que devoraram avidamente o livro, mas pouco mais sei.
Porque teriam guardado este recorte, esta página, esta edição em particular do “Diário
Popular”? O desconhecimento tortura-me.
2 comentários:
Fragmento dentro de Fragmentos...
Mão amiga aponta-me para uma nota biográfica sobre o jornalista que assinou esta peça no Diário Popular, falecido em 2010. Aqui fica o link: http://www.portal.ecclesia.pt/pub/14/noticia.asp?jornalid=14¬iciaid=78838
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