As manifestações colectivas de rua já foram uma marca política. De forte carga simbólica, constituíam indesmentíveis demonstrações de fé na(s) causa(s). Associações, centrais sindicais, partidos, jornais desmultiplicavam esforços para encher de gente as avenidas. Por definição, a manifestação mais concorrida era a que melhor expressava o pulsar da nação, e os jornais afectos a uma ou outra causa exageravam propositadamente as estimativas de presenças. Mais gente é e sempre foi igual a mais força. Quod erat demonstrandum.
Com o tempo, a natureza das manifestações modificou-se. A participação popular diminuiu. As ocasiões de festejo colectivo tornaram-se mais espaçadas. Progressivamente, as manifestações colectivas ficaram guardadas para momentos eleitorais. Ali, as «jotas» prometem mundos e fundos para encher a arena de população, arrebanhando fiéis de circunstância para que o plano americano das televisões não pareça muito mal. Pouco importa o credo partidário. É preciso compor o cenário. Nas últimas eleições legislativas, um velho amigo ligou-me, pesaroso. Estava no último comício do "menino guerreiro". «Fui arregimentado. Não pude dizer que não», queixava-se ele, ao telefone, procurando sobrepor a voz aos urros que os altifalantes emitiam.
Mas não é sobre demonstrações de fé forçada (ou forjada) que quero hoje escrever. Falo deste estranho rito tribal, que leva milhares às ruas para festejar o triunfo do emblema desportivo local. De cachecol pendurado na janela e mão descansando pesadamente sobre a buzina, o manifestante moderno passeia pela cidade sem rumo aparente. Como um bebé, necessita apenas que o carro esteja em movimento. E precisa sobretudo de se sentir acompanhado. Muito acompanhado.
Imaginem o desconsolo de um único automobilista, sozinho, circulando na rotunda do Marquês do Pombal! Inaudito. O manifestante moderno precisa da desresponsabilização gerada pelo número. Apita em gruto. Berra em grupo. Insulta protegido pelo grupo. Das cavernas à modernidade, dista apenas um som gutural.
Ele apita freneticamente enquanto entoa cânticos primários. Urra. Algum, mais afoito, trepa uma estátua, movido porventura pela secreta esperança de encontrar a fortuna no topo, como a lenda do caldeirão de moedas no fim do arco-íris. Debalde. Chegado ao topo, resta-lhe descer, de sorriso cretino estampado no rosto. É saudado como um Cabral, herói contemporâneo que desafiou a gravidade e os elementos.
Parece-lhe incrível que alguém possa circular na cidade com outro fim que não o buzinão. Desfralda a bandeira, grita slogans rudimentares e bate no "capot" como um salvo-conduto clubístico. «Este pode passar. Parece ser dos nossos»
O ruído é a sua razão de ser e não lhe ocorre que poderia festejar sem buzinar ou berrar como um leitão desmamamdo. A ordem imposta ao protesto estragaria o gozo. E é vê-lo a rir-se das forças da ordem impotentes ou dos sinais de aviso da proximidade de hospitais ou maternidades. A transgressão atrai, sobretudo quando o número garante segurança.
Colecciona todo o tipo de troféus a que pode deitar mão. Arranca sinais de trânsito, tabuletas, caixotes do lixo ou outros pacíficos objectos numa captura frenética de "souvenirs" que, num dia normal, o indignaria. Encontra justificação para a barbárie no carácter absolutamente inovador da vitória do seu clube, como se todos os anos não houvesse campeonato e campeão. E canta, senhores, canta muito. Melodias cretinas destinadas a inimigos ausentes e que glorificam a campanha da temporada, desenvolvida, como é natural, «contra tudo e contra tudos». Não faria sentido inventar músicas se a campanha não tivesse sido heróica ou gloriosa.
Gosto particularmente da proliferação de cretinices que se dizem na circunstância. "Isto estava mal, mas agora vai mudar." "A crise já não me assusta." "Esta é a maior instituição do país." Quem ousaria contestar as propostas teóricas de quem passa uma noite inteira a gritar uma sigla e o adjectivo glorioso? Pois com certeza. Tem toda a razão.
Como nos trabalhos pioneiros do antropólogo Claude Lévy-Strauss, proponho cunhar este achado cultural tão próprio da nossa terra, com um vocábulo específico. Chamo-lhe o grunho buzinador, espécie nada ameaçada nesta Lisboa tristemente benfiquista. Irra!
1 comentário:
Que prosa mais substancial. Quem me dera escrever assim. Um abraço. Octávio Lima (ondas2.blogs.sapo.pt)
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