Warren
Burkett, um dos grandes teorizadores sobre a relação entre a ciência e o
jornalismo, costumava contar uma anedota.
Um
velho professor de Química lecciona uma aula quando, a dada altura, é
interrompido pelos gritos eufóricos de um estudante.
Sem
se conter, o aspirante a cientista entra na sala e grita, rubro de emoção:
-
Eureka! Descobri um novo solvente. É o solvente mais potente do mundo! Consegue
dissolver qualquer material. Plástico. Vidro. Barro. Tudo.
Impassível
e calejado por “mil” descobertas, o professor responde secamente:
-
Queira por favor explicar aos seus
colegas em que recipiente vai guardar a sua descoberta.
A
ciência tem protocolos bem definidos para produzir respostas que são, por
natureza, efémeras e válidas até alguém provar a sua obsolescência. Em 1900,
numa reunião da Associação Britânica para o Avanço da Ciência, Lorde Kelvin
argumentou, pesaroso, que, em Física, já nada mais haveria a descobrir. Cinco
anos mais tarde, um alemão naturalizado suíço, que passava os dias frustrado num
gabinete de patentes, apresentou a Teoria da Relatividade e destruiu as
balizas que delimitavam a Física.
Notem, portanto, que não nego a possibilidade de um achado científico produzir
ruptura total com o conhecimento disponível. Simplesmente, ela não sucede com
frequência. E, normalmente, os Einsteins da ciência
publicam as suas descobertas em revistas científicas, sob supervisão dos pares.
O New England Journal of Medicine criou inclusivamente a regra Ingelfinger,
através da qual perde interesse em publicar artigos que tenham sido
apresentados aos media antes da submissão dos pares.
Consideremos,
pois, mau sinal quando um cientista prefere convocar os meios de comunicação
para anunciar revelações antes de publicar o seu contributo.
OS
PRÉ-PORTUGUESES DOS AÇORES
No
dia 24 de Agosto, a agência Lusa emitiu um despacho lamentável. Seguia as
regras elementares da atribuição de informação às fontes e era fiel ao
comunicado de imprensa que o motivou, mas isso, terão paciência, não chega
quando está em causa um anúncio bombástico de uma descoberta científica.
A
Associação Portuguesa de Investigação Arqueológica (APIA) foi fundada em 1998.
Tem arqueólogos como colaboradores e tem todo o direito a colaborar no debate
científico sobre o povoamento dos Açores. Assiste-lhe igualmente o direito de
propor as teses radicais que considerar pertinentes e de chamar a imprensa para
o debate. Cumpre a sua agenda e segue uma estratégia óbvia de antecipação da
aceitação jornalística ao reconhecimento científico, preferencialmente com
anúncios sexy, de evidente apelo aos sentidos (o
grupo de Friedman chamar-lhes-ia as abordagens Ghee whiz!).
A
Lusa, porém, não pode aceitar de ânimo leve que teses apoiadas em quinhentos
anos de historiografia sejam contestadas de forma tão leviana e sem
contraditório, por um parceiro sem historial conhecido. Que eu tenha
conhecimento, a APIA não publicou, em revista científica reconhecida, com
revisão de pares, nenhuma das alegações que tem vindo a fazer desde 2010 nos
Açores. Publica livros, mas estes não são submetidos ao crivo da academia.
Participa em conferências, mas a oportunidade de contraditório destes eventos
depende sempre da audiência. Por outras palavras, até prova em contrário, não
faz ciência.
Não
basta por isso à Lusa seguir o manual do despacho sobre política, citando o
comunicado de imprensa do partido X. Se vê noticiabilidade no argumentário da
APIA (povoamentos pré-portugueses provados pelos
maroiços da ilha do Pico), está obrigada, no mesmo despacho, a incluir
pontos de vistas que dele discordem.
Faço
questão de ressalvar que a discussão é jornalística, não é arqueológica.
BOLA
DE NEVE
É
evidente que os constrangimentos jornalísticos apressam o processo de
verificação da informação. Em nome do “furo”, ignoram-se fases de validação.
Colocam-se na rede informações incompletas, por vezes erradas, com o argumento
de que podem sempre ser corrigidas. Sei disso tudo. Também sei que, nos livros
de estilo que vamos compondo nas nossas redacções, as personalidades de
reconhecida capacidade técnica dispensam as mesmas verificações rigorosas das
fontes sem capital simbólico. Não se questiona abertamente José Mattoso se ele
apresentar uma nova tese sobre a Idade Média, nem Galopim de Carvalho num texto
que redefina a geologia sedimentar. Admite-se, como princípio operacional, que
uma carreira cimentada em mérito académico reduz (mas não impede) o risco de
publicar disparates. Mas a APIA não é Mattoso, nem Galopim. E a Lusa tem
responsabilidade acrescida porque “cria” agenda nos meios de comunicação que
dela dependem.
