Um amigo mostra-se indignado com a reportagem da família Montenegro na praia, em fotos claramente ensaiadas – ou pelo menos toleradas –, e queixa-se de um precedente que impedirá mais tarde o primeiro-ministro de exigir recato para a intimidade do lar. “Quem com ferros mata, com ferro morre.” Mas será uma novidade?
Mais do que ninguém antes de si, J.F. Kennedy transferiu a política do comício para a sala de estar e da página do jornal para o ecrã de televisão. Mostrou a mulher e os filhos como parte da sua visão de um homem novo na política americana e nada voltou a ser igual.
Por cá, pouco depois da Implantação da República, Teófilo Braga fez-se fotografar no eléctrico. Uma imagem engenhosa de Joshua Benoliel, planeada para romper com a distância formal dos Bragança, criando a percepção de um homem do povo que Teofilo não voltaria a ser. Mas funcionou. Não consta que o PR se deslocasse assim para Belém daí para a frente, mas a Internet está repleta de alegorias ao político proletário. Nem Mário Soares resistiu, nos livros-entrevista com Maria João Avillez, a fazer a apologia do Teófilo que se deslocava de transportes públicos.
A família foi, durante décadas, o bastião inacessível. Aparecia, no limite, na noite eleitoral (nos países que tinham eleições) ou na sombra. Foi fonte pontual de escândalos (basta ler as alegações brutais que se escreveram em 1906 sobre as amantes de Dom Carlos e o custo dessas aventuras para o Tesouro) e fez cair gabinetes, como sucedeu com Van Buren nos EUA, mas a mulher e os filhos do político eleito foram, durante décadas, uma zona desmilitarizada.
Algo mudou entretanto na intimidade dos líderes. E foi no seio da ditadura que essa percepção brotou. Nas renhidas eleições de 1958, onde pela primeira vez se apresentaram dois candidatos da Oposição (Humberto Delgado e Arlindo Vicente) contra o candidato da Situação (Américo Thomaz), a revista O Século Ilustrado acalmou subtilmente as acusações de fraude eleitoral. Logo após o acto controverso que elegeu Thomaz, Beatriz Ferreira fotografou o Presidente da República na intimidade do lar, com o neto João Paulo ao colo, brincando com um barco de madeira.
A interpretação proposta era a de um pacato cidadão, que vivia num terceiro andar da Avenida Defensores de Chaves, reunido com a família após a batalha eleitoral limpa e justa.
Em Setembro de 1973, aflito com o distanciamento e com a percepção de o verem só como um académico isolado em São Bento, também Marcelo Caetano abriu as portas de casa – desta vez, à revista Flama.
Num trabalho jornalístico íntimo, com poucos antecedentes por cá com um político, Edite Soeiro e o fotógrafo Lúcio mostravam os filhos, os netos e as irmãs do presidente do Conselho e publicavam os seus lamentos sobre a falta de tempo para ler poesia ou para ensinar os netinhos a andarem de bicicleta (não tenho maneira de o provar, mas, se tivesse de arriscar, diria que a reportagem nasceu do cérebro de Jorge Tavares Rodrigues para limar as arestas de um político bicudo). “Muitas vezes me tem acontecido julgar que vou descansar e… afinal não”, queixava-se.
Em 2008, Tony Blair explodiu e disse que a família tem de ser o reduto privado da vida de um político e que não há excepções. Foi tarde de mais. Esse Rubicão foi transposto há décadas e já não há retorno possível.