Os alertas, de tão frequentes, já não comovem, independentemente da fórmula criativa que os jornalistas encontram para os descrever. O Instituto da Conservação da Natureza faliu. De norte a sul, os funcionários directos e indirectos da instituição sofrem na pele a crise. Há subsídios em atraso. Uma tonelada de serviços contratados não foi paga, nem deverá ser nos próximos meses. Horas extraordinárias requisitadas não foram saldadas. Não há dinheiro para os projectos nacionais e internacionais, com a agravante de, no caso destes últimos, o financiamento comunitário depender das verbas do governo português: se faltar a contrapartida portuguesa, as verbas europeias são devolvidas à fonte.
A lista continua, maçadora. Não há verbas para indemnizar pastores pela perda de rebanhos. Não há dinheiro para incentivar esforços de reflorestação. As áreas protegidas não têm fundos de maneio para telefone, fax, gasolina. Como nas velhas colónias no difícil período pós-independência, os carros avariados são abandonados no local, inúteis, sem dinheiro nem vontade que os recupere.
De vez em quando, algum iluminado lança para o ar a ideia da reorganização do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), colando-o a frases ocas. Segundo as várias teses, o ICN será profissionalizado, ganhará independência, será mais autónomo, será menos autónomo, deverá gerar receitas, está acima dessas minudências e não deve ser pensado numa lógica economicista…
Em Outubro de 2003, o executivo de Durão Barroso quis transformá-lo num braço da Direcção-Geral de Florestas, remédio santo para curar de vez o debate da independência: sob esta alçada, o Instituto teria o mesmo peso político que o Gabinete de Apoio ao Registo Automóvel. Parecendo que não, era chato para a conservação da natureza.
Isaltino de Morais, esse paladino da seriedade, sugeriu então a municipalização das áreas protegidas. Estou de acordo num ponto com o actual candidato à CM Oeiras: se a sua proposta tem seguido avante, em dez anos terminavam os problemas das áreas protegidas. E o Gerês podia ser hoje um promissor empreendimento de turismo rural.
O executivo de Santana Lopes partiu em mil bocados o orçamento do ICN que, de 2004 para 2005, baixou de 26 milhões de euros para 11,5 (quebra de 56%). Problema de somenos porque, com a transformação do ICN em sociedade anónima, as receitas jorrariam continuamente.
Data do final de 2004 a frase emblemática do ministro Nobre Guedes, sugerindo a gestão criativa que, com menos, pudesse fazer mais. Cativada, a sociedade civil aceitou o desafio. Da minha parte, ofereci então as minhas propostas (Ver Sinais de Fumo). Debalde.
Mérito lhe seja dado, José Socrates inscreveu no seu programa de candidatura a necessidade de restituir a dignidade da instituição, acabando com o humilhante peditório anual, mal o calendário chega a Junho e já não há dinheiro para o resto do ano. Veremos o que vale o programa eleitoral quando chegar a discussão do Orçamento para 2006.
Nestes quatro meses de governação, o ministro Nunes Correia até tem desbloqueado verbas de emergência e merece elogios pelas iniciativas de retirar às autarquias quaisquer poderes sobre a nomeação dos directores de áreas protegidas. A prometida Lei-Quadro de Conservação da Natureza gerou também entusiasmo, mas, em rigor, nada transpirou ainda sobre a nova regulamentação.
O que acontecerá ao ICN neste cenário? Ao leme da instituição está um investigador que coordenou o agora célebre estudo Parques XXI, advogando a empresarialização do instituto (sempre sob a égide pública), alicerçada no equilíbrio de receitas do instituto (e não só das áreas protegidas). O projecto assenta na noção de que há serviços que o ICN hoje presta que deveriam ser cobrados – e bem cobrados – a instituições públicas e privadas. Funciona também sob o princípio de que o acesso às áreas protegidas, embora inscrito na Lei de Bases do Ambiente como bem colectivo desta e das próximas gerações, deverá compensar a sua gestão.
Discordo na essência destes fundamentos. Tenho escrito repetidamente que o património natural tem um valor intrínseco, não quantificável e sobretudo não negociável. Há serviços sob a égide do Estado que têm missões simbólicas. Cabe-lhes por um lado assegurar direitos fundamentais da sociedade, como a defesa, a segurança pública ou saúde. E valem, por outro, como símbolos das prioridades estatais, dos serviços considerados essenciais que o Estado presta aos cidadãos. A Brigada de Crimes Informáticos da Polícia Judiciária não gera riqueza, nem é gerida como uma empresa (embora lhe seja pedido naturalmente que cumpra o seu orçamento). O serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria não gera mais-valias, para além de permitir a renovação a longo prazo da força de trabalho. Porque diabo terá o ICN, ou uma área protegida isoladamente, de funcionar como uma empresa? A sua função primordial não chega?
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