Os
últimos dias de Agosto foram assim caricatos. Numa réplica perfeita do
efeito-manada, o despacho da Lusa foi repetido mil vezes. Do “Açoriano
Oriental” à “Rádio Vaticano” (palavra!), repetiu-se o mesmo texto,
acriticamente. No mesmo dia, uma peça inqualificável do “Expresso” seguiu o
mesmo tom, sem reserva, do despacho da Lusa. Fala em pirâmides e em praças
cerimoniais, estabelece elos com o Mediterrâneo e com o México, com
aborígenes do Norte de África e com as Canárias. Tudo na ilha do Pico. Como na
anedota, queiram por favor explicar aos seus colegas onde estão guardados os
vestígios palpáveis destas civilizações.
Quando
chegou finalmente um travão a esta avalancha aborígene lançada sobre o Pico já
a torrente era imparável. Três dias depois, o “Público” produziu um artigo
equilibrado (disponível por enquanto aqui), noticiando as alegações dos “jovens lobos”, mas ouvindo as
refutações peremptórias dos dois especialistas (Élvio Sousa e Ana Margarida
Arruda), ambos com trabalho de campo nos Açores, ambos com trabalho publicado
sobre a expansão marítima, ambos com reputação nos respectivos campos de saber.
Ontem,
chegou por fim, no mesmo jornal, um artigo de opinião de um arqueólogo,
questionando abertamente a validade científica das “provas” apresentadas aos media,
mas talvez já seja tarde. Está plantada, no subconsciente nacional, a ideia da
pré-colonização açoriana. A estratégia resultou.
Creio
que está na hora de começarmos a esboçar um 11.º Mandamento, este destinado a
jornalistas que relatam ciência: Não anunciarás “descobertas” mirabolantes
sem que estas tenham sido validadas pela comunidade de especialistas.
Sob
risco de caíres no ridículo à mesma velocidade com que proferes a palavra
Eureka!
Em tempo: réplica bem humorada de Miguel Albergaria ao autor aqui.
Em tempo: réplica bem humorada de Miguel Albergaria ao autor aqui.
16 comentários:
Como sempre, tem de vir um palhaço participar no debate dos Velhos do Restelo, que só querem a arqueologia para si, com as suas escavações financiadas, as suas publicaçõezinhas sagradas, os seus códigos, as suas coutadas. Este texto é uma vergonha pelo que tem de arcaísmo e atavismo.
Pronto! Ficamos assim.
Este tipo de actuação, de há uns anos para cá, faz-me sempre lembrar um John Kwok à portuguesa. Diz-se o que nos apetecer, sem fundamentos palpáveis nem respeito pelas formas universalmente aceites de fazer ciência séria e, quando questionados, o insulto salta com maior rapidez do que a das embarcações que teriam transportado as ditas indústrias com paralelos nas aborígenes africanas (seja lá o que isso for).
Caro Gonçalo, de facto, mais vale "ficarmos assim". Tudo o mais, é desperdício de tempo e esforço com quem parece apenas pretender cavalgar uma onda de mediatismo injustificado.
Caro Gonçalo,
Nao podia concordar mais consigo. Tenho acompanhado as noticias que se têm elaborado sobre as descobertas nos Açores e já começa a passar do ridículo para o preocupante.. Espero que os seus colegas tenham uma abordagem mais crítica na forma de noticiar e procurem outras informações nos meus colegas (arqueólogos), com trabalho reconhecido pelos seus pares.
Na minha opinião, Arqueologia e Jornalismo procuram ambos a mesma coisa no fundo: Pesquisar, procurar e dar a conhecer aos outros a verdade sobre alguma coisa, da forma mais correcta e objectiva possível.
Este texto chama a atenção para o efeito-manada que grassa no jornalismo português - porventura, europeu e/ou mundial - e para os perigos que o mesmo representa para o conhecimento da verdade científica.
Em boa hora, o seu autor - com provas dadas à frente da edição portuguesa de uma das mais prestigiadas publicações a nível mundial (quiçá, a mais prestigiada) - fez referência à falta de cuidado que os meios têm hoje em dia, no tratamento da informação que lhes chega, a partir das mais diversas fontes. A transcrição de comunicados de imprensa, citando fontes que - por muito boa vontade que tenham, e por muito sérias que sejam as suas intenções - não possuam historial científico reconhecido pelos seus pares, sem a necessária validação - ou, pelo menos, o contraditório - por entidades de reconhecida competência na matéria, constitui um monumental tiro no próprio pé, e - muito mais grave do que isso - um mau serviço à comunidade.
A notícia faz-se de factos e - mais do que dada com espetacularidade - tem que ser verdadeira. É o que distingue um meio de comunicação social de um romance de aventuras, por exemplo.
