Por vezes, baralhamos mil vezes a galeria de fotografias disponíveis na
esperança de que, à décima passagem, algo tenha escapado – a imagem improvável
que vai salvar a reportagem, vai manter a reputação da revista, vai atrair o
leitor para as nossas páginas e motivá-lo a recordar-se da reportagem para sempre. No
processo, amaldiçoamos silenciosamente os homens do campo, os fulanos que saem
para a rua de máquina na mão para congelar o tema da reportagem num instantâneo
revelador. “Porque não deu um passo mais para a frente?”; “Porque não recuou?”;
“Porque não tentou outra posição, outra lente, outra iluminação?”. No conforto
da redacção, longe dos imponderáveis do campo, todas as fotografias mágicas
parecem possíveis.
Pontualmente, porém, sucede o contrário. À primeira passagem da galeria
de imagens, emergem possibilidades fantásticas de ilustração. Uma, duas, três
fotografias captam tudo o que queríamos contar. Dispensam legendas e
explicações. São metonímias perfeitas da história que decidimos relatar no
momento já distante em que a ideia original brotou. Lembro-me sempre nestes
momentos do que escreveu a controversa escritora Anaïs Nin que, para mal dos
seus pecados, herdou um nome próprio infeliz e uma tendência incontrolável para
redigir diários íntimos. «Tudo nasce do excesso. A grande arte nasceu do grande
terror, das grandes inibições, das grandes instabilidades – forma com eles o
equilíbrio indispensável.» [cito de memória]· É, pois, de excesso, de
abundância que falamos agora.
Há alguns meses, o António Luís Campos propôs-nos uma história
formidável. Graças à extraordinária cooperação de António Candeias, do
Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, e dos conservadores-restauradores Miguel Mateus e
Teresa Reis,
tínhamos acesso ao trabalho de investigação desta equipa em torno das
representações pintadas de Afonso de Albuquerque, segundo vice-rei português na
Índia. Não quero estragar a leitura a ninguém [disponível aqui, já agora], mas
a obra foi socialmente construída e reconstruída sucessivamente desde o século
XVI, ao sabor da ideologia de cada época e dos preconceitos dos seus agentes.
No léxico de um editor, a história tinha todos os ingredientes: uma figura
histórica, um mistério, ciência de ponta, espiões, uma invasão e um quadro que
ora tinha barbas brancas, ora as perdia por soberba de um político.
Como sempre acontece nesta casa, debatemos intensamente as possibilidades
visuais. As reportagens de laboratório são terríveis. No ambiente descontaminado
das pipetas e bicos de bunsen, das paredes brancas e microscópios, todas as
fotografias parecem iguais. Com a malícia que lhe é característica, o António
assegurou que traria fotografias diferentes. E, na verdade, mostrou-se fiel à
palavra dada.
Voltamos aos excessos da Anaïs Nin. Logo à primeira passagem da galeria
de imagens disponíveis, saltaram à vista estas duas extraordinárias
representações de tudo o que queríamos dizer. Em duas composições, o António
mostrava o quadro que chegara a Lisboa em 1953 já repintado por Gomes da Costa
na Índia com amplas liberdades criativas, o quadro que a equipa de João Couto
descobrira com exames radiológicos no MNAA e indícios da pintura original que
lhes estava subjacente.
Tivemos de optar – espero que bem. Ficou na maqueta a imagem enigmática
com todas as representações conhecidas penduradas numa parede de luz, enquanto
Miguel Mateus anotava diligentemente os contratempos sofridos pela obra; ficou
pelo caminho a imagem tecnológica, captada com um iPad, expressando igualmente
as diferentes fases do desenho de Afonso de Albuquerque (que até pode não ser o
próprio, pois essa averiguação deverá agora ter lugar na Galeria dos Vice-Reis em
Goa).
Por sobreposição de compromissos, não vou poder participar na palestra do
António Luís Campos no Porto, no próximo dia 12, na Reitoria da Universidade.
Celebram-se ali dez anos (quase 11) de colaboração do António com a edição
portuguesa da National Geographic, o que vale por dizer que são dez anos de
dilemas como este. De escolhas entre o bom e o óptimo. De materiais estupendos
por vezes excluídos somente para evitar redundâncias no nosso processo de story-telling.
Tem-se falado muito em selecções nacionais durante estes dias de
antecipação do Mundial. O António estará seguramente na minha selecção nacional
dos melhores.
Era isto que eu diria na 5.ª feira, na Reitoria da Universidade do Porto, se tivesse oportunidade.
Era isto que eu diria na 5.ª feira, na Reitoria da Universidade do Porto, se tivesse oportunidade.
1 comentário:
Obrigada pelas informações, mas agora preciso de ilustrar um debate sobre Afonso de Albuquerque e não sei qual é o autêntico.
Podem-me ajudar
Obrigada
Luísa Paiva Boléo
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