Fiel ao estigma de que o jornalista é, acima de tudo, um profissional que escreve o que lhe pedem, realizo seguidamente um exercício de sarcasmo que, espero, ajudará o leitor a compreender a complexidade da questão da Arrábida. Proponho-me, numa demonstração de dupla personalidade, evidenciar os prós e contras do novo/velho Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida. Começo pelo ponto de vista abolicionista.
Sou pescador e há dez anos que usufruo de fundos comunitários para reconverter a minha embarcação. Usei-os até à exaustão e aproveitei também para restaurar a casa e o quintal. Toda a gente o faz. Não vejo mal nisso.
Há muitos anos, fiz contratos em Marrocos e pescava então grandes quantidades de peixe. A vida corria bem e as capturas na região costeira da Arrábida ficavam para os pescadores de ocasião e para os maluquinhos da caça subaquática. Os contratos acabaram. Voltámos para casa com o rabo entre as pernas. Sem outra solução, intensificámos a pesca nesta zona, do cabo Espichel a Setúbal. As quantidades de peixe disponível diminuíram a olhos vistos. Há espécies que já não vejo há anos.
Agora, dizem-nos que querem criar uma zona de protecção especial nestas águas. Querem proibir a captura de peixe em algumas zonas e noutras impõem-nos limites. Estamos contra, claro está.
Entretanto, apareceram uns senhores muito simpáticos, proprietários de embarcações de lazer, que se reuniram connosco e se ofereceram para fazermos lobby em conjunto contra o Plano de Ordenamento. Ofereceram-se também para ajudar a pagar o custo das manifestações, das greves e dos cartazes. Coitados. Afinal, gostam mais de nós do que pensávamos.
Nas reuniões com a direcção do Parque e com os jornalistas, esquecemos o números de pescadores reais na região e citámos sempre o número de licenças atribuídas para pescar aqui. Não somos parvos. Se parecermos mais, teremos uma posição mais forte. Como a arte xávega continuará a ser aceite, dissemos todos que ainda pescamos assim. Já se sabe, o seguro morreu de velho.
O mais engraçado é que, estando inscritos como desempregados, continuamos a pescar. Dizemos que é por lazer, mas vendemos o excesso em restaurantes e peixarias. Os outros, os que ainda pescam oficialmente, estão danados connosco, porque lhes fazemos concorrência, mas o que pode um homem fazer? Há que levar mais dinheiro para casa.
Os diabos dos biólogos querem também deitar abaixo as casas ilegais, bem como tudo o que tiver sido construído sem autorização dentro dos limites do Parque. Aqui as câmaras municipais ajudaram imenso. Descobriram dois desgraçados que vivem numa barraca ilegal e fizeram deles as vozes do nosso protesto. É bem pensado. Para os jornalistas, ajuda imenso ter uma história triste. Coitadinhos dos homens, vão ser despejados. É claro que nós e as câmaras sabemos que este caso é uma gota de água num oceano de ilegalidades da região – que está repleta de segundas e terceiras habitações. Mas porque havemos de ser nós a pagar pela desorganização dos serviços públicos? Está construído. Fica de pé. Nem que tenhamos de barrar o caminho às escavadoras.
Escutemos agora o lado proteccionista…
Sou biólogo e acompanho as investigações dos últimos anos que comprovam que os “stocks” de peixe da região decresceram abruptamente. Algumas espécies são caçadas com tanta frequência que os pescadores já só apanham juvenis. Nunca houve tantos barcos na região. Há um problema urgente de conservação a resolver.
Os residentes destas vilas parolas não percebem nada de ciência. Nas sessões públicas de esclarecimento, naturalmente, já íamos preparados para não ceder um milímetro. Em Portugal, quando se chega a essa fase, o plano já está concluído e pronto a ser impresso. Por que motivo haveria a Arrábida de ser diferente? Explicámos os problemas de parque, mas as pessoas não pareciam compreender o nosso jargão científico. Quando apresentámos o novo plano, fizémo-lo com firmeza. Nestes casos, repito, marca-se posição e não se cede. Gerou-se uma algazarra dos diabos. Os representantes das câmaras, que até aí tinham sido aliados convincentes, perceberam rapidamente a mudança e seguiram a corrente. A população atacou-nos, verbal e fisicamente. Tivemos sorte de sair ilesos. Bando de cabotinos.
Nos dias seguintes, fomos traídos pelo secretário de Estado e pelo Instituto da Conservação da Natureza. Não saíram em nossa defesa e emitiram declarções reticentes. Os votos contam muito, percebemos então. O plano foi varrido para debaixo do tapete ou para lá das eleições.
Mesmo assim, não mudámos de estratégia. Agora temos um secretário de Estado profundamente proteccionista e há que aproveitar. Arregaçamos as mangas e vamos a isso. Chamam-nos arrogantes e prepotentes, mas o que somos é obstinados. Levamos o plano para frente, sem concessões. Não mudamos uma vírgula ao que foi definido. Que a GNR e a guarda costeira punam depois os infractores.
Termina assim o meu ataque de dupla personalidade. Que decida o leitor o futuro do Parque Natural da Arrábida.
2 comentários:
É triste a ironia mas muito real.
É caso para dizer... Receba dois magnificos bilhetes para viajar no fantástico barco de visão submarina em Sesimbra (Já há quem lhe tenha chamado Saint-Tropez) se encontrar as 4 diferenças entre a ficção e a realidade.
Enviar um comentário