A questão do jornalismo de índole científica é premente, nos dias de hoje. E poucos - muito poucos, mesmo - jornalistas estão cabalmente habilitados para a tratar, quer ao nível de conteúdo científico, quer ao nível da linguagem adequada para o transmitir ao designado grande público.
Testemunho, aqui, o empenho que o autor deste texto tem tido no sentido da mudança deste estado de coisas...
Dou-lhe os parabéns pela lucida lucidez e peço que mantenha a possível calma com alguns destes garotos (infelizmente tivemos a indulgência de criar uma narcisista e autocomplacente geração de king baby´s), enfim: como sempre diz um amigo "na dúvida, mantenha sempre o charme"!
na devida conta, dá-se ao público o que ele quer: a Atlântida!
Li o texto com atenção e deixo-lhe uma questão: e se as teorias dos jovens arqueólogos se vierem a confirmar? Se os vestígios que eles dizem ter encontrado forem efectivamente marcas de um povoamento antigo? Vai pedir desculpa à Lusa, ao Expresso, à APIA, ao município da Madalena?
FA
Também disseram a Galileu e a Giordano Bruno que estavam errados. Olhe que com essa atitude a sua amada academia não vai longe... Aliás nao sairá do mesmo sítio. Ficará parada, imóvel, agarrada ao que julga saber.
Está tudo doido? Giordano Bruno? Falamos de uma farsa histórica, de uma tese fantasiosa e fabricada com imaginação, mas sem qualquer sustentabilidade.
Respondendo a um destes comentários, sempre digo que, no caso remoto de tal acontecer, os jornais que noticiaram o caso continuariam a ter errado. No momento em que publicaram ou difundiram as notícias, tratava-se de uma farsa.
Aprecio muito o papel do jornalismo na sociedade civil, mas ele não pode antecipar-se à ciência e aos seus processos de validação. Em arqueologia como em qualquer outra ciência, social ou natural.
Bem...
Triste texto, incoerente para quem é Diretor de uma Revista "Científica"
Mostra que quem escreveu não sabe nada da realidade do que se passa na Arqueologia Portuguesa, não fez o devido dever de casa.
Não existem pares na arqueologia portuguesa, existem impares. Não existe mérito académico em Portugal, existe conhecimento político e afinidades onde todos puxam as brasas para as suas sardinhas
São sempre os mesmos que manipulam a pouca verba que existe, São os mesmos que hoje DOUTORES construíram suas teses graças ao trabalho de alunos e nunca os citaram como descobridores ou como ajudantes.
Não se pode confiar em DOUTORES assim.
Não se pode confiar em DOUTORES que impedem alunos de reverem os materiais das suas teses a luz das novas tecnologias.
Não se pode confiar em Pesquisadores tendenciosos, preconceituosos e com ideias pré-concebidas, onde somente eles possuem a verdade absoluta.
Poucos pesquisadores em Portugal estão verdadeiramente livres disso e os poucos que existem, não se pronunciaram sobre o assunto.
Cumprimentos
Certos comentários aqui expressos fazem-nos lembrar o famoso chavão "I want to believe", popularizado por uma antiga série televisiva. Não se trata de investigação científica inovadora, mas sim de pseudo-ciência, alicerçada em alegações místicas (Atlântida, linhas energético-telúricas, boas vibrações, etc.) e absoluta ausência de provas materiais. A acreditar nestes investigadores a civilização que teria colonizado os Açores fez algo inédito em toda a História da Humanidade. Ou seja, navegou em pleno oceano, até a um grupo de ilhas, para construir um impressionante conjunto de túmulos e pirâmides, simplesmente por que lhe deu na telha. Curiosamente, apesar do feito, não enterrou lá ninguém, não construiu povoados e não deixou um único artefacto cerâmico, lítico ou metálico que testemunhe tal ocupação.
Excelente post. obrigado por "verbalizar" o óbvio.
Só me espanta o chorrilho de disparates e insultos com que alguns o presenteiam.
Como já alguém disse :" A Ignorância é muito arrogante"
AN
Ainda por aí muita ignorância à solta, até porque a National Geographic não é uma revista científica, é uma revista de divulgação científica. E não compreender a diferença, diz tudo sobre o conhecimento de Ciência de quem confunde tais conceitos.
http://nectsicpd.blogspot.pt/2014/04/a-expansao-do-imperio-mongol-aos-acores.html
Anónimo
Em Gobekli Tepe não existem vestígios de ferramentas nem assentamentos permanentes.
"...para construir um impressionante conjunto de túmulos e pirâmides, simplesmente por que lhe deu na telha. Curiosamente, apesar do feito, não enterrou lá ninguém, não construiu povoados e não deixou um único artefacto cerâmico, lítico ou metálico que testemunhe tal ocupação".
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