A estupenda
reportagem que Ronaldo Ribeiro e Maurício de Paiva assinam na edição deste mês da NationalGeographic presta
tributo ao esforço e ousadia das autoridades e cientistas brasileiros que
decidiram submeter os restos mortais do rei Dom Pedro IV (Dom Pedro I do
Brasil) ao escrutínio forense. Da investigação, já resultou uma tese de
mestrado de Valdirene Ambiel, que estuda agora com mais profundidade os
resultados no âmbito do seu doutoramento. Como boa cientista que é, Valdirene
partiu para a investigação sem preconceitos nem ideias feitas. Os resultados
falariam por si, sem mitos nem carga ideológica. E a reportagem reflecte as
virtudes e defeitos do primeiro imperador do Brasil, sem que com isso os
alicerces da nação brasileira tenham baloiçado.
Uma das
(des)vantagens de trabalhar nesta revista há treze anos é a memória acumulada,
uma espécie de mochila que nunca sai das costas. Enquanto lia o relato do
Ronaldo sobre a investigação em São Paulo, a minha mente flutuou
momentaneamente até ao ano de 2006 e à cidade de Coimbra. Tínhamos então um
acordo com a mais extraordinária antropóloga forense da academia portuguesa, a
professora Eugénia Cunha. Após meses de diligências administrativas e de
negociações dolorosas para obter financiamento, Eugénia Cunha teve finalmente
autorização para abrir o túmulo de Dom Afonso Henriques, primeiro rei de
Portugal, e conduzir uma moderna investigação forense. O túmulo não era aberto
desde o reinado de Dom Miguel, no século XIX, e Eugénia Cunha, como Valdirene
Ambiel, não excluía nenhum cenário. Seria o rei alto como sugeriam as lendas ou
baixo para os padrões actuais? Poderiam a sua dentição e constituição óssea
revelar pistas sobre a sua alimentação e os seus hábitos de vida? Teria mesmo
sido ferido em combate e guardaria o seu esqueleto provas dessas lesões? Quais
seriam as marcas que 45 anos de reinado teriam deixado no corpo do velho
monarca? Mais importante do que qualquer outra questão: teríamos finalmente
provas de que as urnas da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz guardavam
efectivamente os esqueletos de Dom Afonso Henriques e de Dona Mafalda? É que
nem isso está garantido.
Muitas coisas
correram mal naquela semana de Julho de 2006. Montou-se um circo mediático
ávido de informação e que, numa nota muito pessoal, ameaçava romper a nossa
ideia de exclusivo. Um jornal de referência fez queixa ao presidente do IPPAR
de que era inaceitável conceder "acesso exclusivo a uma publicação
estrangeira" (palavra!) que, ainda por cima, só publicaria a reportagem
meses depois. O nosso repórter no local, o António Luís Campos, não se
atemorizou e recuou um passo para captar em filme a agitação mediática em torno
de um projecto forense. Todos os meios reunidos pela antropóloga estavam a
postos para a abertura do túmulo às 17 horas.
Entretanto, chegou
o balde de água fria. A tutela voltou atrás e proibiu a intervenção. O IPPAR
disse que nunca autorizara, mas nós vimos um documento formal de autorização. Sussurrava-se
que a ministra Isabel Pires de Lima ficara pessoalmente ofendida por não ter
sido convidada. Os argumentos foram tontos e precipitados. Os especialistas da
Universidade de Granada que tinham participado na abertura do "túmulo de
Colombo" nem queriam acreditar na carga ideológica daquele dia. A máquina
burocrática defendeu-se com burocracia e ficámos todos sem conhecer uma página
importante da nossa história.
Imagem inédita de António Luís Campos. A antropóloga Eugénia Cunha desdobra-se em telefonemas depois de tomar conhecimento da recusa de abertura do túmulo. |
Nestes oito anos,
Eugénia Cunha já falou várias vezes com classe e elegância sobre a recusa.
Catalogou-a como um acto de medo, de receio pelas respostas que estejam
contidas na urna de Coimbra – receio até de que tenhamos prestado tributo a um
mito que, vistas bem as coisas, era tão humano como qualquer um de nós.
Cairia o regime se
se descobrisse que o primeiro rei de Portugal tinha a altura do Lionel Messi,
que coxeava ou que morrera de uma doença moralmente censurável? No Ministério
da Cultura, pensou-se que sim.
Portugal caminha
para o seu 900.º aniversário, mas ainda olha para páginas da sua história como
um adulto que censura a leitura de passagens de um livro aos seus cidadãos com
medo de que ele contenha cenas moralmente censuráveis. Enquanto não chega o
glorioso dia em que poderemos saber mais sobre o primeiro rei de Portugal,
deliciem-se com o que a ciência brasileira descobriu sobre o primeiro imperador
tropical!
1 comentário:
Uma vergonha absoluta. Essa ministra foi patética, para usar um eufemismo. Oxalá a Dra. Eugénia Cunha retome o projecto e seja efectuado o exame forense e genético completo às ossadas de D. Afonso Henriques, bem assim como às ossadas de D. Henrique de Borgonha, D. Teresa de Leão e de D. Egas Moniz. Que se compare o ADN desses mortos, para de uma vez por todas se tirar a limpo quem é filho de quem… O mesmo deveria ser feito em relação aos ossos de Pedro e Inês e de D. Sebastião nos Jerónimos. Deixemo-nos de beatices e de obscurantismos. Compare-se também o ADN de D. João VI com o de D. Afonso Henriques (para ver se era descendente dele) e com o dos seus reputados filhos, D. Pedro IV e D. Miguel I, já que há dúvidas quanto à paternidade dos mesmos, uma vez que Carlota Joaquina era notória adúltera… A história das monarquias deve estar cheia das maiores imposturas e há quem tenha medo da verdade...
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